Urbanismo

O Campo de Marte, entre o real e o ideal

por Gabriel Rostey

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Uma pesquisa Datafolha divulgada no último dia 11 de abril deu mostras mais concretas da insatisfação dos paulistanos com o deplorável estado de coisas em São Paulo: 55% dos moradores iriam embora da capital paulista se pudessem, número que não para de crescer de 2012 para cá, período que engloba gestões de quatro prefeitos diferentes.

Ainda que os dados oficiais de criminalidade violenta, como homicídios, apresentem uma contínua melhora nos últimos anos, a sensação de insegurança é crescente a tal ponto que 8 em cada 10 paulistanos têm medo de serem assassinados na rua, e 9 em cada 10 temem ser assaltados na rua. O ambiente de generalizada degradação urbana de uma cidade que parece abandonada à própria sorte tem influência determinante sobre esses números. E agora, com o arrefecimento da pandemia, os holofotes voltam-se cada vez mais à falência urbanística paulistana e suas dezenas de milhares de pessoas vivendo em barracas, crianças nas ruas, postes sem luz pelo furto de cabos, surto de furtos de celulares, praças tomadas por usuários de drogas e semáforos que param de funcionar ao menor sinal de chuva.

Sem aparente relação direta, há cerca de um mês, dia 28 de março, foi homologado pelo STF o acordo entre Prefeitura de São Paulo e Governo Federal pelo Campo de Marte, que mesmo visto com desconfiança, deve ser cobrado como a oportunidade para que se mude esta inaceitável realidade.

A disputa pela área durou quase um século, e se iniciou a partir da Revolução Constitucionalista de 1932, quando o Governo Federal se apossou do Campo de Marte, então municipal. Em 1958 a Prefeitura entrou na Justiça e, entre muitas idas e vindas, a mais recente decisão tinha sido favorável a ela, com o reconhecimento de que a terra seria de sua propriedade e a União teria que lhe pagar uma pesada indenização pelo tempo que a vinha utilizando, estimada entre R$ 26 bilhões e R$ 49 bilhões.

O acordo firmado estabeleceu que 1,7 milhão m², cerca de 80% da área, passariam a ser de propriedade do Governo Federal, enquanto o município ficaria com 400 mil m², ao redor de 20%, em troca da extinção de uma dívida de R$ 24 bilhões que a Prefeitura tinha com a União e vinha pagando desde 2000.

A partir daí, as críticas à Prefeitura pelo fim da disputa judicial passaram a ser praticamente unânimes, baseadas na premissa simplista de que toda a área seria inteiramente de uso da municipalidade, que ainda teria direito a receber até R$ 49 bilhões. Dessa perspectiva, o acordo representaria uma absurda renúncia que lesaria os interesses municipais.

Entretanto a realidade é mais complexa: apesar da última decisão do STF a favor do município (depois de outras contrárias), a área permanecia sob o controle federal da Infraero e da Aeronáutica, por se tratar de um serviço público federal, e enquanto a indenização da União à Prefeitura era uma expectativa — sequer definitivamente encerrada nos tribunais e com possibilidade de seguir se arrastando até se tornar precatórios —, os três bilhões de reais anualmente pagos pela Prefeitura à União são, com o perdão do trocadilho, bem reais.

Tais ponderações não são uma aprovação entusiasmada à troca. Por uma acomodação benéfica a curto e médio prazo, a Prefeitura efetivamente abdicou de poder vir a receber bilhões algum dia, assim como desistiu de tentar vir a controlar em definitivo uma área que poderia ser estratégica para o futuro da cidade caso houvesse o que já se tornou artigo de luxo por aqui: um projeto.

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Vista aérea do Campo de Marte, com o Anhembi e a Marginal Tietê abaixo; e à direita, de cima para baixo, as estações Santana, Carandiru e Portuguesa-Tietê do Metrô (Reprodução/Google Earth)

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Para melhor ideia da dimensão, os 2,1 milhões m² do Campo de Marte são maiores do que os 1,7 milhões m² destinados ao projeto de Puerto Madero, em Buenos Aires, e são quase 8 vezes o tamanho de East Village, novo bairro construído como a Vila Olímpica dos Jogos de Londres em 2012, de 270 mil m², que deu origem a cerca de 3 mil novas residências. Considerando-se que São Paulo tem um déficit habitacional de cerca de 500 mil moradias, e esta imensa área tem localização estratégica, a 4 km do Marco Zero da cidade, com estações do Metrô a 500 metros de distância, ao lado da Marginal Tietê — principal via de trânsito da toda a metrópole —, e ao lado do mais tradicional espaço de eventos paulistano, o Anhembi, é chocante que não tenha havido sequer uma campanha por parte de sucessivas gestões municipais com base em um projeto sério para controlar a área e bem aproveitar tamanho potencial transformador para a capital paulista.

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Puerto Madero, em Buenos Aires: menor do que o Campo de Marte (Foto: Gabriel Huesi/ Reuters)

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Por outro lado, é notória a lentidão da nossa Justiça — tanto que a disputa foi judicializada há 64 anos, e há décadas prefeitos anunciam intenções vagas para a área sem que nada aconteça —, e é um fato que agora a municipalidade poderá, enfim, assumir definitivamente 400 mil m² para os quais anuncia a criação de um parque.

De todo modo, o principal impacto do acordo para os paulistanos passa pelo cancelamento da dívida, já que a Prefeitura deixa de pagar R$ 250 milhões de reais por mês à União, R$ 3 bilhões ao ano, e assim ganha a capacidade de investir anualmente mais do que o previsto, por exemplo, para zeladoria ou habitação (respectivamente R$ 1,4 bilhão e R$ 2,4 bilhões em 2022). Já está determinado que parte do dinheiro poupado deve obrigatoriamente ir para a assistência social.

É um caso complexo que envolve perdas e ganhos e foi acertado por governantes que não inspiram muita credibilidade (bem como a Câmara Municipal que o aprovou). Porém, para além de sonhos e diante da falta de visão urbana no Brasil de hoje, traz vantagens para todas as partes: põe fim a mais uma insegurança jurídica; facilita a concessão do aeroporto em andamento pelo Governo Federal; oferece aos paulistanos um novo parque; e permite que a Prefeitura poupe recursos para, espera-se, pelo menos cumprir minimamente o medíocre papel de zeladora urbana do qual vem se furtando há algumas gestões.

Todos os últimos prefeitos se valiam do pagamento da dívida para justificar a falta de investimentos necessários para uma São Paulo mais digna. Que a sociedade paulistana não permita mais desculpas para a atual indigência urbanística e cobre para que o acordo pelo Campo de Marte seja o passaporte para que o paulistano queira permanecer em sua cidade.

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Gabriel Rostey

Gabriel Rostey é consultor em política urbana, patrimônio cultural e turismo. Ex-Secretário Geral da Associação Preserva São Paulo, é membro do Conselho Municipal de Política Urbana da cidade de São Paulo