Política

Precisamos falar sobre nosso sistema eleitoral

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Precisamos falar sobre nosso sistema eleitoral
Como um sistema eleitoral moderno pode criar uma política mais consensual e representativa

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por André Spritzer

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O Brasil atualmente possui um dos piores sistemas eleitorais possíveis. Além de ser um dos principais responsáveis pela grande fragmentação partidária, que contribui com a baixa representatividade dos partidos e leva à necessidade da formação de coalizões gigantescas, incoerentes e fisiológicas para que se mantenha a governabilidade, ele também amplia a polarização política e social que dificulta a construção de consensos e a criação de uma sociedade plural e tolerante.

O sistema eleitoral brasileiro é na verdade a combinação de três sistemas concomitantes: um para a eleição de cargos executivos (presidente, governadores e prefeitos), outro para eleição dos senadores e ainda outro para os representantes nas demais casas legislativas (deputados federais, deputados estaduais e vereadores). Os detentores de cargos executivos são eleitos para mandatos fixos de quatro anos através de voto majoritário, em que uma única pessoa vence após conquistar mais da metade dos votos em seu distrito (o país como um todo, o estado ou o município) em primeiro ou segundo turno. Os senadores, por sua vez, são eleitos para mandatos de oito anos de forma intercalada (a cada eleição, são renovados, alternadamente, um terço e dois terços dos assentos) e por voto majoritário de turno único em distritos (os estados) de três membros, ou seja, ganham os candidatos que obtiverem mais votos que os demais, sendo que cada estado possui três senadores. Os deputados federais e estaduais e os vereadores, finalmente, são eleitos por um sistema proporcional, que confere a cada distrito (estados e municípios) um número de assentos relativo à sua população e os aloca de acordo com o número de votos obtidos por cada partido.

A formulação mais básica de um sistema de voto majoritário é bastante intuitiva: leva o cargo quem tiver mais votos. Essa simplicidade é também sua principal vantagem, tanto em termos de implementação quanto de compreensão pelo eleitor. Suas desvantagens, no entanto, são menos óbvias, mas bastante significativas. Um dos seus principais problemas diz respeito a representatividade dos ganhadores e pode ser facilmente notado quando ele é aplicado em distritos de um só membro: como há somente um assento sendo disputado e, para ser eleito, basta apenas que o candidato obtenha mais votos que cada um dos seus adversários, os eleitores têm incentivo a votar em um dos dois candidatos mais fortes ao invés de em seus reais favoritos—ou seja, de forma a não desperdiçar seu voto em alguém que não teria chance de vitória, o eleitor tende a estrategicamente optar pelo candidato forte cuja vitória seria menos desagradável sob seu ponto de vista ao invés de praticar um voto sincero no candidato de sua real preferência. Além do evidente problema de representatividade, a natureza de soma-zero desse sistema também produz um pleito de caráter plebiscitário e adversarial, dividindo o eleitorado em dois blocos claros de ganhadores e perdedores, exacerbando o conflito na sociedade e fomentando uma oposição hostil ao invés de fiscalizadora e construtiva.

Quando o sistema de voto majoritário é usado tanto para a eleição de cargos executivos quanto para as casas legislativas e não há partidos regionais fortes (ou seja, os mesmos partidos dominam a política no país todo), é fácil ver como o voto estratégico tende a criar uma dinâmica bipartidária, devido à convergência nos partidos mais fortes. O Brasil, contudo, combina o voto majoritário de membro único para cargos executivos com um sistema proporcional para as casas legislativas (com exceção do Senado). Esse sistema tem como princípio produzir, nas legislaturas de cada distrito, um espelho da sociedade em toda sua pluralidade, alocando assentos para cada partido de acordo com a sua quantidade de votos—ou seja, se um partido A obtiver X% dos votos em um determinado distrito, ele leva X% dos assentos. Ele estimula, portanto, o voto sincero e a proliferação de partidos, já que não é necessário votar estrategicamente para ter um representante eleito. Isso acaba criando, portanto, uma força contrária à tendência bipartidária do sistema majoritário, gerando pleitos para cargos executivos com candidatos viáveis oriundos de múltiplos partidos. Sem nenhum ajuste, isso pode acabar por prejudicar a representatividade do vencedor das eleições para cargos executivos por favorecer a eleição de candidatos minoritários—ou seja, que possuam uma votação maior que cada um dos outros individualmente (obtendo, assim, a vitória), mas menor que a soma dos votos de todos (tendo, portanto, uma minoria dos votos). Isso é especialmente ruim quando o número de candidatos é muito grande (ou seja, há uma alta fragmentação partidária), pois tende a favorecer aqueles que têm uma base que, mesmo minoritária na sociedade, é mais aguerrida, consolidada e propensa a votar—o que é justamente o caso dos candidatos situados nos extremos do espectro político (note que isso não quer dizer que sejam necessariamente extremistas).

No Brasil, os problemas de representatividade dessa mistura de voto majoritário com sistema multipartidário se manifestam tanto nas eleições para o Senado quanto para cargos executivos. No Senado, são eleitos os candidatos que possuem mais votos que os demais, mesmo que sejam menos consensuais que outros que foram prejudicados pela dispersão de votos em uma grande quantidade de pretendentes—ou seja, os senadores eleitos não são necessariamente os mais representativos da população de seus estados. Para cargos executivos, procura-se atenuar esse efeito através de um segundo turno entre os dois candidatos mais votados quando nenhum consegue obter uma maioria (ao menos um voto a mais que a metade dos votos). Por se tratar de uma escolha binária, o segundo turno força a criação de uma maioria artificial em favor do vencedor, produzindo (ao menos teoricamente) um mandato com legitimidade popular. O que pode acontecer, contudo, é a ida ao segundo turno justamente dos dois candidatos menos consensuais—especialmente em quadros de alta fragmentação e polarização—, já que aqueles que conseguem mais votos que os demais são, muitas vezes, também o que têm maior rejeição pela população. O resultado disso pode acabar sendo disputas de segundo turno em que a quase totalidade da sociedade rejeita os dois candidatos, mas se vê forçada a votar no “menos pior”. Exemplos disso incluem as eleições presidenciais de 1989 e 2018.

Em 1989, 22 candidatos disputaram a eleição no primeiro turno e os votos ficaram dispersos entre os sete primeiros colocados (que incluíam grandes nomes como Mário Covas, Leonel Brizola e Ulysses Guimarães), levando ao segundo turno, em detrimento de candidatos mais consensuais, o desconhecido populista Fernando Collor de Mello e um então mais radical Lula com apenas 30,47% e 17,18% dos votos, respectivamente. Em 2018, algo similar ocorreu: mesmo com nomes menos divisivos e/ou mais qualificados, como Geraldo Alckmin, Ciro Gomes, Marina Silva, João Amoêdo e Henrique Meirelles, o eleitor altamente polarizado levou ao segundo turno Jair Bolsonaro e Fernando Haddad—os dois candidatos mais rejeitados—por achar que um era a única alternativa possível contra o outro. Nesses pleitos, os minoritários Collor e Bolsonaro foram eleitos no segundo turno e já começaram seus mandatos com rejeição imensa de grande parte da população (incluindo de muitos de seus próprios eleitores, que só votaram neles por falta de opção) e, consequentemente, uma enorme dificuldade em construir coalizões de governo minimamente funcionais.

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Cédulas de votação para Presidente do 1º e 2º Turno das Eleições de 1989

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Como se já não bastasse a baixa representatividade das eleições majoritárias brasileiras, o sistema proporcional usado nas eleições legislativas também é bastante problemático. A princípio, um sistema proporcional é, sim, uma forma bastante adequada para que a sociedade seja representada em toda a sua pluralidade, tanto de ideias e ideologias quanto de grupos identitários. No entanto, ele não é a única (e talvez nem a melhor) alternativa e deve ser implementado com algumas precauções para evitar tanto uma proliferação excessiva de partidos, quanto partidos fracos demais—exatamente o que não foi feito no Brasil.

No sistema de voto proporcional tradicional, chamado de voto proporcional com lista fechada, cada partido elabora uma lista ordenada de candidatos de acordo com seus próprios critérios e o eleitor vota em um partido, com uma quantidade de assentos sendo distribuída aos partidos de acordo com suas respectivas votações e entregue por estes a seus candidatos conforme suas posições na lista de cada um. Como é o partido que define a ordem da lista, ele pode punir ou recompensar candidatos com diferentes posições, decidindo, portanto, quem vai ter mais chance de ocupar os assentos conquistados em uma eleição. Isso fortalece os partidos em relação aos candidatos, estimulando um comportamento parlamentar coeso e coerente que facilita negociações e governabilidade e ajuda a criar uma identidade partidária clara, sendo assim bom tanto para o governo quanto para o eleitor. Como um excesso de partidos pode tornar negociações e a construção de coalizões demasiado difíceis, esse sistema é normalmente implementado com uma cláusula de barreira, que estabelece que assentos e recursos só serão conferidos para partidos que obtiverem uma votação mínima. No Brasil, no entanto, optamos por outro modelo.

Ao invés do modelo com lista fechada, o Brasil adotou o voto proporcional com lista aberta, no qual o eleitor define a ordem dos candidatos na lista de cada partido. À primeira vista isso parece uma boa ideia, pois o eleitor pode votar em candidatos específicos, teoricamente aumentando a representatividade ao criar um vínculo maior entre representante e representado. No entanto, não é exatamente isso que ocorre. O voto no candidato serve para definir a posição dele na lista do partido—ou seja, o eleitor define a ordem da lista ao votar em um candidato ao invés de diretamente no partido, mas os assentos ainda assim vão para o partido. Além de envolver uma indireção de difícil compreensão, isso pode produzir situações aberrantes, como candidatos individualmente bem votados que não ganham assentos porque seus partidos não conquistaram votos suficientes ou até mesmo o contrário: a candidatura e eleição de “puxadores de votos”, como celebridades e personagens folclóricos, que conquistam assentos em excesso para partidos que não têm representação real, levando ao parlamento pessoas desconhecidas, pouco qualificadas e de parca votação. Além do caos representativo, a lista aberta também enfraquece os partidos ao personificar demais a eleição, estimulando candidatos de um mesmo partido a competirem entre si e retirando dos partidos ferramentas que poderiam ser usadas para reforçar suas posições e produzir coesão e coerência de seus membros. Os candidatos acabam com poder demais sobre seus partidos, atrapalhando a construção de uma identidade e dificultando uma atuação partidária, pois há menos meios de assegurar que parlamentares irão seguir determinações de negociações dos líderes com outros partidos ou com o governo.

Além dos problemas inerentes ao sistema proporcional de lista aberta, a implementação brasileira ainda veio com complicadores extra. Em 2006 iria começar a valer uma cláusula de barreira que serviria para limitar a quantidade de partidos no parlamento, mas o Supremo Tribunal Federal a derrubou ao acatar uma ação direta de inconstitucionalidade movida por um grupo de pequenos partidos, resultando em uma proliferação descontrolada de siglas puramente fisiológicas. Não só isso, como o sistema brasileiro também permitia a formação de coligações partidárias para as eleições—ou seja, para fins eleitorais, um grupo de partidos de ideologias e programas não necessariamente compatíveis se juntava e funcionava como um único partido, com os votos sendo distribuídos entre todos, de forma que o eleitor poderia inadvertidamente eleger candidatos com os quais não tinha nenhuma afinidade. Outro problema é que, para alguns cargos, como deputado federal e deputado estadual, os distritos são grandes demais (os estados inteiros), o que torna as campanhas eleitorais muito caras e afasta os representantes dos eleitores.

Em 2017 foi aprovada uma pequena reforma política que deve aos poucos melhorar a situação, extinguindo as coligações para eleições proporcionais e gradualmente restaurando uma cláusula de barreira. Ainda assim, o estrago já foi grande (em 2021, 24 partidos—a maioria sem identidade clara—possuem representação na Câmara) e não só deve demorar até que o quadro seja revertido, como essa reversão será apenas parcial, sendo não só lenta e parcial demais perante a urgente ânsia da população por maior representatividade e responsividade, quanto insuficiente para desfazer a fragmentação partidária que incentiva a prática de corrupção e do chamado “toma-lá-dá-cá” para a construção de coalizões. Essa minirreforma, também, se refere somente às eleições proporcionais—as eleições para o senado e para cargos executivos continuarão com os mesmos problemas—e não resolve outras questões importantes como a baixa ligação das pessoas com seus representantes (muitos até esquecem em quem votaram, apesar das eleições serem primariamente em candidatos específicos) e o alto custo de campanhas eleitorais. Além dessas reformas já aprovadas, portanto, tem-se falado muito de mudanças no sistema eleitoral para modelos como “distritão”, distrital puro ou distrital misto.

No “distritão” (mais formalmente chamado de Single Non-Transferable Vote, ou Voto Único Intransferível), cada eleitor vota em um candidato e os candidatos mais votados ganham os assentos alocados para o distrito—ou seja, é um voto majoritário aplicado em distritos de n membros, sendo n proporcional ao tamanho da população do distrito. Esse modelo é considerado para a eleição dos deputados federais e consideraria os estados como distritos eleitorais, sendo assim análogo a como são atualmente eleitos os senadores. Como o voto vai somente para o candidato, é mais simples do que o voto proporcional de lista aberta atualmente usado e acaba com o fenômeno dos puxadores de votos. Por outro lado, é, também, ainda mais personalista, enfraquecendo ainda mais os partidos (já que nem são considerados), favorecendo celebridades, candidatos já conhecidos e personagens folclóricos e induzindo o eleitor a praticar o voto estratégico (já que só há espaço para x deputados, melhor votar em algum que possua chances do que desperdiçar voto em um mais representativo), além de não eliminar os problemas de custo e representatividade oriundos do enorme tamanho dos distritos.

No voto distrital puro, cada região (no caso, os estados) é dividida em uma quantidade (proporcional à sua população) de distritos de tamanho similar e um candidato é eleito por distrito por voto majoritário de turno único. Usado no Reino Unido e em várias ex-colônias britânicas (incluindo os Estados Unidos), esse sistema tem como principal vantagem a proximidade do representante com o eleitorado, o que decorre do tamanho relativamente pequeno de cada distrito. Suas demais vantagens e desvantagens são as típicas do sistema majoritário: é simples de entender e tende a conduzir a um bipartidarismo a nível local, mas incentiva o voto estratégico, pode causar uma sub-representação de determinados grupos e ideologias e estimula divisão e conflito devido à sua natureza de soma-zero. Como o Brasil já possui muitos partidos e alguns são particularmente fortes em determinadas regiões, a nível nacional a adoção desse modelo provavelmente conduziria a uma redução da quantidade de partidos (ou ao menos a um afunilamento da disputa em um número menor de siglas), mas dificilmente iria resultar em um sistema bipartidário ou quase bipartidário como, respectivamente, os sistemas americano e britânico—provavelmente teríamos um cenário similar ao da Índia (mesmo que mais atenuado), onde há dois principais partidos nacionalmente, mas localmente, nos estados, eles competem de forma bipartidária com partidos locais fortes ao invés de um com o outro.

O voto distrital misto, finalmente, é um sistema híbrido que busca obter o melhor de dois mundos, produzindo tanto representantes que possuam forte vínculo com comunidades específicas (como no voto distrital puro) quanto representantes de ideias e grupos minoritários (como no voto proporcional). Para isso, parte dos assentos de uma legislatura são definidos como no voto distrital puro, por voto majoritário de turno único em pequenos distritos de único membro e de população equivalente, e a outra, por voto proporcional de lista fechada—ou seja, cada eleitor vota em um candidato a nível do distrito e em um partido a nível da região (que seria o estado, no Brasil). Na implementação alemã—a mais associada a esse sistema—, primeiramente são considerados os votos nos candidatos e então são levados em conta os votos nos partidos, que ganham assentos a mais, preenchidos com os candidatos das listas partidárias, caso as siglas sejam sub-representadas em relação à votação obtida (ou seja, o número total de representantes na legislatura pode até variar a depender das compensações necessárias para atingir a proporcionalidade entre a quantidade de assentos e o voto em cada partido). A principal desvantagem do modelo distrital misto é que ele é um pouco mais complexo que o distrital puro, sendo de mais difícil entendimento e implementação. Além disso, ambos os sistemas distritais puro e misto ainda têm um problema na definição dos contornos dos distritos, incorrendo no risco de alguns atores tentarem manipular seu desenho para que contenham um eleitorado mais favorável a seu grupo político (prática conhecida como gerrymandering), distorcendo assim a representatividade.

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“The Gerry-mander”: Boston Gazette, 26 de março de 1812

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Entre todos esses sistemas, o “distritão” é sem dúvidas o pior, por acentuar todos os problemas do voto proporcional de lista aberta—o segundo pior—e ainda dificultar a renovação (motivo pelo qual é o preferido de boa parte dos atuais legisladores). Voto distrital puro é mais interessante que o “distritão” e que o voto proporcional de lista aberta por baratear as campanhas eleitorais e criar um vínculo direto entre comunidades específicas e representantes, mas pode acabar sub-representando visões minoritárias e estimulando a divisão social, além de que dificilmente acabaria com a salada partidária do Brasil, já que diferentes partidos possuem diferentes forças em diferentes regiões mesmo quando são de ideologia similar. Quando implementado com uma cláusula de barreira razoável e sem a possibilidade de coligações, o voto proporcional de lista fechada fortalece os partidos e ainda tende a produzir nas legislaturas um retrato fiel da sociedade, mas não produz um vínculo muito direto entre os representantes e os representados—tende a ser uma representação mais sobre mais sobre causas, ideologias, programas e identidades de grupo do que sobre problemas concretos, de dia-a-dia, que o vínculo a localizações específicas confere. O sistema distrital misto, por sua vez, é provavelmente o melhor modelo, pois, se bem implementado, combina o melhor do voto distrital puro e do voto proporcional de lista fechada, potencialmente produzindo legislaturas ao mesmo tempo representativas e próximas do eleitorado. No entanto, sem nem entrar na dificuldade política que envolveria a adoção de algum desses modelos (com provável exceção do “distritão”), nenhum deles aborda um dos problemas mais essenciais em países presidencialistas: a eleição de cargos executivos.

Como vimos, eleições para cargos executivos (presidente, governadores e prefeitos) e para o Senado funcionam com base em sistemas de voto majoritário, que incentivam conflito e divisão social e, em caso de múltiplos candidatos, podem favorecer a eleição de postulantes minoritários situados nos extremos do espectro político e/ou rejeitados por parte considerável—quando não a maioria—da população. Há boas alternativas para eleições majoritárias, no entanto, que eliminam ou amenizam esses defeitos, mas que não tem recebido tanto destaque no debate público quanto as opções para reformar as eleições legislativas proporcionais.

Entre os mais interessantes substitutos para o voto majoritário estão os sistemas baseados em um ranqueamento de candidatos pelo eleitor por ordem de preferência. A variante desse sistema para eleições em distritos de membro único se chama Voto Alternativo (Alternative Vote)—também conhecida como voto de Segundo Turno Instantâneo (Instant Runoff) ou de Escolha Ranqueada (Ranked Choice). Nesse modelo, o eleitor ordena os candidatos por ordem de preferência e uma série de “segundos turnos” automáticos é realizada com base nessas escolhas. Ou seja, primeiramente são consideradas as primeiras opções dos eleitores. Se algum candidato ultrapassar 50% dos votos, ele vence a eleição. Caso contrário, o candidato de menor votação é eliminado da disputa e os votos que iam para ele são realocados para o candidato que era a segunda opção dos eleitores que haviam votado no eliminado como primeira. Esse processo continua até que algum candidato obtenha 50% dos votos. Para distritos de mais de um membro, o sistema análogo se chama Voto Único Transferível (Single Transferable Vote) e consiste na eliminação progressiva dos candidatos menos votados até que o número de postulantes coincida com o de acentos disponíveis, sempre transferindo os votos dos eliminados para as opções seguintes de quem votou neles.

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Cédula das eleições federais australianas em 2016

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Ao contrário de dividir o eleitorado entre dois grupos claros de vencedores e perdedores, os sistemas de voto com base em ranqueamento buscam chegar a candidatos de compromisso entre todos os eleitores. Ou seja, esses sistemas buscam eleger aqueles que talvez não sejam os candidatos absolutamente preferidos de muitas pessoas, mas que já sejam ao menos aceitáveis para a maior quantidade possível de eleitores. Esses sistemas tanto incentivam os políticos a irem mais ao centro, quanto estimulam os eleitores a praticarem voto sincero, já que os votos de “backup” conferidos pelo ordenamento de candidatos garantem que nenhum voto será desperdiçado. A principal desvantagem desses sistemas em relação ao voto majoritário é que são um pouco mais complexos, dificultando um pouco tanto a sua implementação quanto a compreensão pelo eleitor. Ainda assim, eles têm sido a cada vez mais adotados, principalmente em países de língua inglesa. O Voto Alternativo é usado em países como Austrália (câmara baixa da legislatura), Índia (presidente), Irlanda (presidente), Reino Unido (prefeito de Londres), e, crescentemente, Estados Unidos (diversas eleições locais, estaduais, federais e partidárias, em alguns estados). O Voto Único Transferível, por sua vez, é bastante usado na Austrália, que o adota para eleger o Senado e em eleições legislativas regionais, mas também é empregado pelo Canadá, Nova Zelândia e outros países para eleições diversas.

Em distritos de membro único, ainda outro possível substituto para voto majoritário é o chamado Voto por Aprovação (Approval Voting). Esse sistema é o mais simples possível: cada eleitor pode votar em quantos candidatos quiser (ou seja, o eleitor escolhe todos os candidatos que considera razoáveis), sem especificar uma ordem, e ganha aquele que obtiver mais votos. Além dessa simplicidade, por permitir que o eleito seja até mesmo alguém que em uma eleição majoritária seria descartado ou não seria o vencedor por maioria absoluta, esse sistema é uma opção ainda mais consensual do que o Voto Alternativo, além de incentivar o voto sincero. O Voto por Aprovação pode ser facilmente estendido para distritos de mais de um membro, em um sistema de voto proporcional (o Voto por Aprovação Proporcional), no qual ganham os acentos os candidatos mais votados. O Voto por Aprovação é a “vanguarda” dos sistemas eleitorais, então ainda é pouco usado, mas já foi adotado por algumas cidades dos Estados Unidos e é também a forma como é eleito o Secretário Geral da ONU. Organizações como o Center for Election Science fazem campanha para difusão e adoção desse método eleitoral.

Para o caso das eleições para cargos executivos no Brasil, tanto o Voto Alternativo quanto o Voto por Aprovação eliminariam os problemas da eleição de candidatos minoritários e da ida ao segundo turno dos candidatos mais rejeitados. Ao invés de dividir a sociedade em ganhadores e perdedores (algo particularmente forte em eleições presidenciais), estimular polarização e radicalização de candidatos e forçar eleitores a enfrentar dilemas como a escolha entre duas opções que detestam, esses métodos de votação estimulam a busca de consenso e compromisso, evitando cenários como as eleições presidenciais de 1990 e 2018 (assim como o que provavelmente teremos em 2022). Infelizmente, os municípios e estados brasileiros não têm a liberdade de escolher seus próprios métodos de votação (ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, por exemplo, onde estados e municípios são verdadeiros laboratórios de políticas públicas), de forma que testar esses sistemas localmente em alguns poucos lugares é mais difícil. Ainda assim, é possível começar gradualmente, com eleições para prefeitos, e depois expandir para a escolha de governadores e, finalmente, presidente. Eventualmente, também a adoção de algum desses sistemas pode ser combinada com um sistema distrital misto ou até mesmo puro (já que inerentemente atenuariam muitos dos problemas deste último também) para eleições de deputados e vereadores. Assim como qualquer reforma, contudo, essas transformações requerem ampla discussão pela sociedade e levam certo tempo para serem implementadas, além de que certamente enfrentariam resistência política. Seriam, porém, algo menos drástico do que outras reformas que têm sido cogitadas, como a troca do sistema presidencialista por um parlamentarismo ou semipresidencialismo.

É sempre necessário ressaltar, também, que reformas institucionais não são uma panaceia. Por mais que ajudem a resolver problemas políticos, instituições dependem de como são usadas por seus ocupantes para que funcionem de forma correta e isso envolve a consolidação não só de um arcabouço institucional sólido, mas de uma legítima cultura política democrática na sociedade. A vivência democrática, com um bom funcionamento da mecânica institucional e resultados positivos em termos de qualidade de vida, ajuda a fomentar essa cultura, mas é insuficiente para realmente enraizar na população valores democráticos. Seja uma reforma política feita ou não, mais fundamental—e muito mais difícil—é a transformação dos brasileiros em cidadãos democratas, eliminando o ranço autoritário e a intolerância política que ainda permeia grande parte da sociedade e criando um senso de identidade comum que perpasse preferências partidárias. Atingir isso envolve não só o sistema político e os líderes políticos (muitos dos quais precisam, também, se tornar legítimos democratas, aceitando opositores como participantes legítimos do jogo democrático), como a própria sociedade civil, através de suas diferentes instituições e organizações, como família, escolas, igrejas, clubes e outras associações.

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André Spritzer

André Spritzer é Doutor em Computação pela UFRGS, com estágio de pós-doutorado no INRIA (Aviz/Paris) e na UFRGS. Pesquisou Ciência Política e Relações Internacionais na UoL/LSE.