Administração PúblicaPoder Judiciário

Responsabilidade fiscal e COVID-19

Medidas de urgência em tempos de crise.

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por Georges Abboud

“Toda obra de arte e? filha do seu tempo e, muitas vezes, ma?e dos nossos sentimentos.”

Wassily Kandinsky

Na última sexta-feira, 26 de março, o Supremo Tribunal Federal foi provocado a intervir no cenário público de forma inédita, demonstrando toda a importância e amplitude que a jurisdição constitucional assume nos dias de hoje.

A Presidência da República, por intermédio da Advocacia-Geral da União, ajuizou ação direta de inconstitucionalidade pretendendo que o STF desse a certos artigos da Lei de Responsabilidade Fiscal e da Lei de Diretrizes Orçamentárias do ano de 2020 uma interpretação que permitisse ao governo aumentar despesas sem indicar a fonte imediata de custeio.

A razão para tanto é a seguinte: ainda que o Congresso Nacional tenha reconhecido o estado de calamidade pública, por meio do Decreto Legislativo 06/20, tal medida se voltou, de forma exclusiva, a viabilizar a tomada de ações de saúde emergenciais.

Ou seja, todas as demais exigências fiscais não foram suspensas, e ao governo não foi atribuída a “liberdade” orçamentária necessária para financiar outras espécies de políticas públicas contra a disseminação da COVID-19 e viabilizar a recuperação da economia com medidas assistenciais aos mais prejudicados pela crise.

Segundo a LRF e a LDO de 2020, caso a Presidência da República determine o aumento de despesas públicas com políticas públicas continuadas, é necessário indicar, previamente, as formas de compensação, sob pena de crime de responsabilidade.

Disso decorreu o pedido para que o STF interpretasse a imposição legal de indicar imediatamente as fontes de custeio como exigível, imediatamente, apenas em situações de normalidade.

A Presidência da República argumentou que, caso não pudesse agir de imediato, as circunstâncias impostas pela pandemia do novo coronavírus acabariam por levar ao sacrifício de certos direitos sociais e assistenciais previstos na Constituição Federal.

O pedido formulado pelo governo exprime uma realidade inescapável: o direito é, por si só, incapaz de absorver a crescente complexidade dos problemas sociais. É necessário um diálogo entre os Poderes da República, que permita dar a solução mais constitucionalmente adequada aos impasses atuais.

Caso contrário, correríamos o risco de soluções ilegítimas, insuficientes, ineficientes ou, no limite, de exceção pura e simples.

Nesse sentido, o fato de a Presidência da República ter se socorrido dos meios institucionais/constitucionais para dar à crise um encaminhamento que prestigie o diálogo entre os Poderes é algo, nos dias atuais, raro e digno de celebrar.

Evita-se, assim, mal-estar institucional, especialmente entre o Executivo e o Legislativo, que, nos últimos tempos, só nos têm dado mostra da sua tumultuada relação.

O Ministro Alexandre de Moraes, a quem coube a relatoria da ação, deferiu a medida liminar, que deverá, ainda, ser confirmada pelo Plenário do STF. Com isso, permitiu, desde já, a criação ou expansão de gastos públicos que busquem conter a crise, sem a necessidade de demonstrar, imediatamente, como se fará a compensação orçamentária. Até mesmo porque, se o governo precisasse fazê-lo agora, promoveria a criação de tributos novos ou a majoração de tributos já existentes, medidas essas que, neste momento, agravariam a já precária situação em nos encontramos.

Min. Alexandre de Moraes

A decisão concluiu, de forma acertada, muito embora entendamos ser necessário enfatizar que as exigências em questão foram tão somente postergadas e deverão ser cumpridas no futuro, sob pena, inclusive, de o Congresso Nacional não aprovar as leis orçamentárias para o próximo exercício (CF 48 II). É justamente por isso que ela não pode ser interpretada como um “cheque em branco”, que eximiria totalmente o Executivo de indicar, no futuro, a fonte de custeio.

Talvez a urgência do momento não tenha permitido uma reflexão mais detida ao STF. Se a finalidade do pedido da Presidência da República é justamente promover o diálogo para superar a crise, a decisão poderia ter determinado, de maneira clara, algumas medidas de accountability ao Executivo, para que demonstrasse, desde logo, os gastos despendidos e como o dinheiro público está sendo utilizado. Ou, ainda, deixar claro que a indicação da fonte de custeio foi postergada e não eliminada em definitivo.

Não podemos ignorar, nesse processo, o importante papel que pode ser exercido pelo Congresso Nacional como órgão fiscalizador da atuação excepcional do Executivo.

Tomemos de exemplo o que foi determinado pelo decreto legislativo que reconheceu o estado de calamidade pública, por meio do qual constituiu-se uma Comissão Mista para “acompanhar a situação fiscal e a execução orçamentária e financeira das medidas relacionadas à emergência de saúde pública” (art. 2º do decreto legislativo 06/20).

Com efeito, o Ministro da Economia tem dialogado com o Congresso Nacional para a aprovação de uma lei emergencial, flexibilizadora das exigências da LRF nesse momento tão delicado. Trata-se do Projeto de Decreto Legislativo 104/20, que fixa a responsabilidade solidária da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios no enfrentamento da crise.

Temos, ainda, a Proposta de Emenda à Constituição do “orçamento de guerra”, articulada pelo Presidente da Câmara dos Deputados, que instituiria, na mesma linha, um regime fiscal extraordinário.

Desnecessário dizer que essas seriam as saídas ideais, pois dariam a problemas políticos soluções políticas, impedindo que a crise do novo coronavírus fosse trazida para o âmbito do Poder Judiciário.

Mesmo assim, sob o ponto de vista jurídico, a liminar era a única alternativa para a flexibilização das regras de responsabilidade fiscal nas atuais circunstâncias, assegurando a dinamicidade necessária para implementação de políticas públicas que o presente requer. Espera-se que o Executivo justifique, na prática, a liminar obtida no STF.

É possível – e necessário – fazer inúmeras críticas à postura do STF no que diz respeito às decisões liminares. Tentamos, em nossa atividade acadêmica,[1] sujeitar sua concessão a alguns requisitos, que julgamos estarem presentes aqui: a liminar concedida visa a proteger direitos fundamentais (especialmente os da saúde e do trabalho) e pode ser revista a qualquer tempo, seja pelo próprio Ministro Relator Alexandre de Moraes, ou pelo Plenário.

Momentos excepcionais exigem das instituições grandeza e prudência na tomada de decisões que sejam, ao mesmo tempo, eficientes e constitucionais.

Ulysses e a Constituição.

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Aprendemos, com Wassily Kandinsky, que a arte abstrata do entreguerras foi, provavelmente, o esforço estético mais coerente que se podia imaginar. Na?o pretendia estar a? frente do seu tempo, mas adequar-se a ele, ser-lhe fiel. As vito?rias-re?gias de Monet perderam sentido depois que o mal do nazifascismo preenchera a Europa.

Os horrores daquele período impactaram a arte, criando uma atmosfera espiritual em que a minudência tranquila do realismo e as sutilezas impressionistas eram impossíveis diante do caos da humanidade.

Ao descrever as almas que percorrem uma exposic?a?o de arte baseada em retratos da natureza, Kandinsky retrata uma alma faminta que seguira? ávida, porque na?o pode mais ser nutrida com o que outrora servia de alimento na arte.

Tal como os modernistas, somos chamados a estar à altura do nosso tempo. A fazer-lhe jus com fidelidade, abdicando das quimeras antiquadas, das posturas intransigentes, das utopias ingênuas e das nostalgias extravagantes.

A situação de calamidade ora vivenciada não encontra paralelo recente na história brasileira. O constitucionalismo deve continuar sua história de adaptação e evolução, para se constituir como espaço de absorção de cada vez maior de complexidade, oferecendo respostas para problemas que desafiam a lógica de respostas binárias legal/ilegal, correto/incorreto, procedente/improcedente e vencedor/vencido. Esse é, portanto, o desafio hoje posto ao STF.

A concessão de liminares passa, desde há muito, por uma crise na alta cúpula do Judiciário nacional, mas dessa vez a lógica se inverteu: a crise das liminares transformou-se no combate liminar de uma crise.

O Tribunal, até o momento, foi testado e passou sem grandes arranhões pela prova institucional. Agora é esperar. E dialogar.

‘???????’, Kandinsky, 1917.

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Nota:

[1] Ver o nosso Processo Constitucional Brasileiro, 4.a Ed., SP: Revista dos Tribunais/Thomson Reuters, cap. 3, 2020 [no prelo].

Georges Abboud

Georges Abboud é Mestre, Doutor e Livre-Docente em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor de Processo Civil da PUC-SP e do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito Constitucional do IDP-DF. Advogado e Consultor Jurídico. e-mail: georges.abboud@neryadvogados.com.br