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O Brasil em pé de guerra: o que Machado de Assis tem a nos dizer sobre isso?

por André Chermont de Lima

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Machado de Assis (Reprodução: Arquivo Nacional)

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Passeávamos, eu e minha mulher, por uma cidadezinha no meio do nada. Era cedo pela manhã e as ruelas, que se confundiam com o mato de tão pequeno que era o lugar, estavam desertas. Foi natural, então, que tivéssemos olhado com certa atenção as primeiras pessoas que passaram por nós, debaixo do sol já forte. Era um casal. Achei ter reconhecido o homem e, embora não inteiramente seguro, chamei-o pelo nome. Os dois já tinham passado por nós, e se viraram surpresos quando nos ouviram. Eu estava certo.

Não vou revelar o lugar nem a identidade do homem, um grande artista brasileiro. Basta dizer que aquele meio do nada não ficava no Brasil — daí a surpresa, deles e nossa. Eu já havia sido rapidamente apresentado a ele noutra ocasião, o que justificou minha liberdade de chamá-lo, embora, claro, ele não se lembrasse de mim. As (re)apresentações foram cordiais e explicamos, de parte a parte, os contextos que nos levaram ao encontro quase surreal na aldeiazinha. Estávamos todos de férias. Em cerca de três minutos, a conversa caiu na política. Escutei queixas, fiz as minhas. O grande artista mudou de tom, soltou opiniões incisivas. Também tínhamos as nossas. Como política não é religião, nem cor de pele, nem mesmo futebol (porque no futebol você não tem a menor chance de convencer seu oponente a mudar de time), qualquer argumento ou ideia é potencialmente discutível, rebatível, frágil.

A conversa acabou momentos mais tarde, talvez com um pouco menos de cordialidade do que quando começamos, cada par seguindo seu caminho oposto, dando de costas um ao outro. Se tivéssemos prosseguido algum tempo mais, talvez o desfecho tivesse sido pior. Mas os quatro éramos pessoas civilizadas. Civilizadas para quê? Para não prolongarmos uma conversa que poderia — apenas poderia — transformar-se numa altercação desagradável. Pensei, então, que a civilidade é mera questão de se saber administrar o tempo, e de controlar as circunstâncias. Sabemos que não somos civilizados indefinidamente.

Esse encontro entre quatro brasileiros numa terra estranha, apesar das condições inusitadas, seguiu um protocolo bastante previsível. Não há mais situação plausível em que não metamos política na conversa. Estamos todos nos acostumando, e por isso não preciso me estender no ponto, com o hábito de perder amigos antigos e queridos, fazer inimigos de desconhecidos, ou determinar novas amizades por causa da política. Sei que de certa forma estou sendo elitista ou, pelo menos, reducionista: o espírito beligerante que adquirimos nos últimos anos não atinge uniformemente todas as classes sociais nem grupos etários. No entanto é lícito, já que esta proposta não é um estudo sociológico, mas antes um ensaio em cima duma percepção, afirmar que a recente “politização” da sociedade brasileira se traduziu, em geral, num estado de ânimo colérico (mais do que sanguíneo, se quisermos seguir Hipócrates) e numa disposição maior para a troca de insultos e murros. As razões podem tanto ser procuradas nos manuais como nas ruas: a “índole” violenta, que finalmente migrou da esfera privada para a pública, matando de vez o mito do “homem cordial”; o efeito desagregador das redes sociais, catalisado pela multiplicação das fake news; a irrupção de novos comportamentos e parâmetros sociais, e a reação a eles; a sucessão de episódios dramáticos (e traumáticos) que marcou nossa história política nos últimos sete ou oito anos; as consequências da crise econômica; a perda generalizada da fé e da esperança no país e nas lideranças. Toda essa lista de hipóteses tem validade, ao menos como hipóteses, e vem sendo suficientemente debatida fora deste ensaio. O que me interessa aqui é explorar outro tema — e com ele ressuscitar Esaú e Jacó, de Machado de Assis. Se tal exploração não der em nada, teremos pelo menos feito a boa ação de resgatar uma das peças mais subestimadas de nossa literatura.

Diz a piada que o brasileiro não conhece mais os 11 titulares da Seleção, mas sabe de cor os 11 ministros do STF. Mais do que brincadeira, mais que autoelogio, a constatação reflete uma realidade feia e crua como o chão da calçada; poderia festejar a politização de nossa gente, tão desejada por setores das esquerdas que acusavam, até pouco tempo, nossa sociedade “alienada”. Poderia festejar nosso amadurecimento, o fim de uma espécie de idílio freyreano em que preferíamos ser reconhecidos como o país do carnaval e do futebol, o berço do já mencionado “homem cordial” (apesar da ironia com que a expressão foi construída), o Éden “onde se plantando tudo dá” etc. Até o início desta década que agora chega ao fim, o Brasil vivia uma daquelas fases em que se encontrava de bem consigo mesmo: tínhamos vencido os pleitos para sediar a Copa e as Olimpíadas, desbancávamos até o Reino Unido no ranking das maiores economias, a vaidade era medida pelos carinhos dos grandes líderes e elogios de capa de revista. Embora se tratasse de mais um período cíclico de bonança e otimismo, como tínhamos vivido nos anos 50, no início da década de 70 (com as devidas e marcantes ressalvas) e no meio dos anos 90, alguns achavam que finalmente tínhamos chegado “lá”. Foi, como logo se viu, uma “flor entre dois abismos”, para recordar a frase de Liszt dita noutro contexto. A diferença entre essa boa fase e as anteriores foi o que ela acarretou para nossa psique: seu fim repentino, engatilhado pelas revelações da Lava-Jato e uma crise econômica da qual nunca saímos, representou um trauma cujas consequências não dão sinal de arrefecimento. Alguns saudosistas falam na impossibilidade do perdão, em um país dividido entre lados irreconciliáveis. Seria apenas isso? Seria possível admitir a perda de nossa inocência, um ritual que, por mais doloroso, é inerente ao desenvolvimento ético, emocional e mesmo físico de indivíduos e grupos? Vem-nos à mente o famoso poema de Yeats, no qual a “cerimônia da inocência” se afoga em preparação para a revelação, a “Segunda Vinda”.[1]

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Escrito quatro anos antes de sua morte, Esaú e Jacó é o penúltimo romance de Machado de Assis. Ficou, imerecidamente, à sombra dos três grandes livros anteriores; não porque seja melhor, mas por ser brilhante à sua maneira. É uma obra-prima única, diferente, que merece ser mais lida e admirada.[2] Metáfora atrás de metáfora — e em seu estilo tardio Machado faz uso insistente de figuras de linguagem — a obra se desenrola em torno dos gêmeos Pedro e Paulo, inspirados nos filhos de Isaac, que no Gênesis já brigavam no ventre da mãe (Jacó nasceu com a mão agarrada ao calcanhar de Esaú). O pano de fundo são os últimos 30 anos do século XIX, cujos eventos históricos pautam o ritmo do romance: a Lei Áurea, o Baile da Ilha Fiscal, a queda do Império, o Encilhamento, a Revolta da Armada. Ao contrário dos irmãos bíblicos, os machadianos não disputam a primogenitura nem gozam de preferências por parte de pai, mãe ou Deus (que deu a Jacó a tarefa de fundar a nação de Israel); são criados com o mesmo amor num lar privilegiado, e apesar disso rivalizam em tudo. Quando crescem um pouco, Paulo se torna republicano e Pedro fiel súdito do Imperador. Após a proclamação da República, a oposição ao regime só troca de nome. Disputam, silenciosamente, a mesma mulher, a linda Flora, e no fim se elegem deputados, representando partidos adversários. A aversão que têm um pelo outro é tão forte que se reconciliam duas vezes, solenemente, sobre as almas das duas mulheres que mais amam — em vão.

A história de Pedro e Paulo não é um espelho literário do episódio bíblico. Lembremos que Esaú e Jacó se reconciliam. O pessimismo de Machado de Assis expõe, na verdade, uma disputa íntima cuja cara política é superficial, efeito e não causa, mero “incidente”. Tampouco é um antecedente fiel do que acontece hoje no Brasil. Esaú e Jacó serve, antes, como uma sombria coleção de referências e — quem sabe — lições que se pode resgatar, mesmo que seja para admitir que não há saída.

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Capa da primeira edição de Esaú e Jacó

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Como foi dito, os irmãos brigam desde o útero. Adivinhando a rixa, a cartomante no Morro do Castelo, que a mãe Natividade vai visitar para saber do destino dos bebês, afirma: “Brigaram no ventre de sua mãe, que tem? Cá fora também se briga. Seus filhos serão gloriosos… quanto à qualidade da glória, coisas futuras!” Este é o primeiro capítulo do romance. Daí para a frente, os meninos passam a infância trocando socos e xingamentos e, quando tomam pé da política, escolhem caminhos opostos. Unem-se apenas no amor por Flora, o que, claro, não passa de mais um motivo para se desentenderem.

Uma profusão de personagens magistrais orbita em volta dos dois gêmeos: Flora, a mãe Natividade e o Conselheiro Aires, protagonista deste e do último romance de Machado, Memorial de Aires,[3] são os mais poderosos, mas há muitos outros. Santos, marido de Natividade, o ambicioso arrivista; os pais de Flora, um casal de sangue macbethiano suavizado pela época e pelos trópicos, “temperado pela sobriedade” do autor, nas palavras de Alfredo Pujol; o mendigo-tornado-burguês Nóbrega, o apaixonado funcionário público Gouveia, as viúvas Perpétua e Rita, irmãs de Natividade e Aires. É importante notar que os acontecimentos políticos que varam o livro são sentidos por todos os personagens, com maior ou menor força, direta ou indiretamente, mas Pedro e Paulo são os únicos que mostram pura fidelidade aos seus princípios. Todos os demais são gente de opinião fluida, ou sem opinião: circulam com liberdade pelos episódios históricos, uns interessados em moldar a política aos próprios projetos, outros solidamente desinteressados, olhando os eventos à distância. O mais exemplar nessa categoria é o Conselheiro Aires: seu papel contemporizador vem da profissão de diplomata e do temperamento “disposto a aceitar tudo, não por inclinação à harmonia, senão por tédio à controvérsia”. Faz “gestos de dois sexos” para contentar divergentes e não raro oculta suas opiniões, não por medo, mas para evitar magoar os interlocutores ou envolver-se, ele, em confusões — o autor deixa claro, por exemplo, que Aires julga Pedro e Paulo inconciliáveis, coisa que ele só admitirá a Natividade nas últimas páginas. Aires é amigo e admirado por ambos: recebe-os em almoços frequentes, onde mais os estuda e observa que propriamente os une. Quanto à política, “sendo tolerante, professava virtualmente todas as crenças deste mundo”; sua carreira teve o “efeito que separa o funcionário dos partidos e o deixa tão alheio a eles, que fica impossível de opinar com verdade […] ou certeza”. Símbolo dessa postura que tenta dobrar a régua das opiniões para tocá-las no meio é a “flor eterna” na botoeira.

Flora, por sua vez, é a personificação da inocência. Toca suas sonatas ao piano para fugir das armações dos pais e meter-se num estado de “idealidade pura”, fora do tempo e do espaço. Em Flora, “não há governo definitivo. A alma da moça ia com esse primeiro albor do dia, ou com esse derradeiro crepúsculo da tarde — como queiras — em que nada é tão claro ou tão escuro que convide a deixar a cama ou acender velas. Quando muito, ia haver um governo provisório”. Aires a denomina “inexplicável”. Ao contrário do adorno eterno do Conselheiro, porém, ela desbotará, porque não consegue resistir à dúvida massacrante do amor por dois homens, ao mesmo tempo tão iguais e tão diferentes, ao mesmo tempo tão cuidadosos em evitar a investida que pode ser mortal para um deles. Flora sonha com ambos como se fossem um, tem noites e dias atormentados, delira acordada, até cair mortalmente doente de febre.

Natividade, uma das mulheres mais cobiçadas do Rio de Janeiro, converte-se numa mãe dedicada em tempo integral à harmonia entre os filhos. Desde que a cabocla do Castelo lhe abre os olhos para a realidade até seus minutos finais de agonia, ela só pensa na reconciliação permanente, que, talvez, a exemplo do amigo e ex-flerte Aires, ela no âmago saiba que não conseguirá consumar. Mas as aparências são tudo, e ela mais crê numa paz romana (ou em guerra fria) que numa paz celestial. Natividade tem, por isso, um tipo diferente de inocência: ela é a “senhora verde” de “alma azul”, “um azul celeste, claro e transparente, que alguma vez se embruscava, raro tempestuava, e nunca a noite escurecia”. O vigor e determinação a diferenciam da melíflua Flora, embora a inocência esteja declarada em ambas.

Na outra categoria, a dos personagens oportunistas, estão os pais de Flora, os Batista. O pai, membro do Partido Conservador, havia ocupado uma presidência de província e agora recolhia-se em espera nervosa, enquanto D. Cláudia, essa Lady Macbeth tropical, amargava as saudades do poder. “Batista, você nunca foi conservador!”, bradou ela quando os liberais assumiram o gabinete, “você estava com eles como a gente está num baile, onde não é preciso ter as mesmas ideias para dançar a mesma quadrilha”. De repente Batista vira liberal, “quase radical”, e, para o horror de Flora, é-lhe prometida uma presidência de província. A República a salva, mas não por muito tempo; o pai elogia o Governo Provisório e ganha de presente de Deodoro uma comissão fora do Rio. Sobe ao poder Marechal Floriano, e Batista é chamado de volta; mas desta vez não bastam a audiência com o novo Chefe de Estado (cujo comportamento de esfinge, de “homem-talvez”, também aparece no extraordinário episódio da entrevista presidencial em Triste Fim de Policarpo Quaresma), nem a reza de Flora a seu “Cristo particular”, agora não para ficar, mas para fugir do amor indeciso pelos dois irmãos.

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Estamos falando de Machado de Assis, porém, e nele as coisas nunca são óbvias nem cristalinas. Antes mesmo de se elegerem deputados, ao final do livro, Pedro e Paulo começam a dar sinais de “troca de inclinação” — o primeiro simpático ao governo republicano, o segundo com um crescente ânimo oposicionista aos desmandos dos marechais. Apesar disso, no início da legislatura são vistos sempre juntos e chegam a votar juntos, para a perplexidade das respectivas agremiações; mais tarde concordam que a promessa feita à mãe não alcança suas obrigações partidárias; passados alguns meses, não mais se falam.

Vê-se que mesmo entre os gêmeos a adversidade em si é o que importa, não os seus fatores. A política é um “incidente”, nas palavras de Aires, ou uma sequência de incidentes, cujo somatório final se aproxima do zero e só serve ao propósito de desuni-los. Poderia, ao contrário, também uni-los, caso se amassem ou fossem pelo menos de índoles mais compatíveis; o conservador Batista não virou amigo dos liberais? Aires não era querido por todos, com suas opiniões pairando acima das banalidades? Uma das mensagens implícitas que Machado nos deixa é a de que, por mais agitada que tenha sido nossa história naqueles 30 anos finais do século, o Brasil pouco mudou em sua essência. As quarteladas e os estados de sítio passam, assim como as riquezas do Encilhamento que “caíam do céu”: “a morte não é outra coisa mais que uma cessação da liberdade de viver, cessação perpétua, ao passo que o decreto daquele dia [o estado de sítio] valeu só por 72 horas. Ao cabo de 72 horas, todas as liberdades seriam restauradas, menos a de reviver” — eis um dos trechos mais tristes e belos da obra de Machado de Assis, o enterro de Flora. Numa das muitas reflexões que dirige diretamente ao leitor, ele defende que a história não é um “trem de ferro”: “tu viste”, continua, “que só andamos por terra, a pé ou de carro, e mais cuidadosos da gente que do chão”. No famoso episódio da tabuleta, o dono da “Confeitaria do Império” vem se lamentar com Aires do dinheiro gasto ao mandar repintar o pedaço de madeira à véspera da queda do regime, e agora se desespera com os riscos que o nome inadequado pode levar a seu negócio. A saída, claro, é apagar o que estava escrito e substituir por qualquer outro novo nome: “as revoluções trazem sempre despesas”, conclui Aires, para o transtorno do confeiteiro sovina. É irônico como Petrópolis, que, tal como a tabuleta, também leva a monarquia no nome, não muda, nem em como é chamada, nem no seu espírito. Os ricos continuam a subir nas férias de verão, e junto com eles, as festas e as fofocas. Petrópolis é cidade da paz, cidade neutra, reflete o diplomata aposentado.

A lógica lampedusiana de mudar para não mudar é, como vemos em Esaú e Jacó, uma força poderosa que se iguala ao ímpeto fratricida dos gêmeos. Trata-se, ao mesmo tempo, de bênção e maldição: ela age para impedir a implosão e a fragmentação, mas também travará a transformação.

Será que algum dia nos reconciliaremos como nação? A reconciliação, nesse caso, significaria uma volta à inocência, ao mundo que Natividade tanto se esforçou para criar: “a ingenuidade é o melhor livro e a mocidade a melhor escola”, ensina ele a Flora, quando ela o acusa, carinhosamente, de contraditório: “a vida e o mundo não são outra coisa”. Só que a inocência morreu duas vezes, e com ela a possibilidade de reconciliação, que se mostrou, ao final, uma ilusão. Tal qual a virgindade, não se pode mais recuperá-la. O preço é alto, e se paga tanto com as amizades destruídas quanto com coisas menores como a perda do humor. Tem coisa mais obtusa e chata do que pessoas excessivamente “politizadas”? E demos graças aos nossos deuses particulares por não termos travado uma guerra civil, pelo menos até agora.[4]

Eis a lição: “Natividade confiava na educação, mas a educação, por mais que ela a apurasse, apenas quebrava as arestas ao caráter dos pequenos, o essencial ficava; as paixões embrionárias trabalhavam por viver, crescer, romper, tais quais ela sentira os dois no próprio seio, durante a gestação…”. Machado parece se contradizer aqui, pois ao mesmo tempo em que decreta a inviabilidade da conciliação, declara a inevitabilidade da acomodação. No Brasil de Machado, como no Brasil de agora, as revoluções são natimortas e todos os receios, assim como os esforços, fúteis e desnecessários.

O trabalho da adivinha do Castelo, se pensarmos bem, não foi afinal tão desafiador. Era muito provável que Pedro e Paulo se tornassem grandes, dada a posição do pai e as circunstâncias em que nasceram; e é claro que, no Brasil, a qualidade de sua glória seria dúbia. Se brigariam ou não, dependia deles. Mas isso não afetou o fio das coisas, porque sua guerra era íntima.

“A discórdia não é tão feia como se pinta, meu amigo. Nem feia, nem estéril. Conta só os livros que tem produzido, desde Homero até cá, sem excluir… Sem excluir qual? Ia dizer que este, mas a Modéstia acena-me de longe que pare aqui”. Este trecho é emblemático do senso de humor do nosso grande autor. Não é humor inocente ou benéfico; está mais para condescendente, senão maldoso. Machado parece rir-se de nós em alguns momentos, como se encarnado na cartomante, falando enigmático em “coisas futuras”, enxergando-nos lá de trás neste aqui e agora em que brigamos tal qual Paulo e Pedro, sob os olhos oportunistas dos Batista. Ou vice-versa.

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Machado de Assis c. 1905, pintado por Henrique Bernardelli

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Notas:

[1] Reproduzo o poema integral, na tradução de Paulo Vizioli (in “Poemas – W.B. Yeats”, São Paulo, Cia. das Letras, 1992): “Girando e girando a voltas crescentes/O falcão não escuta o falcoeiro./Tudo se parte, o centro não sustenta./Mera anarquia avança sobre o mundo,/Marés sujas de sangue em toda parte/Os ritos da inocência sufocados./Os melhores sem suas convicções,/Os piores com as mais fortes paixões.

É certo, está perto a revelação;/É certo, está perto a Segunda Vinda./Segunda Vinda! Mal digo as palavras/E a imagem vasta do Spiritus Mundi/Turva-me a vista: no pó de um deserto/Um corpo de leão de crânio humano,/O olhar vazio e duro como o sol,/Move as pernas pesadas, e ao redor/Rondam sombras de pássaros coléricos./Volta a escuridão; mas eu sei agora/Que o sono pétreo desses vinte séculos/Deu em sonho mau no embalo de um berço./Qual besta rude, vinda enfim sua hora,/Arrasta-se a Belém para nascer?” (“A Segunda Vinda”).

[2] Curiosamente, Esaú e Jacó foi uma das duas únicas obras que Machado de Assis veria traduzidas para outro idioma — ganhou edição argentina no ano seguinte à publicação no Brasil. A outra foi Memórias Póstumas.

[3] Machado de Assis é dúbio quanto à autoria fictícia de Esaú e Jacó, cujo manuscrito, intitulado “Último”, aparece junto com os seis volumes do “Memorial” do falecido Conselheiro Aires. Não se sabe se o diplomata também teria “escrito” o romance, apresentando-se em terceira pessoa, ou se apenas agregara a obra anônima à sua coleção de memórias.

[4] Yeats nos reserva outro belo poema a respeito dos politizados (este sou obrigado a reproduzir no original): “How can I, that girl standing there,/My attention fix/On Roman or on Russian/Or on Spanish politics?/Yet here’s a travelled man that knows/What he talks about,/And there’s a politician/That has read and thought,/And maybe what they say is true/Of war and war’s alarms,/But O that I were young again/And held her in my arms!” (“Politics”)

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André Chermont de Lima

André Chermont de Lima é diplomata de carreira e atualmente exerce o cargo de Ministro-Conselheiro na Representação do Brasil junto à UNESCO, em Paris.