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Afinal, todo mundo é racista? Sobre o significado do racismo estrutural

por Érico Andrade

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A filosofia da linguagem nasce, na sua tradição contemporânea e analítica, para resolver o problema da referência. O problema é, como em geral acontece na filosofia, antigo, mas a imagem que nos vem em primeiro lugar é o texto de Frege Über Sinn und Beteutung (Sobre Sentido e Referência). Nele foram esboçadas de modo claro as dificuldades no que diz respeito à determinação da referência. Basicamente, a maior dificuldade consiste em compreender como uma palavra ou uma expressão podem se referir a um objeto. O problema é sobre a relação entre linguagem e mundo. Com a palavra racismo não ocorre algo diferente. Eu diria, contudo, que ela é ainda mais complexa, visto que, quando associada à noção de estrutura, ela tanto aponta para indivíduos quanto se aplica a categorias abstratas como, por exemplo, estruturas sociais, que, em alguns casos, ganham materialidade nas instituições.

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Gottlob Frege por Gail Campbell, 2016

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Assim, diferentemente das expressões, para ficar com o exemplo de Frege, a Estrela vespertina e a Estrela matinal que guardam sentidos (significados) diversos por serem diferentes formas de apresentar um estado de coisas no mundo, mas que se referem a um mesmo objeto físico, a saber, o planeta Vênus; a palavra racismo tem uma especificidade. Ela se aplica a diferentes quadros categoriais [com ontologias distintas porque engloba entidades abstratas (estruturas sociais) e físicas (pessoas)], mas com a pretensão de representar um mesmo estado de coisas. Ou seja, ela não apenas denota, aparentemente, mais de um objeto como também tem como referente objetos distintos ontologicamente.

A dificuldade, para dizer com outras palavras, é que os objetos denotados pela palavra racismo guardam ontologias diferentes e não compõem necessariamente um conjunto coextensivo de entidades. Para se referir a entidades tão diferentes a palavra racismo tem que possuir um sentido radicalmente amplo. A questão que se impõe diante disso é a seguinte. Seria o uso “frouxo” da palavra racismo, especialmente quando associada à noção de estrutura, uma forma de invalidar o racismo? Isto é, o uso “indiscriminado” do termo racismo poderia tornar opaco o seu referente e, portanto, invalidar a própria compreensão do que seria de fato o racismo?

É exatamente sobre essa compreensão vaga ou sem precisão do termo racismo que se assentam os argumentos daqueles que sustentam que o racismo é no máximo episódico ou contingente no Brasil, mas jamais estrutural. O uso muito geral do termo racismo é entendido como uma demonstração de que aquilo que o conceito pretende denotar não existe, ou na melhor das hipóteses, não pode ser testado e, por conseguinte, este conceito não tem sentido. Um ou outro indivíduo é racista, mas o racismo como estrutura, argumentam, não existe. Seguindo essa linha de argumentação: ou se promove uma deflação semântica radical do termo racismo ou se deve abandoná-lo.

O que parecia então o grande ganho dos movimentos sociais e, sobretudo, antirracistas, a saber; a noção de racismo estrutural ou sistêmico se converte, na boca de alguns, num argumento para mostrar certa arbitrariedade do uso do termo racismo e, por conseguinte, defende-se a sua pronta desqualificação. Eles concluem que a expressão racismo estrutural deveria ser abandonada por sua vagueza.

Com efeito, essa desqualificação do racismo esconde uma teoria da referência que lhe sustenta. É como se só fosse possível usar o termo racismo quando todas as condições de asserção estivessem certas e fossem completamente abertas ao teste, bem ao modo do Círculo de Viena, do seu significado. Isto é, a desqualificação do racismo e, especialmente, do racismo estrutural passa pela compreensão de que o sentido de uma proposição, neste caso de uma expressão, só pode ser validado quando o objeto ao qual ela se refere puder ser verificado. Mas não se trata de qualquer forma de verificação. Trata-se de uma verificação que em geral restringe o racismo a apenas proferimentos que se referem a uma injúria racial; de preferência verbalizada. Fora deste escopo, por não se poder testar empiricamente o termo racismo, não tem sentido o uso desse termo; salvo, insisto, se a pessoa profere explicitamente uma injúria na qual o termo negro, por exemplo, é associado a uma inferioridade ou a algo depreciativo. Em termos de filosofia da linguagem, trata-se do que Charles Taylor, entre outros, chamou de teoria designativa do significado.

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Ponto de encontro do Círculo de Viena

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Esse entendimento rígido da referência é o alicerce dos que se posicionam de modo contrário ao racismo estrutural. Em contraponto a essa tradição designativa podemos pensar a linguagem num viés expressivista, no qual a inseparabilidade da linguagem e mundo não se dá por meio da correspondência da linguagem ao mundo, mas por meio da compreensão de que a linguagem é mundo. Ou seja, a linguagem não apenas é gestada numa forma vida, como sustentava Wittgenstein, como também cria o mundo no sentido de que ela causa certas práticas cotidianas. Nesses termos, o sentido não é mais reduzido a uma proposição neutra axiologicamente e que serve apenas para designar objetos existentes no mundo. A linguagem é mundo tanto porque ela cria o mundo, com o seu efeito performativo, quanto porque ela se faz nos processos cotidianos de vivência e práticas no interior das formas de vida.

Essa compreensão da linguagem serve de esteio para que possamos entender o uso da expressão racismo estrutural. A palavra racismo só ganha sentido num mundo onde a existência da discriminação racial é uma prática. Ela não designa nada sem que se tenha como base, pano de fundo, para usar a expressão de Quine, um conjunto de outros termos e articulações gramaticais que nos permitem compreender o uso do termo. O entendimento do racismo não pode ser feito pela compreensão de como essa palavra denota um objeto específico, mas ele pressupõe um conjunto de articulações de significado que guardam em comum uma experiência prática de discriminação racial. O termo racismo estrutural oferece, seguindo aqui a acepção de Strawson, as direções gerais para o seu uso na construção de asserções verdadeiras e falsas. Saber usar o termo racismo, independente da ontologia para o qual aquele termo aponte, pressupõe que conhecemos os seus usos em certas práticas discriminatórias.

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Wittgenstein em Swansea, 1947

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A pergunta, óbvia a essa altura, é sobre quando podemos reconhecer essas práticas? Como analogamente o interlocutor das Investigações de Wittgenstein se perguntava sobre quando podemos saber que dominamos uma regra como, por exemplo, o conjunto de regras que nos habilita a jogar xadrez? Essas perguntas não podem conhecer outra resposta senão a mesma que Wittgenstein no legou: na própria prática. Não há uma regra a priori que nos permita saber quando o uso da palavra racismo ou da expressão racismo estrutural é correto. Mas o ponto é que não precisamos saber a priori dessa regra para usar o termo racismo para designar certas ações, pessoas e práticas (que envolvem práticas institucionais) de preterimento que têm como ponto comum o julgamento pela cor e pelo fenótipo.

Nas práticas cotidianas, os exemplos são inumeráveis: as pessoas no Brasil são discriminadas também por sua cor e fenótipo. É evidente que para efeitos de criminalização de uma atitude racista certamente formas explícitas de racismo, por meio da ofensa verbal, serão mais fáceis de serem imputadas, mas isso não quer dizer que ações que envolvem múltiplos fatores não contenham, entre esses fatores, um componente racista. Com efeito, é nesse ponto que repousa parte da confusão dos que são contrários ao uso da expressão racismo estrutural. Dizer que o racismo estrutural existe não significa dizer que a cor da pele e os fenótipos negros sejam a única razão (ou causa) da morte de uma pessoa negra como no caso de João Alberto no Carrefour de Porto Alegre ou no caso do menino Miguel em Recife, mas que as práticas cotidianas sociais são mais permissíveis e invariavelmente lenientes com os assassinatos das pessoas negras por razões, dentre quais, históricas; lembrando que por vários séculos as pessoas negras não eram consideradas propriamente pessoas.

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Chief Justice Roger Taney, autor da decisão majoritária no caso Dred Scott — a partir do qual negros não eram considerados ‘cidadãos’

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Aqui entra outro elemento importante do ponto de vista da filosofia da linguagem. Assim como o mundo da vida, a linguagem é dinâmica. O modo de significar da palavra racismo não fica estagnado no seu uso inicial, mas ganha novas significações quando se amplia o reconhecimento de práticas racistas mais sutis e que, no entanto, guardam o mesmo solo histórico de onde o racismo no Brasil brotou: a escravidão. Desse modo, mesmo que não exista mais a escravidão justificada pelo critério unicamente racial, o racismo permanece, misturado a outros fatores, quando pessoas são preteridas, mesmo no pós-abolição, nas instituições ou individualmente por serem, entre outras coisas, negras.

O uso da expressão racismo estrutural serve para que possamos perceber como as estruturas sociais e os indivíduos que delas participam mantêm intacta a mesma estratificação social pela cor e fenótipo que estava presente no largo período histórico da escravidão. Nesse sentido, a expressão não tem a pretensão de denotar um objeto ou indivíduo no mundo, mas o estado de coisas que na sua totalidade referenda a divisão social pela cor e fenótipo como uma prática cotidiana.

Para uma verdadeira compreensão do racismo estrutural temos que recorrer a uma teoria intencionalista do significado, visto que o que está em jogo não é a coletânea de casos particulares de racismo, passíveis de uma compreensão extensional do significado. A expressão aponta para um estado coisas ou para estruturas de poder que se mostram inertes diante do flagrante desequilíbrio social brasileiro; presente desde os primeiros tempos de nossa formação.

Não se deve, portanto, reduzir o significado da expressão racismo estrutural apenas ao julgamento do caráter racista de determinadas condutas individuais porque o seu significado não aponta para objetos específicos, mas para uma estrutura social ou conjunto de práticas que durante séculos têm subalternizados as pessoas negras. O racismo estrutural mostra que o critério racial está presente na morte violenta das pessoas negras, tanto porque durante séculos elas não tiveram as mesmas oportunidades que as pessoas brancas tiveram quanto porque durante muito tempo a sua morte não agregava nenhum valor social por se tratar de um corpo que como qualquer outra mercadoria poderia simplesmente ser descartado.

Por fim, o racismo estrutural nos permite ver o racismo em tudo, mas não para acusar as pessoas individualmente como racistas — para isso é preciso de um processo legal e da pressão do movimento negro para que esse processo seja de fato justo. A sua função é indicar que as estruturas de poder pouco fizeram para que o racismo, que marcou e marca a espoliação do corpo negro, ganhasse outro destino. A intencionalidade do conceito de racismo estrutural importa mais do que a extensão dos objetos particulares que caem sobre ele porque aponta para as práticas institucionais e sistêmicas que repetimos de exclusão das pessoas negras da vida social brasileira. Em suma, o racismo estrutural é um conceito que só ganha significado porque há uma prática que lhe respalda e que longe de ter desaparecido com a abolição da escravidão permanece como uma ferida aberta.

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O jantar de uma família no Rio de Janeiro, Jean-Baptiste Debret, 1839

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Érico Andrade

Érico Andrade é filósofo, psicanalista em formação, professor da Universidade Federal de Pernambuco.