História

O século XX começa em Viena

por Marize Schons

O que a História das Relações Internacionais e a História das Ciências têm em comum? Muitas respostas são possíveis, mas uma delas é esta: Viena, entre o final do século XIX e o começo do século XX, foi o palco de significativas transformações em ambas as áreas. Para a História das Relações Internacionais, os fenômenos que aconteciam em Viena e na Europa finalizam processos: o colapso do Concerto Europeu diante da demissão de Bismarck; o esgotamento do sistema pluripolar que não suporta o ambiente de conflitos generalizados entre as principais potências da Europa; os momentos finais tanto do multiétnico Império Austro-Húngaro quanto do Império absolutista Russo dos Romanov, dois aliados no começo do século XIX que acabam, em 1914, em Tríplices separadas, disputando poder na região dos Balcãs.

A Primeira Guerra (1914 – 1918) seria o começo do fim da ordem europeia no mundo, que se encerrou definitivamente com a conclusão da Segunda Guerra Mundial, inaugurando a fria disputa entre EUA e União Soviética. Apesar da recorrente atenção dada ao segundo grande conflito, principalmente por causa da sua magnitude, está na Primeira Guerra a origem de vários dilemas essenciais para compreendermos alguns elementos contemporâneos. Sendo Viena uma das grandes protagonistas desse conflito, o Império Austro-Húngaro (e sua dissolução) é um objeto de análise imprescindível não só para a compreensão das duas Grandes Guerras, mas também das novas formas de ver o mundo, marcantes no século XX e ainda presentes no XXI, formas de ver o mundo essas que são tributárias da produção intelectual original dessa região da Europa que vivia um momento tão instável politicamente.

Essa dupla hermenêutica, ou seja, essa relação mútua entre o contexto e o pensamento, sustentaria o conhecido movimento intelectual amplo que foi abrangente em várias áreas do conhecimento chamado Modernismo. Em diferentes campos contribuíram esses personagens. Na arquitetura, Otto Wagner e, principalmente, seu discípulo Adolf Loos abandonam o estilo pomposo e detalhado do barroco austríaco para adotar uma postura funcional que traduziria o idioma do novo século.  “O ornamento é um crime” diria Loos ao defender superfícies lisas e a economia do dinheiro público que financiava grandes e caras obras de infraestrutura. Freud, por sua vez, é inovador tanto por produzir uma nova teoria da mente humana quanto novas técnicas terapêuticas que influenciam o mundo. Na filosofia, Husserl abre as portas para uma nova geração de filósofos ao romper com o positivismo e dedicar seus estudos à intersubjetividade em detrimento da externalidade da matéria. E Boltzmann (nem sempre lembrado como o terceiro pai da física moderna) funda a mecânica estatística que sustentará matematicamente tanto a mecânica quântica de Planck quanto a Teoria da Relatividade de Einstein, por aproximar a probabilidade e as médias da Segunda Lei da Termodinâmica. Entretanto, apesar de brilhantes, esses foram transgressores e, exatamente por conta disso, sofreram hostilidades da comunidade acadêmica estabelecida na época. Se, por um lado, o ambiente intelectual de Viena não se mostrou exatamente propício para que o modernismo prosperasse, por outro, foi a cidade adequada para que pudesse nascer. Rica, poliglota, cosmopolita e dinâmica, Viena vivia um paradoxo: uma das maiores cidades da Europa – com seu crescimento urbano comparável ao crescimento urbano de Chicago –  também representava a sede do velho mundo e uma das cidades mais católicas do continente.

Herdeiros do Sacro Império Romano Germânico e da Dinastia dos Habsburgo, uma das famílias imperiais mais tradicionais e influentes da Europa, também possuía um dos mais prestigiados e avançados centros universitários do mundo, a Universidade de Viena. Apesar do interior do Império ser majoritariamente rural e existir concentração de renda, não se tratava de um regime autocrata como era a realidade dos vizinhos russos. Viena era sede administrativa de um império multicultural e politicamente dividido por diversos grupos étnicos que participavam de um intenso processo de urbanização desde a metade do século XIX. Tchecos, sérvios, alemães, poloneses, italianos, austríacos, húngaros, croatas eram submetidos à legitimidade da Constituição de 1867.

Por outro lado, a vitalidade da constituição que pretendia preservar a estabilidade institucional da panela de pressão étnica não durou muito tempo, logo todas as nacionalidades começaram a atacar o Império. Talvez seja exatamente por esse motivo que a Constituição Liberal do Imperador Francisco José I tenha resistido ao começo do século XX, tendo em vista que os diferentes grupos compartilhavam de uma característica em comum: todos eles detestavam o governo e também odiavam uns aos outros, principalmente húngaros e alemães¹. A pressão étnica no âmbito local combinada com as pressões nacionalistas do cenário internacional trouxeram a dupla sensação de fim de século e começo de uma nova era.

Em Viena, o desejo de conservação coexistia com os processos de inovação; os movimentos de restauração conviviam com os movimentos de mudança. Todavia, a orientação de tempo vienense nunca foi uma orientação para o futuro². O temor das revoluções foi uma constante durante todo o século da Viena Imperial, a ponto do governo proibir ferrovias e estradas durante o próspero século XIX (que foi o século da Revolução Industrial). Não se tratava exatamente das estradas em si, mas da penosa decisão que precisa ser tomada: qual seria a língua que o governo iria decidir escrever nas placas de trânsito? Por outro lado, a dinâmica não era exatamente de repressão e atraso. Viena era muito mais rica e desenvolvida que seus vizinhos (Rússia e Império Otomano) e também mais livre. As inovações vienenses não eram combatidas, mas sim eram tratadas com indiferença. Quando vienenses fundaram o primeiro instituto organizado de aviação do mundo, em 1880, ninguém notou. A dissertação de Hermann Oberth sobre foguetes espaciais foi rejeitada pela universidade³. O Imperador Francisco José manteve-se descrente em relação ao telégrafos, telefones, máquinas de escrever, luzes elétricas, e elevadores até o fim do século XIX e se recusou a dirigir um automóvel até ser constrangido por Eduardo VII da Inglaterra já no século XX. O soberano também fechava as cortinas do palácio para não ver modernas rodovias construídas por Adolf Loos, pois esteticamente o Modernismo para ele era odioso.

De modo geral, era uma sociedade incapaz de contemplar o novo, mas não incapaz de inventá-lo. E por conta disso os modernistas austríacos, à medida que alcançaram renome, ou deixavam a cidade ou deixavam, cada vez mais, de serem austríacos. No caso de Boltzmann, a situação foi mais trágica, a resistência às suas idéias o fez desistir da própria vida.

Sabemos que com a Grande Guerra de 1914, iniciada justamente com o assassinato do herdeiro ao trono do Império austro-húngaro, Francisco Ferdinando, por um grupo terrorista de cunho nacionalista chamado Mão Negra, o Império se dissolverá. A exemplaridade do ambiente político cultural vienense, contudo, segue pertinente: afinal, não apenas há um contínuo nos acontecimentos do século XX que envolvem direta ou indiretamente Viena – as grandes guerras sendo o mais proeminente deles –, como a própria tensão entre o tradicional e a vanguarda, entre a identidade cultural rígida e o multiculturalismo institucional continuam a nos falar muito de perto.

Notas

¹ Os Primeiros Modernos. William R. Everdell. Editora Record. Ano 2000.
² Os Primeiros Modernos. William R. Everdell. Editora Record. Ano 2000.
³ Os Primeiros Modernos. William R. Everdell. Editora Record. Ano 2000.

Marize Schons

Marize Schons é professora no curso de Relações Internacionais do Ibmec-MG, mestre em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Doutoranda em Sociologia pela mesma instituição.