Poesia

Praia dos Ossos, por Lawrence Flores Pereira

………………………

Introdução ao poema, por José Francisco Botelho:

……………

Para que a grande poesia exista, é preciso que a experiência individual, sem perder nada de sua irredutível particularidade, reverbere e se projete no tempo, no espaço e no sentido: isso equivale a dizer que a poesia de estatura exige, além de uma simbiose entre imaginação e rigor, uma cruza de precisão e ressonância. Ela, a poesia, recolhe o instante, com toda a essência de sua estranheza, e transfere a nós esse achado, reesculpido, reentregue a si mesmo e desdobrado em muitas vozes. Todas essas qualidades serão encontradas no magistral poema que O Estado da Arte publica hoje: “Praia dos Ossos”, de Lawrence Flores Pereira.

Professor na Universidade Federal de Santa Maria (RS), Pereira já nos brindou com um livro de poemas, Engano Especular (sob o pseudônimo de Lawrence Salaberry), e uma série de traduções brilhantes e multipremiadas, que vão desde os clássicos gregos até T.S. Eliot, passando, é claro, por William Shakespeare. Seu Hamlet, seu Otelo e seu Rei Lear, todos publicados pela Companhia das Letras, são, de fato, obras-primas vernáculas, que engrandecem o idioma em que foram compostas e inscrevem o nome de seu autor-tradutor na história da literatura em língua portuguesa. Para nossa felicidade, Pereira segue não apenas traduzindo a grande poesia do mundo, como também escrevendo sua própria, e imensa, poesia — e com isso, linha por linha, vai nos enriquecendo e nos justificando.

Praia dos Ossos é um poema que combina o contemplativo e o extático — o resgate fervoroso de um espaço e de um instante; e a reverberação do sentimento individual na câmara misteriosa da arte, que é o próprio universo. As imagens de um dia, real ou imaginário, surgem como emblemas do estar-no-mundo, energizado pela força extraordinária das metáforas e imagens, que dizem o que dizem de forma simultaneamente exata e inusitada: “a geléia do dia ativo” que “súbito parou”; as “olheiras de prata marejada”; o mar “ainda núbil”; o mar “que já arrastou há muito no bojo/ os corpos/ de seus dez mil filhos dizimados”. O mar é o próprio mar; a praia é a própria praia; porém, ao mesmo tempo, tudo é símbolo: o mundo significa a si mesmo e é por isso mais nítido e mais enigmático. Percebam o poema, como se move num ritmo de enchente e de vazante: essa forma e essa cadência não apenas significam, como são o próprio mar, o generoso e o implacável, aquele que dá e rouba, com tudo o que perpetuamente diz à alma humana.

As dunas onde se contempla e se ama são também o deserto onde se conhece a perda e o agouro da perda, ou onde se invoca o que já se perdeu: Éden, Averno, abismo e retorno. Os ossos estão no fundo das águas, mas também nos grãos da praia: salgam os pés, onde quer que andemos. Relanceando esse instante e esse lugar, de topografia e tecido misteriosos, como o são todos os lugares e instantes que realmente importam, o poeta efetiva, no ápice de seu poema, um renascer dos mortos, em versos orgânicos de carne que se redoa aos ossos — e essa danse macabre estranhamente onírica é um emblema da convergência eterna, e eternamente indecifrável, entre o amor e a morte.

…………..

.…….…….

……………

Pushkin à beira do mar, por Leonid Pasternak, 1896

…………….

………….

Praia dos Ossos

Lawrence Flores Pereira

……………….

………………………………

Eu te observo,

…………………………admirável,

……………………………………………..há dias em teu retiro,

Onde vibráteis

…………………………os dedos de tua serenidade

Ponteiam as cordas

………………………………das brisas

…………………………………………………de Armação dos Búzios.

Que pés pisaram essas enseadas,

……………………………………………………essas praias

E esses portos de ossos?

……………………………………..A península,

com ímpetos de ilha,

……………………………….já arrastou há muito no bojo

Os corpos

………………..de seus dez mil filhos dizimados:

Ela aspira

………………….e sempre há de aspirar

……………………………………………………….à móvel estação do mar.

…………………………..

……………………Todo homem deve voltar ao mar: 

……………………Eu me encaminho e te procuro.

……………………Entre a terra e o mar.

……………………

Não há nada aqui,

 …………………………….não,

………………………………………não há nada,

Do chumbo aquoso

…………………………………do golfo amargo,

Nada do Abismo

……………………………sem-fundo, nada do báratro,

Já ancho

…………….de tanto

…………………………..ingurgitar seus filhos—

Os ceifados

…………………..na flor da idade,

Aqueles cujas

…………………….líquidas lápides

…………………………………………………ainda dançam nas vagas

 Cantam o semblante

…………………………………hirsuto

……………………………………………..que um dia arribou do mar.

Nada mais da safra

……………………………..de teus afluxos que drenavam

O rubro

…………….que, em tributo,

……………………………………..se pagava a um grifo.

(Em suas garras

……………………….manicuradas

Se refletia

……………….um mar ainda núbil.)

Ela que

…………….nos sonhos,

……………………………….com os cílios esguios,

Lapidava a menina

……………………………..cor de argila;

…………………………………………………..ele que a

Surpreendeu

……………………..naquele dia

………………………………………..junto à porta;

É ela que,  

……………….nas ressacas

…………………………………de suas noites

 insones no avarandado

…………………………………….te aguarda

……………………………………………………..junto à porta

e te olha com olheiras

……………………………….de prata marejada.

…………………

.…….…….

………………..

Hoje não há senão

………………..

Teu simples estar-aí,

………………………………sentada tranquila com tua música

Materna

……………que apazigua

 ……………………………….os ossos que desconheces.

……………………….

Ela veio para que

……………………………por instantes

……………………………………………..esquecesses

As ossarias

…………………e os detritos

………………………………….do país do medo

(Ninguém,

…………………….mesmo que guardadas as congruências

………………………

De um horror

………………………..a se disfarçar

……………………………………………de Quimera,

Mesmo que apascentem

……………………………………nesse vórtice os rebanhos

Do sonho,

…………………ninguém resistiria

………………………………………………ao turbilhão de teus clapotements,

Tu, que

……………ocultas com esguichos

……………………

O rútilo de Órion, 

……………………………Tu intuirias — irresistível —

O desejo de tua

………………………..terrível sentença,

 Avançando

…………………..na mirrada vegetação,

…………………………………………………….nas salinas

limpas, e no trovão longínquo.)

…………………………

………….Se um crime aqui se perpetrou,

………….O mar já consumiu seus traços

………………………                                           

 — mas que não seja acusado

…………………………………………….de esquecimento!

…………………

.…….…….

………………..

Entra,

…………Por favor,

……………….      

………………………..já não precisas,

Com gestos de pavor,

……………………………..temer as aragens,

 pois de longe

…………………….para além do canal

 ………………………………..

Das águas não chega nenhum mal.

 ………………………..

Aqui, já devem ter te dito,

…………………………………………o tempo é eterno.

 ……………………….

Sempiterna,                                        

………………….a bem-aventurança

…………………………………………………aqui no Averno;

 ………………….

As lufadas

……………………..ainda levantam

……………………………………………….os cachos

…………………………………………………………………da madre

Madrugada:

…………………..e o sol ainda se ergue, a terra move,

 ……………………

Alguém se embeleza.

……………………………….É bom então saber

Por que te lanças

…………………………..nesse patético innuendo

 …………………..

Sobre tuas perdas

……………………………..túmulos

……………………………………………e catacumbas

 Ossuários

………………..rios de ossos

……………………………………..e ossarias

 Infinitas

………………..sobre as quais se

…………………………………………….empilham

 As bases dos mundos.

…………………

.…….…….

………………..

Pois hoje — nestes dias —

………………………………………….o mundo parou de repente.

Noites dos meus avós,

.………………………………….quando as nítidas estrelas

Não se ofuscavam

………………………………atrás do carbono do dia.

Vocês estão de volta!

…………………………………E eu me pergunto

Se deveria festejá-las,

………………………………….e ao canto invernal da ave

Que não partiu,

………………………..e ela ainda

Chama,

……………..no frio do inverno,

…………………………………………….canto insistente cruzando a noite,

Ela,

……….sozinha na penumbra imensa

………………………………………………………entre as raízes intrincadas

Da seringueira.

…………………

.…….…….

………………..

A morte nos assaltou,

…………………………………Sua mão severa

 Me agarrou,

…………………………….às margens dessas praias,

Alma minha desamparada,

………………………………………….quando é que essa nuvem escura

Te deixará partir?

…………………

.…….…….

………………..

Pois sobre o vazio das cidades,

……………………………………………….no campo,

…………………………………………………………………nos confins longínquos,

Nas ruas agora vazias,

………………………………….onde as multidões não mais se movem

E as faíscas das máquinas

………………………………………..não cintilam mais,

A geleia do dia ativo súbito parou.

………………………

No dia alargado, 

………………………….nas esquinas e becos,

Desdobrados

………………………todos de um seio só,

Desdobrados

……………………..da terra, desdobrados do ar e do carbono

Desdobrados

…………………….das dobras do mundo — e do amor talvez

De um pai 

………………….que amou uma mãe;  

………………………………………………….como no tempo

De nossos avós,

………………………….por um átimo

Estás de volta,

……………………….terra,

………………………………..não de todo intacta,

……………………………………………………………….mas o suficiente:

…………………………………

Reivindicas de nós o incondicional!

……………………………  

E agora,

………………na cúpula noturna

………………….

nessa suspensão

………………………..de tua mais translúcida beleza.

que inquietos

……………………..os humanos te contemplem—

……………………….

…………….Hoje talvez eles possam alucinar

………………………

……………………………….as névoas de Andrômeda

E a Cabeça de Cavalo!

…………………

.…….…….

………………..

Saído do teu seio fundo,

………………………………………o vetiver

Vive obscuro

……………………..no meu corpo —

Não haveria

……………………como não amar teus olhos quietos.

………………………

E abro a gaveta

………………………..onde estão

 Os olhos,

………………….os braços

…………………………………….as palavras,

Selados e lacrados,

………………………….

Onde os perfumes acres

……………………………………….dos marrons

se debruçam

…………………….ávidos

Trazendo de volta

……………………………a noite acelerada.

E os ossos

………………….se erguem de suas tumbas

E dançando

……………………uma ciranda,

 O pó se torna carne

A carne

……………..salta até os ossos,

…………………………………………..a trama de volta na urdidura

E os mortos se erguem

Eu os recebo como velhos amigos,

Eu os abraço, eu os festejo, os amados.

…………………

.…….…….

………………..

No teu simples estar -aí,

……………………………………..sem julgamento,

círculo fechado

………………………..plenamente aberto

É como se a terra

……………………………ensaiasse de novo um verão perene.

E para tudo 

………………….o que no mundo erra

Sou quase levado

………………………… a desejar que sirvas

……………………………………………………..de exemplo,

se eu não soubesse

…………………………………..o quanto

o exemplo, o maior,

……………………………………o melhor,

Tudo isso para ti é nada.

……………………………………E a praia dos ossos,

Cálida dessas vidas

…………………………….também não te ousa celebrar:

Pois seus mortos entendem

…………………………………….que não precisas disso.

E todo o morto é austero.

……………………………………….Estás aí,

E esse aí parece te bastar.

……………………………………Tu estás contigo,

Com os amigos,

…………………………com tuas mãos

Que tocam Luna, 

………………………….mas sim

 Teus dedos ágeis

…………………………apaziguam o coração dos semivivos

E os antigos mortos,

……………………………….ao escutá-la,

……………………………………………………sonham melhor.

Um sonho eterno

…………………………….no fundo das areias brancas

Ou chacoalhando

…………………………….os ossos nos fluxos das águas.

…………………

.…….…….

………………..

Uma mulher é um farol,

……………………………………..nenhuma veio ao mundo

Com demérito.

……………………….Uma mulher e um violão

Cruzando a turquesa

……………………………….da estação mais quente,

Frequentando

………………………a sempiterna ternura

…………………………………………………….de tuas águas calmas:

E o que dizer

…………………..da brisa que te segue

…………………………………………………e que acua,

Insciente

……………….do seu próprio gesto,

das virtuoses do mar,

………………………………..pois teus dedos

parecem dedilhar

……………………………sei lá com que distinta leveza:

Espraiam

………………..ao redor tua paz,

……………………………………………desfazem o confuso.

Ela distingue

……………………cada nota, a deusa:

……………………..

Ela é contorno do fim da tarde.

……………..

……………….

…………

Lawrence Flores Pereira

Lawrence Flores Pereira é professor da UFSM. É pós-doutor e professor pesquisador do Massachusetts Center for Renaissance Studies, na Universidade de Massachusetts, Amherst. Suas publicações incluem um livro de poemas, 'Engano especular' (sob o pseudônimo Lawrence Salaberry), e inúmeras traduções poéticas: Antígona, de Sófocles, poesia barroca francesa, Charles Baudelaire, T.S. Eliot, entre outros. É organizador de uma série de volumes sobre a literatura dos séculos XVI e XVII e editor da revista acadêmica Philia&Filia (em parceria com Kathrin Rosenfield).