Cultura

Seinfeld e ‘a piada judaica’

..

O George Costanza que habita em mim saúda o George Costanza que habita em você

..

(Reprodução)

..

por Ana Carolina Romero

..

The Smiths para um exemplo específico; Seinfeld para a compreensão de uma vida toda

Gosto da banda The Smiths desde a primeira vez em que escutei uma música deles. São tantas as letras com as quais me identifico que a ideia de expô-las aqui talvez fizesse deste texto um longo ensaio. Há uma, no entanto, com que sempre me identifiquei de modo mais ou menos engraçado. Identifico-me, isso me era claro, mas eu não entendia exatamente o porquê. Como se eu entendesse o que o cantor estivesse querendo dizer, mas não entendesse como é que eu entendia o que ele queria dizer. A música se chama «Heaven knows I’m miserable now», em que Morrissey canta «I was looking for a job and then I found a job, and heaven knows I’m miserable now…». Eu estava procurando por um emprego. E então eu encontrei um emprego! E agora eu me sinto miserável…

O fato é que de alguma forma a frase de Morrissey não me causava nenhum estranhamento. Na verdade, eu era capaz de pensar em inúmeras situações que haviam me trazido um sentimento próximo ao que foi descrito por ele na música. Eu às vezes fantasiava a ideia de falar uma língua que me parecia complexa, quase incompreensível, meu Deus, que absurdo de dificuldade é esse, e o interesse desaparecia à medida que ela se tornava acessível, que acenava, amigável, ao meu entendimento. O emprego dos sonhos, enquanto um ideal, é algo em busca de que eu acordo diariamente motivada. Depois de contratada, o vislumbre passa a ser o da realidade mundana do cargo — trata-se apenas de um trabalho como tantos outros que eu poderia ter…

Por favor! Nem sequer tente me dizer que você nunca passou por algo parecido — o Morrissey e eu não acreditamos em você. É como se às vezes a gente só conseguisse achar interessante aquilo que ainda não pode ser associado a nós. Um emprego para o qual eu sirva? Não deve ser grande coisa, afinal. Estão contratando qualquer um. Um idioma que até eu consiga aprender, assim, sem vinte anos de esforços exaustivos? Sintaxe simples, nada que torne digno o ato de eu me alegrar. A síntese parece ter sido muito bem apresentada por Groucho Marx: «Eu nunca faria parte de um clube que me aceitasse como sócio». Um acontecimento bom, quando direcionado a mim, levanta logo a suspeita de que na verdade não pode ser tão bom assim…

O exemplo de Morrissey talvez seja específico demais. Pensemos, então, em «Seinfeld», que exibe em nove temporadas uma personagem pela qual todos nos sentimos, em maior ou menor medida, representados.

Imagine comigo… você consegue a melhor vaga de estacionamento possível: é justamente este o espaço no qual um suicida se atirará, destruindo o seu automóvel. Você planeja férias de verão de modo ansioso, empolgado, e por fim o que te acontece é um acidente e uma maca no hospital. Você espera pela ligação da pessoa de quem gosta e, quando enfim ela liga, você perde a ligação. Ao longo das nove temporadas, as situações variam, mas o sentimento se mantém: algo que a princípio aparenta ser bom vai, inevitavelmente, se reverter em um acontecimento ruim — ao fim de que nós cantaremos «and I’m miserable now…».

As cenas de «Seinfeld» mencionadas acima aconteceram todas com a mesma personagem: George Costanza, uma das protagonistas da série. O cotidiano de Costanza se destaca precisamente porque encarna uma sugestão muito recorrente no humor judaico: a de que todo acontecimento tem sempre dois lados. Parece óbvio, não? Um lado bom, outro ruim. Nós já não somos ensinados, desde cedo, a enxergar o lado bom das coisas ruins? Acontece que, em relação à piada judaica, a questão é um pouco diferente…

..

Morrissey

..

Assistindo a Seinfeld com o ensaio «A piada judaica», de Devorah Baum, em mãos

Em «A piada judaica», a escritora Devorah Baum apresenta características que julga específicas à construção do humor judaico. Uma das ideias destacadas por ela é a de que nada seria tão ruim a ponto de não poder (ainda) piorar. No humor judaico, ainda de acordo com ela, também não haveria «nada tão inócuo que não se mostre maligno». E, por fim, não existiria nenhuma «resposta entusiasmada que não possa revelar uma crítica». O que os três aspectos têm em comum? Eles parecem esclarecer que, como disse Franz Kafka, pode até ser que exista esperança, mas não para nós — um nós que, para Kafka, correspondia aos judeus.

Para Devorah Baum, as três características acima exploram uma ideia geral de que se forma a piada judaica: a de que tudo tem sempre um outro lado. Para Baum, na piada judaica é sempre possível «ver o lado positivo das más notícias», mas é ainda mais provável ver «o lado negativo das boas notícias». A síntese de Baum é precisamente o mote dos episódios que encerram a quarta temporada de «Seinfeld», os «Piloto I» e «Piloto II».

O episódio «Piloto I» se inicia com um stand-up de Jerry Seinfeld, algo a que os espectadores a essa altura já estão familiarizados, que aborda o medo generalizado de que seríamos todos, igualmente, vítimas: o medo do sucesso — lembra-se da música dos Smiths, mencionada lá em cima? Agora ela aparece em forma de stand-up.

No episódio em questão, Jerry Seinfeld e George Costanza aguardam a confirmação de que a série que escreveram juntos — «Jerry», uma série sobre nada (piada interna dos seinfeldianos) — será lançada pela companhia de TV NBC. George Costanza está ansioso, crente de que a demora da resposta indica o fato de a série ter sido recusada. Minutos depois, Jerry recebe uma ligação que atesta o êxito do roteiro: a série foi aprovada. Ufa. Já não há nada com que George possa se preocupar, certo? Errado! E então passamos a entender o porquê…

George Costanza revela não saber o que faria caso a série se tornasse bem-sucedida e fizesse dele um homem profissionalmente realizado. Na verdade, isso pode ser de fato um problema, já que ele acredita que Deus jamais permitiria que ele se tornasse bem-sucedido. Antes de que algo desse certo, Deus provavelmente o mataria. Um detalhe interessantíssimo: George Costanza sequer acredita em Deus. A não ser para as coisas ruins. Até então, imagino que você esteja pensando, temos um prato cheio do que seriam exemplos para a contextualização do humor judaico feito pela escritora Devorah Baum.

O episódio passa a estabelecer relações ainda mais sólidas com o ensaio de Devorah Baum à medida que o enredo corrobora a paranoia de George Costanza. A personagem enxerga, então, uma «mancha branca» em seus lábios que, para ele, representa o indício de um câncer. A possibilidade de ser acometido por uma doença terminal se adequa à sua narrativa: enquanto era um fracassado, sua saúde era impecável; agora que a série da qual ele é um roteirista está prestes a se tornar um sucesso, Deus o mataria. «Seinfeld» dá a ilustração perfeita para a ideia de Devorah Baum de que no humor judaico há sempre dois lados: e o lado negativo das boas notícias é o que parece ganhar especial notoriedade.

Os episódios «Piloto I e II» fazem de Seinfeld a definição cênica do que Devorah Baum expõe em «A piada judaica»: George Costanza escreve uma série, mas não acredita que ela vá ser aprovada. A série ganha aprovação, mas então é a ele que algo de ruim deve acontecer, uma vez que não há chances de vivermos em um mundo em que boas coisas podem acometê-lo. Surge, portanto, a possibilidade de um tumor que, quando solucionada, é seguida pelo cancelamento da série que faria de George Costanza um homem bem-sucedido.

Adoro cantar Smiths em voz alta. E me divirto muito com a condução caótica que George Costanza dá à própria existência. Mas também me assusta a possibilidade de que eu olhe para a minha vida e veja uma repetição discreta, de fora talvez até imperceptível, do que seriam comportamentos quase que estereotipados dessas personagens. Por isso, é bem preocupante o fato de que eu já sou George Costanza o suficiente para nem sequer acreditar que esse texto será publicado. E caso seja, é melhor que, em seguida, alguém me consulte sobre o meu estado de saúde…

..

.…….…….

..

«A piada judaica», de Devorah Baum, foi publicado pela Editora Âyiné, com tradução de Pedro Sette-Câmara e ilustração de Julia Geiser.

..

(Reprodução: Âyiné)

..

..

Ana Carolina Romero

Ana Carolina Romero é mestre em Literatura Comparada pela Universidade Estadual de Londrina. Atualmente traduz e colabora com a editora Âyiné.