Filosofia

Pico della Mirandola e a teia do conhecimento

por Anna M. Padoa Casoretti

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Festejado como o mais jovem, belo e carismático filósofo de seu tempo, Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494) não usufruiu da leveza que tais atributos poderiam lhe render. A magnitude de sua inteligência ocupou-se em manter sua mente suficientemente atormentada por inquietações. Nem mesmo os assuntos do coração o seduziram por muito tempo; descobriu logo cedo que sabedoria e romance não costumam andar juntos. Sim, para muitos, tratava-se de um homem sábio. Para alguns, mais que isso: após quase três décadas de sua morte, seu conterrâneo Nicolau Maquiavel se referiria a ele como “homem quase divino” (História de Florença).

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Uma personalidade controvertida 

Fruto de seu século ou, quem sabe, de uma personalidade marcada por contrastes, seu livre pensamento não deixou de atrair detratores,  incomodados, talvez, em ver o Conde transitar por círculos de diferentes matizes, sem se deixar cativar por nenhum.  De fato, as vestes da aristocracia não foram vestidas de forma confortável, pois a escolha de uma vida filosófica não fazia parte do repertório usual da nobreza no século XV, circunscrita ao clero ou à corte. Com os humanistas, não se sentia propriamente entre os seus (como abraçar as discussões sobre a vida ativa em detrimento dos grandes conteúdos metafísicos?).  Os amantes de Platão o consideraram demasiado escolástico. Aristotélicos mais veementes, por sua vez, como o amigo de longa data Ermolao Barbaro, acusaram-no de traição quando abraçou o Platonismo. Até mesmo Savonarola, com o qual compartilhou da mesma ardente fé nos últimos anos de vida, irritou-se com sua relutância em vestir os hábitos dominicanos. Tais controvérsias, ao se aliarem a uma personalidade extravagante, à fama de gênio multifacetado — promovida pelo conhecimento enciclopédico e por pequenos atrativos como a capacidade de recitar de trás para frente qualquer poema que acabasse de ler — e a um conjunto de circunstâncias extraordinárias — como uma vida marcada pela tragédia e a morte prematura aos 31 anos —, contribuíram para criar uma atmosfera de encanto em torno ao seu nome.

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Florença

Giovanni Pico nasce no pequeno condado de Mirandola e, após nutrir-se intelectualmente em Bolonha, Ferrara e Pádua, principais centros acadêmicos italianos, elege Florença para se estabelecer. Na segunda metade do século XV, respirava-se na urbe toscana uma atmosfera intelectual pujante, em que acaloradas discussões sobre a vida civil conviviam com intensos debates acerca da alma, contaminando diferentes núcleos da sociedade e pessoas “comuns”, tais quais médicos, profissionais liberais e funcionários públicos. Afinal, aquele burgo às margens do Reno não assistiu apenas às transformações urbanas impulsionadas por brilhantes arquitetos como Brunelleschi e Leon Battisti Alberti, mas também acolheu o Concílio de ’39, que, colocando em confronto alguns dos maiores pensadores latinos e bizantinos, modificou profundamente a esfera das ideias.

Com tantas efervescências a serem compartidas, a casa florentina de Pico rapidamente torna-se um ambiente concorrido, abrigando debates de variegadas vertentes; ali podiam ser encontrados filósofos peculiares — árabes, hebraicos, aristotélicos, platonistas —, bem como poetas, literatos, estudiosos de Petrarca e de Dante. Vivia-se o renascimento da filosofia platônica (agora em novas vestimentas teológicas), enquanto judeus banidos de outros territórios chegavam à península itálica trazendo na exígua bagagem muita erudição que poderia ser trocada por digna sobrevivência. Os bizantinos, por sua vez, deixando a recém tomada Constantinopla para trás, presenteavam o mundo latino com Hermes Trismegisto, alguns Diálogos inéditos de Platão e fragmentos de Esoterismo.

Era uma estação magnífica, embora fustigada por tensões. As novidades provindas das trocas culturais compunham ingredientes a serem dosados com o devido cuidado para não ferir as sensíveis relações com a Igreja. Vislumbres da existência de denominadores comuns entre as filosofias aprendidas na academia, os conteúdos teológicos de sua fé e aquelas tão frescas quanto priscas doutrinas passam a fermentar no jovem Mirandolano, aumentando suas inquietudes. É no desconforto da alma que se alcançam as maiores realizações e o desassossego de sua época leva Pico a esforços invulgares.

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As Novecentas Teses  

Assim, em 1486, com apenas 23 anos e munido de todo seu arsenal de conhecimento, Giovanni Pico leva a termo uma obra de grande magnitude: publica suas Conclusiones Nongentae, ou Novecentas Teses, nas quais procura conciliar, em complexa empreitada, as diversas correntes filosóficas e teológicas com as quais tivera contato. O intento final de seu vasto trabalho seria o de promover, em Roma, uma discussão pública tão ampla quanto possível, que reunisse filósofos de todas as tendências, para travar uma contenda omni scibili, um debate acerca de tudo o que era conhecido (ou, ao menos, sobre o conteúdo de suas novecentas proposições).

Procurando esclarecer a intenção pretendida com as Teses, Pico redige uma “introdução”, elucidando que, a partir da união de certos pontos extraídos das doutrinas apresentadas, seria possível desvelar a “verdadeira filosofia”.  Na ocasião de sua redação, o Escritor não teria imaginado que aquela introdução, publicada e nomeada após sua morte com o título Oratio de Hominis Dignitate, tornar-se-ia sua obra mais prestigiada — elevada por Eugenio Garin, alguns séculos mais tarde, ao status de “manifesto do Renascimento” —, enquanto a obra maior seria lançada à condenação e ao olvido. Fato é que, além de não gozarem da profícua repercussão da Oratio, as Teses acabam por se estabelecer como um divisor de águas na vida de seu autor. Antes, existiam os estudos, os debates com os acadêmicos, as conversas com os amigos, a vida fervilhante de Florença, a audácia da juventude e o seu vir-a-ser. Poucos meses depois, a fuga, a excomunhão da Igreja, a necessidade de abandonar seus estudos mais estimados, a reclusão.

Mas, o que havia de mal em suas Teses? Para os doutores da Igreja, parecia uma absurdidade que um leigo, desprovido de qualquer autoridade eclesiástica, afirmasse ter encontrado um novo método de alcançar a sabedoria universal, trouxesse teologias exóticas para o debate e, pior, pretendesse discutir os dogmas com o intento de reformar a Igreja ao som de silogismos retóricos. Como se não bastasse, Pico mandou imprimir as Teses, afixou-as em lugares públicos e distribuiu-as aos amigos, sem o devido aval da Cúria Pontifícia ­— uma petulância intolerável!

Não era sua intenção, contudo, afrontar a Igreja. Queria apenas compreender o íntimo sistema de correspondências e graduações entre os diferentes mundos. Em sua procura, fazia-se necessário percorrer doutrinas “pagãs” como as misteriologias grega, egípcia e persa, sem poupar esforços em escarafunchar bibliotecas atrás de secretos manuscritos ou em especular acerca de veladas conexões entre as mais distantes doutrinas. Não seria estranho, pois, encontrá-lo lendo, alternadamente, o Corpus Hermeticum, o Corão, os Oráculos Caldeus, atribuídos a Zoroastro, e o Livro da Criação, pilar do misticismo judaico. Tais leituras formariam o substrato da teologia piquiana que, conjugando-se aos dois pilares da Filosofia, o Platonismo e o Aristotelismo, viriam a constituir um amplo esquema epistemológico de encontro dos saberes.

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A teia de aranha

Qual um observador da natureza diante de uma entrançada teia de aranha, Pico coloca-se perante a trama do conhecimento, movido pelo ardor em compreender o todo a partir de suas particularidades.  O trabalho das Teses leva-o a estudar detalhadamente os fios que partem do centro da teia, cada fio correspondendo a uma escola de pensamento. Em seguida, ocupa-se com os fios de ligação, que compõem circunferências concêntricas ao redor do núcleo central, unindo os fios principais. Tais fios “acessórios” representam as correspondências que unem cada teoria ou doutrina metafísica, em diferentes níveis periféricos. Por fim, ao afastar o olhar e observar a teia em sua completa tecitura, o Filósofo lança-se ao enredo principal, confirmando a confluência de todos os fios em direção ao núcleo e postulando, assim, a convergência teleológica, a unidade do conhecimento, a pax unifica.  

Entretecida junto aos fios da teia, situa-se a dignitas do Homem, aqui entendida como uma posição que, não definida em sua origem de forma imutável, pode ser modificada a depender de um ato de vontade. Mais do que simples possibilidade, tal atitude mostra-se um imperativo, conforme se lê na Oratio de Hominis Dignitate.  Atravessar os vários níveis periféricos ao redor do núcleo para realizar a dignidade prescrita não é, contudo, tarefa simples, pois os grilhões dos estratos inferiores não permitem um desembaraço com facilidade. Esse é o momento em que, para explicar potenciais deslocamentos ao longo da trama cosmológica, Pico é levado a embrenhar-se através de esferas transcendentes ligadas a territórios esotéricos.  Uma condição necessária para que o Autor dê sustentação a seus pressupostos e alcance os fins pretendidos. Fica a mensagem piquiana a clamar que no uso da plena liberdade se encerra a chave para ultrapassar limites estabelecidos e cumprir o papel humano em sua excelência.

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Por fim

O que torna Giovanni Pico um dos mais significativos representantes de sua época é o arbítrio com o qual se entrega a diferentes correntes sem se deixar restringir por nenhuma; dispõe, dessa forma, um legado que sintetiza as principais investigações do pensamento conhecidas até então. O conjunto de sua obra contempla recolhimentos do passado, mediante a rememoração  histórica de filosofias e teologias dos séculos anteriores; manifesta, de forma notória, os relevantes fermentos e anseios de seu presente, permitindo que se compreenda boa parte do movimento filosófico renascentista italiano; e, por fim, lança desafios que serão retomados no futuro, concebendo, por intermédio de uma fértil insatisfação,  uma herança que precede a profunda reconstrução que virá a termo no século posterior. Assim, transbordando os limites do termo “humanista”, o último pensador do Quattrocento mostra-se perfeito integrante de uma categoria singular, aquela que contempla as grandes mentes do Renascimento.

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(Supostamente,) Pico della Mirandola na ‘Escola de Atenas’

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Anna M. Padoa Casoretti

Anna M. Padoa Casoretti é filósofa. Doutora em Filosofia Renascentista e Mestre em Filosofia Antiga pela PUC-SP. Autora do livro Pico della Mirandola, o Esoterismo como categoria filosófica, recém-publicado por Edições Loyola. A tese de mesmo nome recebeu o prêmio Anpof de melhor tese nacional de Filosofia do biênio 2019-2020.