Política

Joaquim Nabuco: o espírito inglês

por Andrei Venturini Martins

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Estudar a biografia de Joaquim Nabuco é uma forma de investigar a História do Brasil. Não foram poucos os eventos vivenciados pelo autor: A Lei do Ventre Livre (1871); a Lei dos Sexagenários (1885); a abolição da escravidão (1888); o advento da República (1889); a Revolta da Armada (1891-1894); a criação da Embaixada do Brasil em Washington (1905), na qual foi o primeiro embaixador.

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Nabuco, 1902

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Alguns desses eventos marcaram sua vida pessoal. Dizia que os anos terminados com o número 9 sempre são acompanhados por acontecimentos marcantes. Em carta a Graça Aranha, datada em 1º de dezembro de 1908, Nabuco destaca: “49, o nascimento; 59, o internato (a separação de casa); 69, o Recife; 79, o Parlamento e a Abolição[1]; 89, o casamento e a queda da monarquia; 99, a diplomacia. Que será o nove sem mais nada?”.[2] Nos últimos dez anos de vida, dedica-se à carreira diplomática, porém, já com a saúde fragilizada, faleceria no dia 17 de janeiro de 1910, em Washington.

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Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo nasceu em Pernambuco, na fazenda de Massangana, perto do Cabo de Santo Agostinho, localizado 50 km ao sul do Recife. Tanto a família paterna, os Nabuco Araújo, quanto a materna, os Aurélio Barreto, eram de origem portuguesa. Vale destacar, contudo, que o lado paterno tinha uma tradição política: o tio-bisavô, o avô e o pai foram senadores.

Quando Nabuco nasceu, seu pai tinha um compromisso no Rio de Janeiro e não podia submeter o recém-nascido às dificuldades da viagem. O infante permaneceu na fazenda de Massangana, sob os cuidados de sua madrinha, Ana Rosa Falcão de Carvalho, com quem viveria os primeiros oito anos de sua vida. Ali aprendeu a ler e escrever. Sua madrinha, sempre muito cuidadosa, contratou um professor particular para introduzi-lo ao mundo das letras. Para não sentir a monotonia da solidão em classe, Nabuco tinha a companhia de seus amigos de infância, filhos dos escravizados daquela fazenda. Em Minha Formação, obra autobiográfica, Nabuco descreveria esse período pueril como uma espécie de Paraíso:

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Durante o dia, pelos grandes calores, dormia-se a sesta, respirando o aroma, espalhado por toda parte, das grandes tachas que cozia o mel. O declinar do sol era deslumbrante, pedaços inteiros da planície transformavam-se em uma poeira de ouro; a boca da noite, a hora das boninas e dos bacuraus[3], era agradável e balsâmica, depois o silêncio dos céus estrelados, majestoso e profundo. De todas essas impressões, nenhuma morrerá em mim.[4]

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O jovem Nabuco (Arquivo Nacional)

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Em um belo dia, contudo, se depara com o mal: é a Queda do Paraíso. Nabuco estava sentado na escada que dava acesso ao exterior da casa, quando de repente um jovem escravizado abraça seus pés e suplica ao menino que interceda junto à sua madrinha para que o comprasse, pois se continuasse onde estava seria mais uma vítima da fúria de seu impiedoso senhor. Após aquela cena dramática, a escravidão deixou de ser uma instituição comum de seu cotidiano e Nabuco nunca mais a encarou com os mesmos olhos: “Foi esse o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava”.[5] Foi o primeiro grande choque de sua vida. O segundo aconteceu quando tinha 8 anos: Nabuco acorda com os soluços dos escravos — pois não havia nada mais angustiante e terrível do que a mudança de senhor, já que nunca se sabia quem seria o novo carrasco — e recebe a notícia do falecimento de sua madrinha. Esse acontecimento fechou sua infância e o conduziu ao enfrentamento do mundo.

Levado para o Rio de Janeiro, onde seus pais moravam, passou por um breve período de estranhamento pela distância do lar, mas não tardou a se acostumar à nova casa. Na capital do Império, primeiro frequentou um internato, depois, o Colégio Pedro II. Em 1865, já em São Paulo, começaria o curso de Direito, no Largo São Francisco.

Viveu ativamente o ambiente escolar, e não custou a se tornar um dos grandes representantes estudantis do Partido Liberal. Não há dúvidas de que esse espírito liberal moldou a atuação política de Joaquim Nabuco, que exerceu quatro mandatos como deputado. Além disso, engajou-se firmemente no movimento Abolicionista, que surgiu em 1869 e foi o primeiro movimento popular do Brasil, com a participação de estudantes, professores, artistas populares, escritores, músicos e políticos.[6]

Para Nabuco, seria um contrassenso a existência de um partido liberal em um país de escravos. Mesmo após a abolição, acreditava que a macabra instituição ainda atuaria no cenário nacional, como uma sombra: “Eu não acredito que a escravidão deixe de atuar, como até hoje, sobre o nosso país quando os escravos forem todos emancipados”.[7] Para além da luta contra a escravidão, o filósofo pernambucano foi um pensador liberal de matriz anglo-saxã: “Com efeito, quando entro para a Câmara, estou inteiramente sob a influência do liberalismo inglês”.[8] É na raiz do liberalismo de Nabuco que este ensaio pretende se concentrar.

Em 1873, faz sua primeira viagem para o exterior, percorrendo inúmeros países do velho continente, como França, Inglaterra, Itália e Suíça. Dessa viagem, além das impressões culturais — museus, arquitetura, igrejas, arte —, também se destaca a marcante influência que a política liberal inglesa deixara em seu intelecto. Os dados e influências recolhidos auxiliariam o jovem Nabuco a desenhar uma postura política que ele denominou, de modo muito particular, de espírito inglês: “O que entendo por espírito inglês neste caso é a norma tácita de conduta a que a Inglaterra toda aparece obedecer, o centro de inspiração moral que governa todos os seus movimentos”.[9] Essa inspiração moral é princípio orientador do espírito inglês, o qual abarcava inúmeros valores: “Politicamente, o espírito inglês pode decompor-se em espírito de tradição, em espírito de realidade, em espírito de ganho, em espírito de força e generosidade, em espírito de progresso e melhoramento, em espírito de ideal: supremacia anglo-saxônica e supremacia cristã do mundo”.[10] Aproximemo-nos um pouco mais desses desdobramentos do espírito inglês.

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Instituições Ancestrais

Diferentemente do espírito revolucionário francês, que em nome de uma radical reforma política havia destruído os vínculos com o passado, o espírito inglês é zeloso por suas instituições ancestrais. A primeira é a monarquia. “A rainha Vitória é mais do que augusta, cuja imagem cada família venera em seu lararium interior”.[11] O inglês carrega consigo uma veneração por essa forma de governo, sempre associada ao diversificado imaginário moral que ela representa. Além da monarquia, o espírito inglês enaltece a Constituição. O povo vê na Constituição uma “procuração em causa própria”.[12] Consuetudinária, ela não surgiu pela ideação de um único homem, “mas espontaneamente, inconscientemente, como a língua inglesa”.[13] Com uma Constituição testada pelo tempo — distante das formulações políticas aventureiras, pautadas por princípios abstratos — e por uma monarquia forte, o espírito inglês afirma a tradição como base de sua postura política.

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Tradição e liberdade

Assim como os conhecimentos de arquitetura capacitariam o estudioso a admirar a grandeza e o detalhe de uma catedral gótica, também a tradição produziria no inglês “a faculdade de admirar a massa histórica de uma instituição”,[14] ou seja, a estrutura que a sustenta. É através do praejudicium — instituições e valores que a contingência da história foi capaz de conservar — que o espírito inglês avalia o movimento da história e toma as suas decisões. Dentre os valores mais admirados pelo espírito inglês, e base do temperamento que o molda, estaria a liberdade, o grande atributo do homem. A liberdade é a capacidade de os indivíduos se desenvolverem, entretanto, isso só é possível dentro de uma ordem estabelecida. Trata-se da ordem social, a qual é a “verdadeira arquitetura social”.[15]

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Ordem Estabelecida: apreço pela lei e pela autoridade

Essa tendência à perpetuidade, marcada pela instituição monárquica e pela Constituição, as quais expressam valores como tradição, liberdade e ordem, são o fundamento do espírito inglês. Contrariando o latino, que “pode viver e ser feliz em um solo político oscilante, sujeito a terremotos contínuos”,[16] o inglês, diz Nabuco, precisa de um chão firme para viver. É por isso que o espírito inglês tem amor e apreço pela lei e pela autoridade encarregada de executá-la, entre as quais o juiz. Portanto, essa veneração pela monarquia, o respeito à Constituição, à tradição, à liberdade, à ordem, à lei e à autoridade constituída formam uma organização política que não tem como fundamento a abstração da razão, mas uma superstição pelo costume.[17]

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Aperfeiçoamento e Progresso

O desdobramento prático da disposição consuetudinária do espírito inglês é o espírito de aperfeiçoamento e progresso. O resultado disso são as reformas, as quais deverão respeitar regras governamentais elementares:

1ª Regra: Conservar o que não é obstáculo para o melhoramento indispensável.

2ª Regra: Que o melhoramento justifique o sacrifício, seja da tradição ou do preconceito (instituições e valores), que impede o progresso.

3ª Regra: Respeitar o inútil das épocas passadas: somente demolir o prejudicial.

4ª Regra: Substituir tanto quanto possível de forma provisória, confiando que o tempo testará o novo material, para enfim rejeitá-lo ou consagrá-lo.

5ª Regra: reformar no sentido originário da instituição, procurando o traçado primitivo, ou seja, reformar retomando aquilo que já é conhecido e experimentado.

Ressalvadas duas interdições:

1ª Interdição: “Nenhum explosivo é legítimo, porque a ação não pode ser de antemão conhecida; é preciso demolir a nível e compasso, retirando pedra por pedra, como foram colocadas”.[18]

2ª Interdição: “O que, porém, dirige o espírito do progresso é o espírito de realidade, espírito prático, positivo, que se manifesta na rejeição de tudo que é teórico, a priori, tentativo, lógico, ou que pretenda à perfeição, à finalidade, à uniformidade, à simetria”. [19]

Vemos pelas diretrizes acima que o espírito de progresso é prático. Assim como as plantas dependem de inúmeros fatores que permitam seu crescimento — como a quantidade de luz, água e tempo de aclimatação —, também as novas instituições devem ter afinidades com as vigentes, caso contrário, aquilo que é novo não dá frutos e prejudica o que já existia. Esse aperfeiçoamento deve trazer progresso, que, por sua vez, precisa atender a dois critérios: ser utilitário, para que as reformas tragam vantagens econômicas (benefícios justificados por algarismos[20]), e moral, para que as vantagens econômicas não prejudiquem as instituições imaginativas, os valores morais, a unidade nacional e a disposição religiosa. As reformas, portanto, devem atender o equilíbrio entre o critério utilitário (vantagem econômica) e moral (costumes).

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É esse espírito inglês, monárquico, admirador da Constituição, da tradição, da liberdade, da ordem, amante da lei e da autoridade, afeito aos costumes, à lei e à autoridade, reformador e prático que exercerá influência na atuação política de Joaquim Nabuco. Ao declarar seu espírito inglês na política, associa-o à monarquia, que, na visão do autor, possui uma tênue relação com o liberalismo: “O liberalismo, mesmo radical, não é só compatível com a monarquia, mas até parece aliar-se com o temperamento aristocrático”.[21] Mas como explicar essa afirmação típica do espírito inglês (ou temperamento aristocrático), que vincula a monarquia — e todos os valores que ela comporta — ao liberalismo? A resposta estaria em uma comparação entre as formas de governo monárquica e republicana.

Quando Nabuco escreveu as memórias de sua primeira viagem à Europa, o Brasil já havia se tornado um país republicano. Sua relação com essa forma de governo era de profunda aversão, pois via o republicanismo como uma afronta à liberdade. Para ele, havia nos republicanos um fermento pulsante de ódio. “Antes de tudo, o republicanismo francês, que era e é o nosso, tem um fermento de ódio, uma predisposição igualitária que logicamente leva à demagogia”.[22] Marcada pela intolerância, a República mostrava-se agressiva em nome da predisposição igualitária, conducente a regimes autoritários, como o estado militar francês após a revolução de 1789. Além do ódio, considerava os republicanos intolerantes. Nos dias de crise, o republicanismo, excitado pelo poder e preocupado com o perigo de perdê-lo, é acometido por aquilo que Nabuco chama de reclusão mental: “Dá-se somente quando o espírito se encerra em algum sistema filosófico ou fanatismo religioso, em uma doutrina ou em uma previsão social qualquer, e aí se isola inteiramente do mundo externo”.[23] O republicanismo, seja francês ou brasileiro, era considerado por ele como uma espécie de reclusão mental, ou seja, assim como o fanático religioso não está disposto a considerar outros sistemas de fé diferentes do seu, também o republicano estaria acometido pela paixão de que a sua forma de governo seria a única formatação possível do Estado. Assim, a reclusão mental — e suas intransigentes crenças políticas —, explicava o repúdio revolucionário aos seus oponentes por meio do terror sanguinário.

Foi essa intolerante atmosfera política que permeou o republicanismo francês: “A intolerância é uma fobia da liberdade e do mundo; é um fenômeno de retração intelectual, produzindo a hipertrofia ingênua da personalidade”.[24] A hipertrofia, esse crescimento repentino, imprevisto e excessivo do poder, é a manifestação mais genuína do orgulho em política: o revolucionário cultua sua forma de governo como uma imagem de si mesmo e, em seguida, de forma narcísica, quer submeter a todos ao mundo ideal que ele imagina ter em seu intelecto.

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Machado de Assis e Joaquim Nabuco

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Notas:

[1] O movimento abolicionista teve início em 1869. A participação mais ativa de Joaquim Nabuco nesse movimento ocorreu a partir do ano de 1879, ocasião em que foi eleito deputado pela primeira vez. O resultado desse trabalho do parlamentar – assim como da ação efetiva de muitos intelectuais, artistas, populares e, principalmente, dos escravizados, que reagiam corajosamente contra a instituição escravocrata brasileira – foi o 13 de Maio de 1888. Sobre a historiografia da resistência por parte dos escravizados, ver Ênio José da Costa BRITO, Leituras Afro-Brasileiras: Ressignificações Afrodiásporicas Diante da Condição Escravizada no Brasil. Jundiaí, Paco Editorial, 2018, vol. I e Lilia M. SCHWARCZ, e Flávio GOMES, Flávio (orgs.). Dicionário da Escravidão e Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

[2] Nabuco a Graça Aranha apud Joaquim Nabuco, Diários: 1873-1910. 2. ed. Rio de Janeiro, Bem-Te-Vi, 2006, p. 690 (dia 1º de agosto de 1909, nota 402).

[3] Trata-se de uma ave noturna, de plumagem muito macia, voo silencioso e que se alimenta de insetos.

[4] Joaquim NABUCO. Minha Formação, p. 187.

[5] Joaquim NABUCO. Minha Formação, p. 190.

[6] Ver Angela ALONSO. Flores, Votos e Balas: O Movimento Abolicionista Brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

[7] Joaquim NABUCO. O Abolicionismo, p. 157.

[8] Joaquim NABUCO. Minha Formação, p. 185.

[9] Joaquim NABUCO. Minha Formação, p. 127.

[10] Joaquim NABUCO. Minha Formação, p. 128.

[11] Joaquim NABUCO.  Minha Formação, p. 128.

[12] Joaquim NABUCO.  Minha Formação, p. 128.

[13] Joaquim NABUCO.  Minha Formação, p. 128.

[14] Joaquim NABUCO. Minha Formação, p. 128.

[15] Joaquim NABUCO. Minha Formação, p. 128.

[16] Joaquim NABUCO. Minha Formação, p. 128.

[17] O termo “superstição” não tem uma conotação pejorativa. Neste caso, significa a posição favorável à disposição consuetudinária do povo inglês, se contrapondo ao racionalismo político de verve francesa.

[18] Joaquim NABUCO. Minha Formação, p. 130.

[19] Joaquim NABUCO. Minha Formação, p. 130.

[20] Cf. Joaquim NABUCO. Minha Formação, p. 130.

[21] Joaquim NABUCO. Minha Formação, p. 73.

[22] Joaquim NABUCO. Minha Formação,p. 73.

[23] Joaquim NABUCO. Minha Formação, p. 73.

[24] Joaquim NABUCO. Minha Formação, p. 73.

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Post scriptum: Publicação prevista para o 2º semestre de 2021: MARTINS, Andrei Venturini. Joaquim Nabuco: um abolicionista liberal do Brasil. São Paulo: É Realizações, 2021, 402p.

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Andrei Venturini Martins

Andrei Venturini Martins é Doutor em Filosofia pela PUC-SP. Professor no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), palestrante na Casa do Saber e pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP LABÔ.