Artes

Retratos baianos

por Luciano Migliaccio

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A pintura de retratos adquiriu destaque no Brasil desde a época colonial, particularmente, em Salvador da Bahia. As efígies de santos e mártires jesuítas que decoram o teto da sacristia da igreja do colégio da cidade, hoje Catedral Basílica, podem ser definidas como uma galeria de retratos de homens ilustres da Companhia, embora em muitos a representação do tipo sobressaia em relação à exigência da semelhança fisionômica.

De fato, este conjunto que remonta aos últimos anos do século XVII, é disposto, antes de tudo, como uma genealogia, que a partir dos primeiros heróis, exibe a linhagem da Companhia na constelação das congregações religiosas, e, ao mesmo tempo, representa uma espécie de mapa geográfico da sua ação global.

Há notícias também de retratos encomendados pela Companhia em Salvador para comemorar indivíduos ilustres por erudição ou santidade. O retrato do Padre Antônio Vieira, o maior dos oradores sacros jesuítas, foi gravado e replicado em pinturas até o século XIX: uma cópia de autoria de José Rodrigues Nunes é conservada no Museu de Arte da Bahia.  Serafim Leite informa que em 1733 o padre João Honorato mandou pintar o retrato do padre Alexandre de Gusmão, insigne pedagogo, fundador do seminário de Belém da Cachoeira, falecido em 1724. O estudioso sugere que possivelmente a pintura fosse de autoria do Irmão coadjutor português Francisco Coelho, então documentado como pintor ativo no Colégio de Salvador.  A obra foi depois reproduzida em gravura por Gottlieb Heiss em Augsburg, um dos maiores centros de produção gráfica da Europa.

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Padre Antônio Vieira por José Rodrigues Nunes

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Este tipo de retrato era realizado, sobretudo, em função da reprodução em estampa, com a finalidade de difundir, por meio da imagem, a devoção para com esses personagens e promover, desta forma, sua beatificação e canonização por parte da Igreja Católica. Não raro, as estampas foram, por sua vez, o modelo para pinturas. Sabe-se que o teto da sacristia da igreja do Colégio de Salvador foi derivado de um conjunto de imagens impressas em Colônia por Johann Bussemacher em 1608, que foi adaptado ao contexto local.

Outro tipo utilizado em todo os maiores centros do Brasil colonial foi aquele dos benfeitores e reitores de irmandades, institutos e congregações religiosas, como a Santa Casa da Misericórdia, a Ordem Terceira carmelita ou franciscana. Tal categoria é de significado particular por possuir função de legitimação ideológica e genealógica das elites coloniais, durante o Antigo Regime. O formato dos retratos pode variar: desde o simples busto, até representar o homenageado em figura inteira, mostrando as propriedades doadas, destacando a posição do indivíduo dentro da hierarquia daquelas associações.   

Em todos esses casos, o interesse na semelhança física e na caracterização psicológica do retratado é secundário em relação à sua posição na série histórica na qual se insere, representando, muitas vezes, um tipo humano e social, mais do que uma individualidade real.    

No entanto, nos últimos anos da época colonial, quando já não era mais capital do Estado do Brasil, Salvador viu o surgimento de um tipo de retrato de cunho político promovido no círculo dos governadores portugueses, antecipando as inovações introduzidas na corte pela Missão francesa: o retrato histórico, ou de status, no qual o indivíduo é representado não apenas pelo pertencimento a uma série institucional ou genealógica, mas pela sua personalidade e o significado social da sua ação.

Em abril de 1806 chegou no porto de Salvador da Bahia uma esquadra da marinha de guerra francesa, que incluía o navio Le Vétéran, comandado por Jerônimo Bonaparte, irmão do imperador Napoleão. O príncipe, então com vinte e dois anos de idade, durante a estada na Bahia, que durou de 2 a 22 daquele mês, foi retratado pelo pintor baiano Antônio Joaquim Franco Velasco.

Era então governador da Capitania da Bahia, João de Saldanha da Gama Melo Torres Guedes Brito, sexto conde da Ponte, (1773—1809) e possivelmente foi ele que tomou a iniciativa de encomendar ao artista local a efígie do ilustre hóspede.

O conde viveu um período de mudanças dramáticas na história do Brasil. Foi nomeado governador da capitania da Baía a 14 de dezembro de 1805. Estava ainda exercendo esse cargo, quando a 19 de janeiro de 1808 apareceu diante da cidade a esquadra anglo-portuguesa que conduzia o então Príncipe Regente D. João e a família real.

É possível que os primeiros retratos brasileiros de uma dama e de uma criança, fora dos esquemas do retrato público oficial, realizados naqueles anos por Antônio Joaquim Franco Velasco e conservados no Museu de Arte da Bahia, representem figuras da família do governador, isto é, a esposa, Maria Constança de Saldanha Oliveira e Daun (1775-1833), e um dos filhos do casal, Luiz, futuro marquês de Taubaté, nascido em 1801. Se assim fosse, as duas pinturas traduziriam no meio da colônia lusitana uma tipologia de retrato familiar característica das cortes ilustradas, valorizando através da figura da mulher e dos filhos o papel do governante como pai de família.    

No Retrato de dama de Franco Velasco, o traje e o penteado reenviam à moda áulica francesa e inglesa entre 1805 e 1810. A pose é desenvolta, revelando que a pintura não foi derivada de uma gravura ou de um desenho, como no caso dos retratos da família real executados por Manuel Dias de Oliveira logo depois da chegada da corte no Rio, mas buscou descrever um caráter e uma atitude moral. O traje liso de cambraia branca e brilhante é animado pelo xale vermelho e por um laço estampado, nas cores ouro, verde e vermelho, que poderia carregar uma alusão heráldica ou patriótica.  Pelo corte elegante, poderia se tratar de um traje de baile costurado em Paris ou Londres, ao redor de 1806; nas revistas da época há numerosos modelos semelhantes.

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Franco Velasco, 1817

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As joias, ainda que sóbrias, como de moda naquele tempo, revelam a elevada condição social da dama. O bracelete, provavelmente em elementos entrelaçados elásticos com uma fechadura ornada por três grandes granados montados em ouro, é acompanhado por uma tiara no penteado em tranças reunidas no topo da cabeça, e por um colar formado por dois giros de elementos em cristal de rocha, e um pingente esférico incluído dentro de uma moldura elíptica. Poderia tratar-se de uma esfera com dobradiça para conter pequenos objetos de lembrança.

Nada de mais distante dos trajes tradicionais e das mantilhas negras, de origem ibérica, usados pelas matronas circulando nas ruas do Rio de Janeiro, ainda à época dos desenhos de Debret. A dama baiana está preparada para comparecer na sala ao lado do irmão do imperador francês e dos seus oficiais.   

Ainda mais original, no panorama brasileiro, o Retrato de Menino com cão, que, ao que tudo indica, foi pintado para formar um par com aquele da dama (talvez sua mãe) e, portanto, dificilmente depois de 1810, na base dos trajes.  

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Franco Velasco, 1817

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O menino que parece com cinco ou seis anos de idade cinge com confiança o colo de um cachorrinho de estimação, possivelmente um maltês, agachado ao seu lado num sofá com o assento de palha. Sobre este estão apoiados uma almofada vermelha e um tecido listrado com motivos floreais de inspiração chinesa.

A obra é quase um caso único na pintura brasileira da época, se excluirmos o retrato de Dom Pedro II com seis anos de idade, tocando tambor, atribuído a Armand Julién Pallière. Não é raro encontrar imagens de crianças com cachorrinhos na pintura europeia, desde o século XVI, indicando a elevada posição social da criança retratada, em geral destinada a herdar funções de governo.

De acordo com estes antecedentes, o significado do pequeno animal varia. Num mundo onde a saúde e a sobrevivência dos recém-nascidos eram a preocupação principal das famílias aristocráticas, a fidelidade e a aparente submissão do companheiro da criança pode aludir à expectativa de uma vida que deveria crescer fiel às virtudes dos pais pela nobreza das suas origens. Por outro lado, no final do século XVIII e no começo do XIX, a pintura inglesa introduziu uma nova representação da psicologia infantil revelada pelas atitudes das crianças e dos pequenos animais.  Franco Velasco parece brincar de forma espirituosa com as dimensões dos dois pequenos corpos formando duas áreas brancas assimétricas, em contraste com o fundo neutro e quase monocromo, e com o sofá demasiado grande em que parecem pouco à vontade.

As duas pinturas baianas talvez sejam comparáveis pela novidade aos retratos da burguesia colonial norte-americana dos irmãos Charles Wilson e James Peale, e aos de Gilbert Stuart.

Estas transformações no retrato refletem os câmbios do papel político dos representantes da monarquia portuguesa na Bahia. As escolhas artísticas do governador João Saldanha da Gama, podem não ter sido casuais. Desde a sua nomeação, preocupado com os reflexos da Revolta dos Alfaiates, que havia evidenciado o descontentamento dos brasileiros em relação à situação da cidade, e a influência das ideias republicanas vindo dos Estados Unidos, ele adotou uma política favorável ao elemento local, em particular aos poderosos comerciantes cujos negócios e lucros no campo da exportação de açúcar e de tabaco, e no comércio dos escravos, cresciam rapidamente devido aos efeitos da revolução francesa em Haiti e às guerras napoleônicas na Europa. 

O governador iniciaria, por meio de uma subscrição pública, com a participação do governo, também as obras do primeiro teatro de Salvador, o Teatro São João, já em 1806, quando ainda não existia outro no Brasil, e não era cogitada a mudança da corte portuguesa para a colônia. A iniciativa do Conde da Ponte evidencia a vontade de promover o brilho da vida cultural e a sociabilidade das elites da cidade nos moldes das ideias ilustradas.    

À chegada de Dom João VI em 1808, ele faria instância inutilmente para que a família real e a corte se fixassem em Salvador e fizessem novamente da cidade a capital não apenas do Brasil, mas de todo o império colonial português.

A partir destes antecedentes pode ser entendida a relevância política dos retratos de Marcos de Noronha e Brito, oitavo conde de Arcos, que foi o último vice-rei do Brasil, de 1806 até a chegada do Príncipe Regente, Dom João, em 1808, e em seguida, sucedeu ao conde da Ponte como governador da Bahia entre 1810 e 1818. Um quadro que o representa, assinado por Luís Gomes Tourinho, artista e professor de primeiras letras em Salvador, foi doado recentemente à Pinacoteca do Estado de São Paulo.  

O Conde de Arcos é representado até a cintura e carrega na mão direita um monóculo atado a uma corrente de ouro.  É o único retrato conhecido em que ele aparece com tal objeto, símbolo da prudência e da clarividência do governante. Atrás dele percebe-se uma estante cheia de livros e uma cortina fechada, aludindo provavelmente ao seu papel como fundador da primeira biblioteca pública e da primeira tipografia oficial ativa no Brasil. Veste a grande uniforme de Tenente-General e carrega duas condecorações portuguesas, a Grã-cruz da Ordem Militar de São Bento de Avis e a Grã-cruz da Ordem Militar de Cristo. Abaixo da figura há a seguinte inscrição em letra cursiva da primeira metade do século XIX: “D. Marcos de Noronha e Brito 8O. Conde dos Arcos, Governador e Capitão General desta Província da Bahia desde 7mbro de 1810 até 25 de janeiro de 1818. Eternizou a sua memória com a proteção às Letras, ao Comércio e às Artes. Fez estrear este Theatro em 1812”.  

Pela inscrição é possível deduzir que a pintura devia ornar algum ambiente do Teatro São João em Salvador, já que se refere à inauguração deste edifício sob o governo do Conde dos Arcos em maio de 1812, e que o quadro foi pintado depois da conclusão do governo do conde na Bahia em 1818. O uniforme de Tenente General também confirma essa datação, pois ele foi nomeado no posto naquele ano, assumindo também a pasta de Ministro de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar. Contudo o retrato deve ter sido executado antes da exoneração do Conde dos Arcos dos cargos de governo por parte do Príncipe Regente Dom Pedro, o futuro imperador Dom Pedro I do Brasil, e o seu retorno a Portugal em junho de 1821. Seria difícil que, depois desta data, em pleno clima de luta para a independência, fosse feita mais uma homenagem à memoria do último vice-rei e governador.   

Todos esses elementos fazem da pintura da Pinacoteca do Estado de São Paulo um caso significativo quando relacionado a uma série de outras representações oficiais do nobre português. 

Depois de terminada a pioneira obra do teatro iniciada pelo seu antecessor, o conde de Arcos continuaria a política de embelezamento da cidade com a construção do edifício da Praça de Comércio, cuja primeira pedra seria lançada em 1814. A obra seria dirigida pelo sargento-mor Cosme Damião da Cunha Fidié, possivelmente a partir de desenhos de José da Costa e Silva, arquiteto das obras reais, e do seu ajudante João da Silva Muniz, arquiteto das obras do paço, que se encontravam em Salvador, vindo do Rio de Janeiro, a partir de agosto de 1813, a mando de Dom João VI.

A mesma cultura, com alguns elementos do palladianismo inglês, mas certamente de matriz lusitana, seria refletida também pela fundação do Passeio Público de Salvador, idealizado já durante os governos anteriores, mas inaugurado pelo conde de Arcos em 1810. Neste espaço foi colocado o primeiro monumento público de Salvador, o obelisco comemorativo ao desembarque e à passagem da família real na cidade.

O compromisso civil de Noronha e Brito em prol da utilidade pública e do desenvolvimento econômico foi causa de várias homenagens por parte dos comerciantes baianos, alimentando a criação de efígies destinadas a perpetuar o reconhecimento pelas iniciativas do governador.

Em ocasião da inauguração do edifício da Praça de Comércio, em 28 de fevereiro de 1816, quando o Brasil já formava parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, os comerciantes de Salvador encomendaram em Londres ao gravador William Skelton a estampa de um retrato do Conde de Arcos. Se conhecem exemplares desta gravura nos acervos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e da Biblioteca Nacional de Lisboa.

Diferentemente da pintura de Gomes Tourinho, certamente posterior, como vimos, o retratado veste o pequeno uniforme de marechal de campo, e carrega só a grã-cruz da Ordem de Avis, única honorificência mencionada na inscrição.   

Não é impossível que desde Salvador fosse enviado um retrato realizado por Franco Velasco, e que este fosse retocado por um artista inglês, como William Becheey com o qual Skelton colaborava frequentemente, antes dele gravar a imagem.

Em seguida outro retrato de Noronha e Brito, em figura inteira, foi colocado no salão da Praça de Comércio recém terminada, e inaugurado com festa solene realizada em setembro de 1817. Desta vez, a pintura não comemorava apenas o bom governo do conde, mas também a sua atuação na repressão do movimento revolucionário de Pernambuco em março e abril daquele mesmo ano.

A obra, de autoria de Antônio Joaquim Franco Velasco, foi destruída durante os tumultos que seguiram a independência, e substituída mais tarde por outra de autoria de Francisco da Silva Romão, ainda hoje conservada no mesmo lugar. Possuímos a sua descrição no relato do evento impresso em Salvador pela tipografia de Manuel Antônio da Silva Serva, também promovida pelo governador, entre 1818 e o começo de 1821, quando o homenageado já era ministro no Rio de Janeiro. 

Naquela pintura, o Conde de Arcos era figurado vestindo o grande uniforme de marechal de campo, numa sala decorada com colunas dóricas e cortinas que, atadas por um cordão, deixavam ver uma parte do horizonte. Apoiava sua mão sobre uma espada produzida em Londres, também presente dos comerciantes baianos, colocada numa mesa carregada de livros, simbolizando as diversas facetas da atuação do governador, militar e mecenas. O quadro estabelecia uma convenção na representação do governante que seria seguida mais tarde também no retrato de Dom Pedro I, imperador do Brasil, de Henrique José da Silva.   

O retrato do Conde de Arcos foi, então, objeto de três encomendas por parte da associação mercantil e da elite baiana; antes de tudo, a imagem gravada em Londres em 1816, encargada em comemoração da inauguração da sede da Praça do Comércio, a primeira construção deste género no Brasil, que antecipou aquela de Grandjean de Montigny no Rio de Janeiro. Em seguida, chegados os retratos de Londres, em 27 de junho de 1817 foi encomendado a Antônio Joaquim Franco Velasco o grande retrato colocado no salão da Praça de Comércio em setembro do mesmo ano. Finalmente, entre 1818 e 1821, foi encomendado a Luís Gomes Tourinho, para o Teatro São João, o terceiro retrato hoje na Pinacoteca do Estado de São Paulo. Este possui o mesmo corte da gravura de Skelton, mas apresenta uma notável diferença na pose com a mão levantada segurando a lente, e pela presença da insígnia de Comendador da Ordem de Cristo, ausente nas imagens anteriores, pelo grande uniforme de Tenente-General.

O retrato de Tourinho destacava o papel que o Conde dos Arcos, depois de deixar Salvador, desempenhava no governo do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve. Reunindo nas suas mãos o ministério de Marinha e Ultramar, e, depois, com a saída do rei Dom João VI para Portugal, o ministério de Negócios do Brasil e Estrangeiros, ele ocupava uma posição crucial no contexto político brasileiro dividido, naquele momento, entre a obediência ao governo constitucional português e a emancipação. Em seguida, chegaria a presidir o gabinete de governo do Príncipe Dom Pedro, controlando, de fato, a ação do regente.

Neste momento, os comerciantes de Salvador, depois de ter lhe oferecido uma renta vitalícia, promoveriam a construção de um palácio para a família do Conde dos Arcos, que seria um dos mais destacados do Rio de Janeiro, até ser expropriado para se tornar a sede do Senado do Império, depois da independência, a partir de 1824.

No entanto, na sequência de momentos dramáticos que levaram ao Dia do Fico e depois ao Brado de Ipiranga, a brilhante carreira do Conde dos Arcos seria derrubada pelos eventos fugidos ao seu controle. As tropas amotinadas, talvez com a conivência do próprio príncipe, impuseram a sua exoneração e ele foi obrigado a voltar a Portugal, como vimos em junho de 1821. Uma vez chegado a Lisboa, foi preso na Torre de Belém, acusado por membros da Junta de Governo da Bahia de conspirar para criar um estado independente no nordeste do Brasil.          

A história das imagens produzidas em homenagem ao governador documenta como o retrato adquirisse um valor civil e político importante a ponto de transformar-se numa sorte de manifesto político de forma inédita numa colônia sul-americana.  

A originalidade deste tipo de retratística pode ser melhor compreendido comparando-a com a produção de Pedro José Figueroa na Colômbia e com retratos de caudillos e libertadores que circularam à época nas antigas colônias espanholas como expressão da devoção da aristocracia criolla para seus líderes políticos e militares, inspirados nos moldes da pintura comemorativa napoleônica.

Como vimos, Salvador não fugiu à difusão destes modelos, mas também não esperou a chegada dos franceses no Rio de Janeiro para adota-los, relacionando-se também com o desenvolvimento da pintura norte-americana e com sua raiz inglesa. O significado político da pintura de retrato baiana e, em particular, dos retratos do Conde dos Arcos, no contexto da pintura sul-americana da época da independência ainda não encontrou suficiente atenção no panorama dos estudos da história da arte.        

Salvador da Bahia foi, neste sentido, um centro de renovação da arte do retrato no Brasil, antes da chegada da Missão Francesa. Este dado explica porque, conforme Manuel Querino, o imperador Dom Pedro I, durante a sua visita a Salvador em 1826, visitou a Aula Publica de Desenho de Franco Velasco e foi presenteado com um retrato pelo artista. A pintura, conservada no Museu de Arte da Bahia, poderia lembrar pela ambientação numa sala com coluna e cortinas, o retrato de Noronha e Brito de 1817, já mencionado.

Foi um momento, no entanto, de breve duração. Franco Velasco não foi chamado ao Rio para se tornar o retratista do imperador. Ao que parece pelas obras ainda conservadas nos acervos da capital baiana, inovações no campo do retrato foram introduzidas só de maneira ocasional por alguns pintores ao longo do século XIX, para representar membros da aristocracia baiana fora de contextos oficiais. É o caso do Retrato de Dama com leque e mantilha, no Museu de Arte da Bahia, datável entre 1835 e 1845, de José Maria Cândido Ribeiro, pintor português mais conhecido pelas suas desventuras judiciais, sendo envolvido em acusações por falsificação de dinheiro.

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Cândido Ribeiro, 1839

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Fazem parte destas exceções o retrato do Doutor Jonathas Abbott, o primeiro colecionador sistemático de pinturas antigas de Salvador, e talvez do Brasil, obra de João Francisco Lopes Rodrigues, datado possivelmente do final da década de 1860; e o retrato de Ana de Jesus Moniz Vianna, filha do segundo barão do Rio das Contas, Frutuoso Vicente Vianna. A dama casou-se em 1870 com Manuel Ignacio Ferreira de Vianna Bandeira, e o retrato parece da mesma época e também do círculo de Lopes Rodrigues.

Este e seu filho, Manuel, pintor de refinada preparação acadêmica, antes como aluno do espanhol Miguel Cañizares em Salvador, depois em Paris durante a década de 1880, desenvolveram em Salvador um discurso pictórico atualizado com os desdobramentos dos grandes centros internacionais, embora se conservassem relativamente convencionais no campo do retrato.

Neste género, eles e outros nomes muito recorrentes nos acervos baianos na segunda metade do século XIX, José Antônio da Silva Couto, Oséas Santos, Vieira de Campos, pertencem mais à história do interessante campo da foto-pintura, que teve um desenvolvimento notável no Brasil, sobretudo, no campo do retrato, mas que mereceria um estudo particular, detalhado e pensado com métodos específicos, unindo aqueles da sociologia com os da história da arte e da fotografia.

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Luciano Migliaccio

Luciano Migliaccio, Doutor em Storia Dell’arte Medievale e Moderna pela Universitá degli Studi di Pisa, é professor do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade de São Paulo e professor visitante da Universidade Estadual de Campinas.