Cinema

O cinema de Bellocchio e a iluminação do mal-estar no mundo

por Jeffis Carvalho

Não é todo dia que se pode ter acesso, com um simples click do controle remoto, aos dois mais recentes trabalhos de um grande realizador, um cineasta sempre original em sua proposta estética, política e existencial. Dois filmes de Marco Bellocchio – um ao lado do outro no menu de lançamentos do Now – enchem os olhos e fazem a festa de  quem ainda acredita na infinita capacidade do cinema de nos surpreender, nos emocionar e, principalmente, nos fazer pensar. O tal contemporâneo, com todo o seu mal-estar,  explode na tela no intenso, rigoroso e primoroso jogo de luz e sombras – técnico e e estético – do cinema de Marco Bellocchio. Devemos escolher apenas qual ver primeiro para degustar como iguaria os dois trabalhos: Sangue do Meu Sangue (Sangue del Mio Sangue), de 2015, e Belos Sonhos (Fai Bei Sogni), de 2016. Ambos foram exibidos pela primeira vez na 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro do ano passado, e depois entraram e saíram rapidamente do circuiro comercial.[1]

O cinema de Marco Bellocchio é um cinema feito de estranhamentos, de formulações mentais sobre um permanente mal-estar no mundo, traduzidas pelo jogo de luzes – a luz que é a essência da imagem e, portanto, a gênese do próprio fazer cinematográfico. Desde a primeira sequência de Belos Sonhos, por exemplo, já se sente essa estranheza entranhada em cada plano, cada enquadramento, cada duração;  na música que irrompe como recurso estético e comentário emocional; nas cores fortes do cenário e na interpretação quase teatral; tudo contribui para a concepção estilística de seu cinema. O olhar de Bellocchio se dirige, então, para uma fragmentação não do discurso narrativo, tão comum nos cinemas pseudo-autorais, mas na multiplicação dos gêneros cinematográficos.

Em Belos Sonhos (no original italiano, Fai Bei Sogni, “Tenha bons sonhos”), acompanhamos a história do jornalista Massimo (Valerio Mastandrea) que  sofreu uma perda irreparável quando era criança; ao retornar a Turim, para vender o apartamento dos pais, acaba por confrontar seu passado e descobre a verdade. O cineasta elabora um intricado jogo da memória que começa nos anos 60 do século passado, na infância do protagonista, depois corta para 1999, para logo em seguida voltar no tempo, nos anos 70,  e novamente para a década de 90, em seus primeiros anos. O filme se desloca no tempo e no espaço – de Turim para Roma; de Roma para Sarajevo e daí por diante – incorporando em cada  bloco narrativo, mas com total unidade de estilo, o film noir, a estética realista do cinema americano da década de 70, a reportagem televisiva, o documentário manipulador, o melodrama de Douglas Sirk e o seu próprio cinema – principalmente  De Punhos Cerrados, seu primeiro grande filme, de 1965. O resultado é uma espécie de banquete cinéfilo, que ilumina e traduz a história italiana e do próprio cinema, sob o signo do mal-estar no mundo.

Essa degustação vai além da sua própria narrativa, porque Bellocchio introduz cenas marcantes de alguns filmes famosos que, a exemplo da música incidental, funcionam como comentários emocionais sobre o protagonista e seu permamente sentimento de deslocamento.  Assim, surgem imagens de arquivo do cinema, como Nosferatu, o Vampiro, (1922) de F.W. Murnau, ou da televisão, com Belfagor ovvero Il fantasma del Louvre (1965), a série assistida pelo protagonista e sua mãe e donde surge Belfagor, o demônio-da-guarda do personagem principal, assustador em sua máscara. Também como uma espécie de concepção poética sobre o luto, o filme segue arrebatador e envolvente até o seu desfecho com a revelação que, enfim – e como  nos grandes melodramas –, explica tudo e resolve a sua intricada narrativa. Mas, claro, como é Bellocchio, essa resolução é ambígua, e nos faz, ao final, testemunhas e cúmplices do mal-estar no mundo do protagonista Massimo.

Cena de Sangue del mio sangue.

Em outro registro, esse mal-estar está presente, em dois tempos, em Sangue do Meu Sangue, o seu filme anterior. Mas se em Belos Sonhos a fragmentação se dá por gêneros, aqui a narrativa é ainda mais sofisticada porque Bellocchio retrata várias perspectivas e períodos de tempo dentro de um único quadro. Para isso, ele se vale da essência maior do cinema – a luz. Por meio de seu uso, o claro-escuro tanto esconde quanto revela. Em Bellocchio, o jogo de luz é um jogo de poder – quem controla a luz tem a capacidade de determinar o que faz história e o que  é  deixado de fora no processo.  A mudança de luz indica, então, vários pontos de vista e sugere que diferentes planos temporais podem habitar a mesma cena. As pessoas na mesma sala não existem necessariamente no mesmo gênero – um personagem pode pertencer  a um tempo, enquanto outro parece vir de um outro mundo.

Na história contada, o jovem nobre Federico (Pier Giorgio Bellocchio) vive na Itália do século XVII, e  visita o convento onde seu irmão gêmeo e padre  se suicidou depois de ser seduzido por uma freira atraente, Irmã Benedetta (Lidiya Liberman). O escândalo impediria o irmão de ser enterrado em um terreno sagrado, mas o clero está aberto a um acordo: o veredicto de suicídio será revogado se Federico conseguir que a freira admita a comunhão com o diabo. Ela se submete a vários testes de possessão demoníaca e, como não confessa, é murada viva em uma câmara. A segunda parte do filme se abre nos dias de hoje e  um rapaz jovem chamado Federico (novamente Pier Giorgio Bellocchio, filho do diretor) entra no mesmo convento de Bobbia. Ele chega acompanhado por um oligarca que se apresenta como potencial comprador do agora  edifício em ruínas. Mas um conde misterioso (Roberto Herlitzka) já mora lá, como um recluso que só se aventura fora durante a noite. O que se segue é uma espécie de conto gótico e vampiresco em pleno século 21. O conde se assemelha ao sacerdote que ordenou a tortura da freira, e é também o “vampiro” que domina a cidade e seus habitantes por meio de uma fraude fiscal. Busca da verdadeira religiosidade diante da manipulação da fé; relações de poder eivadas em corrupção; golpes de um vigarista; o desejo se insinuado a cada fotograma; e os laços de sangue envolvendo a todos. É o mal-estar no mundo – e, claro, na sua Itália – iluminada pela luz do cinema de Marco Bellocchio.

[1] Interessante observar que é uma sorte para nós o fato dos dois filmes de Marco Bellocchio entrarem no “circuito” da TV por assinatura. Digo sorte porque hoje vivemos tempos estranhos para se ver e rever filmes. Os sistemas on demand nos prometem o  melhor dos  mundos – basta um click e alugamos um filme sem a necessidade de deslocamento até as locadoras, e a consequência disso foi, claro, o fim delas. Ocorre que o on demand não possui um décimo do acervo das antigas locadoras. Para quem está em São Paulo e antes dispunha do incrível acervo da 2001, agora dificilmente consegue assistir um filme que está fora de catálogo em DVD e Blu-Ray – e, portanto, não pode ser adquirido – e não pode ser alugado porque o Now e o Netflix não o disponibilizam. Tente, por exemplo, rever Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, e você não o encontrará nem no Now e nem no Netflix; não conseguirá comprá-lo porque está indisponível para venda e, claro, não pode passar para alugá-lo numa locadora como a 2001, porque locadoras não existem mais – só como e-commerce. Assim, para ver a obra-prima de Coppola só nos resta apelar para os amigos que em algum momento compraram o Dvd ou o Blu-Ray do filme. Como quase  tudo na promessa do admirável mundo digital, o tal on line é on, pero no mucho.

Jeffis Carvalho

Jeffis Carvalho é jornalista, roteirista, pesquisador de cinema e consultor de comunicação.