Cinema

“A vida inteira que podia ter sido e que não foi”: O Quarto Verde, de François Truffaut

por Miguel Forlin

“Não é por os outros estarem mortos que a nossa afeição por eles diminui, mas porque nós mesmos morremos.” Marcel Proust

Na entrevista dada a Catherine Laporte e Danièle Heymann em 1978, François Truffaut disse: “Acabo de completar quarenta e seis anos e já começo a ficar cercado de desaparecidos. (…) De tempos em tempos, as pessoas que perdi me dão saudade, como se acabassem de morrer”. 1978 é o ano de lançamento de O Quarto Verde, filme poucas vezes lembrado pelos críticos e que endereçou uma série de preocupações que o diretor vinha tendo nos últimos anos, muitas relacionadas ao falecimento de entes queridos e à noção de mortalidade. A leitura que parece tê-las resumido foi O Altar dos Mortos, de Henry James, novela que leu no período em que se debruçava sobre a obra do autor.

O livro e o filme têm como protagonista um sujeito obcecado pela morte. Ele consagra os seus dias à memória da amada e dos amigos mortos. Toda a sua vida gira em torno dos rituais criados a partir das imagens e símbolos desses fantasmas. O cenário mórbido é perturbado pela presença de uma mulher que, assim como a personagem principal, também se dedica à memória de um falecido. No entanto, por ter tido um conflito no passado com a figura de devoção da intrusa, ele sente dificuldade em perdoar, o que ocasiona um abalo nas suas crenças e o leva a um estado total de isolamento e declínio físico.

A morte não é um tema estranho ao cinema de Truffaut. Desde os primeiros esforços, quando ainda era associado ao espírito livre e jovial da Nouvelle Vague, o cineasta pincelava as suas odes à vida ou ao cinema com fatalismo e luto. Em Jules e Jim – Uma Mulher para Dois, por exemplo, a celebração da juventude e do amor termina com a morte de duas personagens e uma terceira tendo de lidar com as consequências da trágica perda. Em Atirem no Pianista, há a fuga do protagonista da mira de gângsteres e o suicídio da sua ex-esposa. Já em A Noiva Estava de Preto, a morte chega a vestir e orientar todas as intenções da assassina interpretada por Jeanne Moreau.

Aliás, essa associação simbólica e temática entre a destruição e o amor percorreu toda a sua filmografia. São os amantes que se matam, que não conseguem esquecer, a viúva sedenta por vingança, os adúlteros consumados pela culpa, a saudade que cessa jamais; ideias aparentemente opostas que, no universo do diretor, se associam e deixam um rastro de sentimentos incompletos e sangue. No entanto, em nenhum outro filme esses temas adquiriram uma representação como a que vemos em O Quarto Verde. Se, nos outros casos, eram abordados dentro das regras internas de um gênero específico (como o melodrama ou o noir), no filme de 1970, eles superam qualquer imposição narrativa e entram na seara do religioso.

Inicialmente, a aparência é de uma fábula. O próprio Truffaut admitiu que um dos seus objetivos era traçar paralelos com os filmes da Universal da década de 1930. Segundo ele, “isso começa com a cena da tempestade, da janela que se abre bruscamente, e continua com o episódio do manequim de cera, que é uma referência a Ensaio de um Crime (do Luis Buñuel), e com a noite passada no cemitério. (…) Estamos na fábula, no “Era uma Vez”. Esse é o tipo de filme em que a forma é muito importante. O principal elemento estético que reforça essa sensação é a música: “Tudo nele deve ser bem concertado, bem ajustado. Na verdade, tudo é sincronizado sobre a música de Jaubert, o Concert flamand, que foi gravado antes da filmagem. O Quarto Verde foi construído como uma comédia musical em que não se dança nem se canta”.

Entretanto, a recorrência de símbolos religiosos (como cruzes), a sincronia de movimentos que o cineasta diz ser essencial e a intimidade com que ele lida com o material fazem com que a narrativa transcenda as liberdades criativas da fábula e se coloque numa outra esfera. O padre que é tirado à força do velório, o altar que é reconstruído sobre os escombros da capela e as fotos substituindo imagens de ídolos apontam para o que seria uma nova religião, um culto, com a mesma rigidez das tradicionais, mas direcionada a um deus mortuário. Curiosamente, Truffaut seria o primeiro a dizer que o filme não é sobre a morte. Certa vez, ele afirmou: “É efetivamente uma extensão do amor pelas pessoas que conhecemos e que se foram, e da ideia de que elas permanecem”.

Esse, de fato é um aspecto do longa, além de ser o espírito que reina na novela de Henry James, mas, inegavelmente, é o aparato posto ao redor dos que já partiram que inspira todas as ações dessas pessoas. O amor e o perdão estão presentes em momentos cruciais da história, porém, tanto a personagem principal quanto a garota que passa a acompanhá-lo não conseguem integrar as lembranças e a morte no curso natural de suas vidas. Como o próprio Truffaut disse, o protagonista é “um semi-louco”, alguém com “uma ideia fixa”. São vidas interrompidas, o que os brilhantes fade-outs dispostos ao longo do filme (e que me trouxeram à mente as pausas angustiantes na sufocante sexta sinfonia de Tchaikovsky) reafirmam fortemente. A escuridão que os engole, a música que marca o compasso dos gestos e a fotografia dos artistas e dos amigos falecidos de Truffaut impedem que haja vida. Pelo contrário, sufocam. O Quarto Verde é, em essência, um culto à morte.

Invariavelmente, isso nos leva ao que ele nega, ao que está ausente, que seria, justamente, a vida, mais precisamente, a vida que as personagens poderiam ter. Há diversos olhares indicando interesse mútuo, os quais são breves sopros de ar na câmara fúnebre. Mas todos sucumbem diante do peso da memória, se configurando apenas como possibilidades. Nesse sentido, uma outra obra literária de Henry James na qual Truffaut visivelmente se inspirou é A Fera na Selva, mas sem o aprendizado de que dela se extrai. A distinção fica por conta do tempo: no livro de James, é a promessa de um evento hipotético no futuro que faz com que um homem desperdice totalmente a sua vida. No filme, é o que ficou no passado que não se atualiza nunca no presente.

Desse jeito, Truffaut operou um imenso maquinário, com diversos movimentos de câmera, ação sincronizada, trilha romântica, atuações intensas e montagem criativa, para retratar o que seria a falta disso tudo, a total inatividade. É uma obra de arte que versa sobre o oposto que a constitui, e isso também vale para o aspecto religioso. Em O Quarto Verde, o que não é mostrado é o que existe de mais material. Todavia, essa eterna possibilidade acaba por não levar a lugar algum. Ao fim, o que ressoa nos nossos ouvidos são os ecos dos fatais versos de Eliot em “Burnt Norton”:

“O que poderia ter sido é uma abstração que permanece,
Perpétua possibilidade, num mundo apenas de especulação.
O que poderia ter sido e o que foi convergem para um só fim, que é sempre presente.”

Miguel Forlin

Miguel Forlin é crítico de cinema e colaborador de diversas publicações na área.