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George Steiner: Aqueles que queimam livros

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Aqueles que queimam livros

George Steiner

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George Steiner

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Aqueles que queimam livros, que banem e matam poetas, sabem exatamente o que fazem. Seu poder é incalculável. Precisamente porque o mesmo livro e a mesma página podem ter efeitos totalmente díspares sobre diferentes leitores. Podem exaltar ou aviltar; seduzir ou enojar; estimular a virtude ou a barbárie, acentuar a sensibilidade ou banalizá-la. De uma maneira verdadeiramente desconcertante, podem fazer as duas coisas, praticamente ao mesmo tempo, em um impulso tão complexo, tão híbrido e tão rápido em sua alternância que nenhuma hermenêutica, nenhuma psicologia podem predizer nem calcular sua força. A depender do momento da vida do leitor, um livro suscitará reações completamente diferentes. Na experiência humana, não há fenomenologia mais complexa do que aquela dos encontros entre texto e percepção, ou, como observa Dante, entre as formas da linguagem que ultrapassam nosso entendimento e os níveis de compreensão em relação aos quais nossa linguagem é insuficiente: “la debilitate de lo’nielleto e la cortezza del nostro parlare”.

Mas nesse diálogo sempre imperfeito — os únicos que podem ser plenamente compreendidos são os livros efêmeros e oportunistas, cujo significado potencial se pode esgotar — se pode ler um apelo à violência, à intolerância, à agressão social e política. Celine é o único de nós destinado a permanecer, dizia Sartre. Existe uma pornografia do teórico, até do analítico, assim como existe uma pornografia da sugestão sexual. As citações dos livros ditos “revelados” — o Livro de José, a Epístola de Paulo aos Romanos, o Corão, Mein Kampf, o Pequeno Livro Vermelho de Mao — são o prelúdio ao massacre, sua justificação. A tolerância e o compromisso requerem um contexto imenso. O ódio, a irracionalidade, a libido do poder são lidos rapidamente. O contexto desaparece na violência do assenso. Donde o dilema profundamente perturbador e problemático da censura. É sucumbir à hipocrisia liberal duvidar que certos textos, livros ou periódicos possam inflamar a sexualidade; que possam levar diretamente à mimese, à imitatio, chegando a dar a vagas pulsões masturbatórias uma terrível concretude e uma necessidade urgente de ser saciada. Como podem os libertários justificar o dilúvio de erotismo sádico que hoje invade as livrarias, as bancas e a internet? Com quais meios defender essa literatura programática do abuso de crianças, do ódio racial e da criminalidade cega com os quais nos martelam incessantemente os ouvidos, os olhos e a consciência? Os mundos do ciberespaço e da realidade virtual estarão saturados de programas gráficos e revestidos por uma pseudoautoridade, de sugestões e exemplos validadores da bestialidade em relação a outros seres humanos, em relação a nós mesmos (a recepção, o prazer do trash, da baixeza, é automutilação do espírito). Estaria totalmente equivocado o ideal platônico da censura?

Por sua vez, os livros são a chave de acesso para nos tornamos melhores. Sua capacidade de provocar essa transcendência suscitou discussões, alegorias e desconstruções sem fim. As implicações metafóricas do ícone hebreu-helenístico do Livro da Vida, do Livro da Revelação, da identificação da divindade com o logos, são milenárias e não têm limites. Desde os sumérios, os livros foram os mensageiros e os cronistas do encontro do homem com Deus. Muito antes de Catulo, eles foram os mensageiros do amor. Acima de tudo, assim como algumas obras de arte, encarnaram a ficção suprema de uma vitória possível sobre a morte. O autor deve morrer, mas suas obras sobreviverão, mais sólidas que o bronze, mais perenes que o mármore: “exegi monumentum aere perennius”. A polis que celebra Píndaro perecerá; a língua na qual a celebrou pode morrer e se tornar indecifrável. Mas, através do rótulo, através do elixir da tradução, a ode pindárica sobreviverá, continuará cantando desde os lábios lacerados de Orfeu enquanto a cabeça morta do poeta flui na corrente até o país da lembrança. Um erro tipográfico pode imortalizar. Traduzindo Villon, Thomas Nashe havia escrito “a brightness falls from her hair”; o impressor elisabetano se confundiu e escreveu “a brightness falls from the air” que se tornou um dos versos talismã de toda a poesia de língua inglesa.

O encontro com o livro, assim como com o homem ou a mulher, destinado a mudar nossa vida, frequentemente em um instante de reconhecimento do qual não se está consciente, pode ser completamente casual. O texto que vai nos converter a uma fé, que vai nos fazer aderir a uma ideologia, que dá a nossa existência um fim e um critério, pode estar a nos esperar na estante dos livros de ocasião, usados, com desconto. Talvez empoeirado e esquecido, na estante ao lado do livro que procurávamos. A estranha sonoridade da palavra impressa na capa gasta pode atrair nossa atenção: Zaratustra, West-östlicher Divan, Moby Dick, Horcynus Orca. Enquanto um texto sobrevive, em algum lugar desta terra, ainda que em silêncio ininterrupto, é sempre capaz de ressuscitar. Walter Benjamin o ensinava, Borges construiu sua mitologia: um livro autêntico não é jamais impaciente. Ele pode esperar séculos para despertar um eco vivificante. Pode estar à venda pela metade do preço em uma estação metropolitana, como foi o caso do Celan que descobri por acaso e abri. A partir daquela circunstância fortuita, minha vida se transformou, e e eu tentei aprender “uma língua ao norte do futuro”.

Essa transformação é dialética. Suas parábolas são aquelas da anunciação e da epifania. A gênese da criação literária não nos é dada a conhecer! Não temos, por assim dizer, qualquer acesso à possível neuroquímica do ato de imaginação e dos seus procedimentos. Mesmo o rascunho mais informe de um poema é já uma etapa muito tardia na viagem que conduz à expressão e ao gênero performativo. O crepúsculo, o “antes do alvorecer” e as pressões à expressão que se exercem no subconsciente são praticamente imperceptíveis para nós. Mais concretamente: como é possível que incisões sobre uma tábula de argila, uns traços de caneta ou lápis frequentemente pouco legíveis sobre um papel frágil, constituam uma persona — uma Beatriz, um Falstaff, uma Anna Kariênina —, cuja substância, para inumeráveis leitores ou espectadores, ultrapassa a própria vida em sua realidade, em sua presença fenomênica, em sua longevidade encarnada e social? (Esse enigma da persona fictícia, mais viva, mais complexa que a existência de seu criador e de seu receptor — aquele homem ou aquela mulher são tão belos como Helena, tão complexos como Hamlet, tão inesquecíveis como Emma Bovary? — é a questão central, mas também a mais difícil, da poética e da psicologia.)

A imagem clássica foi aquela da criação divina, de Deus criando o mundo e o homem. Explicitamente ou não, o grande escritor ou o grande artista foi visto como um simulacro do decreto divino. Com frequência, sentiu-se o rival amargo ou amante de Deus, seu concorrente no ato de invenção e de representação. Para Tolstói, Deus era “o outro urso na floresta”, que ele deveria afrontar, com o qual era necessário lutar. Toda a metáfora da “inspiração”, tão antiga quanto as musas ou o sopro de Deus na voz do vidente ou do profeta, é uma tentativa de justificar as relações miméticas entre a poiesis sobrenatural e a poiesis humana. Com uma diferença capital, porém. O problema da criação divina ex nihilo foi debatido em todas as grandes teologias e em todas grandes narrações mitológicas do mistério do início (incipit). Mesmo o maior escritor entra na casa de uma linguagem já existente. Ele pode, dentro de limites muito estreitos, criar neologismos; como Pascoli, pode tentar insuflar vida nova a palavras, “inspiração”, até mesmo em línguas mortas. Mas ele não cria sua poesia, sua peça ou seu romance “a partir do nada”. Em teoria, cada texto literário concebível já está potencialmente presente na língua (daí a fantasia borgiana da biblioteca total de Babel). Não por isso deixamos de não saber nada da alquimia da escolha, da disposição fonética, gramatical e semântica que produz o poema perene, da dramatis persona da peça ou do romance. E com o abandono progressivo da imagem da criação divina, do conceito da inspiração sobrenatural, nossa ignorância se aprofunda.

Do outro lado da dialética, as questões são quase igualmente desconcertantes. Qual é, precisamente, o grau de existência de um poema ou de um romance que não é lido, de uma peça jamais colocada nos palcos? A recepção, ainda que tardia, mesmo por uma minoria esotérica, é indispensável para a vida de um texto? Se assim for, de que maneira? O conceito de leitura, concebido como processo que pertence fundamentalmente à colaboração, é intuitivamente convincente. O leitor sério trabalha com o autor. Compreender um texto, “ilustrá-lo” no quadro da nossa imaginação, da nossa memória, da nossa representação combinatória, é, nos limites de nossas possibilidades, recriá-lo. Os maiores leitores de Shakespeare e Sófocles são os atores que dão vida às palavras. Decorar um poema é como encontrá-lo na metade do caminho da viagem sempre surpreendente de sua vinda ao mundo. Em uma “leitura bem-feita” (Péguy), o leitor faz com ele algo paradoxal: um eco que reflete o texto, mas também que responde com suas próprias percepções, suas necessidades e seus desafios. Nossas intimidades com um livro são portanto completamente dialéticas e recíprocas: lemos o livro, mas, mais profundamente, pode ser o livro a nos ler.

Mas por que o arbítrio, a natureza sempre contestável dessas intimidades? Os textos que nos transformam podem ser, de um ponto de vista tanto formal quanto histórico, banalidades. Assim como um refrão da moda, um romance policial, uma notícia sem importância, o efêmero pode irromper na nossa consciência e penetrar no mais profundo de nós mesmos. O cânone do essencial varia de um indivíduo para outro, de uma cultura para outra, mas também de um período da vida para outro. Alguns livros são considerados magistrais na adolescência, mas se tornam ilegíveis mais tarde. Outros são repentinamente redescobertos na cena literária ou na vida privada. A química do gosto, da obsessão, do rechaço, é quase tão estranha e indecifrável quanto a da criação estética. Seres humanos muito próximos entre si por suas origens, sensibilidade e ideologia podem adorar o livro que todos detestam, consideram kitsch aquilo que apontam como uma obra-prima. Coleridge falava de “átomos enganchados”, da consciência que se entrelaça de maneiras imprevisíveis. Goethe falava de “afinidades eletivas”. Mas são apenas imagens. A cumplicidade entre o autor e o leitor, entre o livro e a leitura que fazemos dele, são tão imprevisíveis, tão vulneráveis à mudança, e estão tão misteriosamente arraigadas como aquela do eros. Ou, talvez, do ódio. Existem, de fato, textos inesquecíveis que nos transformam e que terminamos por odiar. Não suporto ver no teatro nem posso ensinar Otelo de Shakespeare, mas a versão de Verdi me parece, sob diferentes pontos de vista, a mais coerente, quase um milagre.

O paradoxo do eco vivificante entre o livro e o leitor, a troca vital de confiança recíproca, depende de certas condições históricas e sociais. “O ato clássico de leitura”, da maneira como tentei definir no meu trabalho, requer silêncio, intimidade, cultura literária e concentração. Na ausência de tais elementos, uma leitura séria, uma resposta aos livros que seja também responsabilidade, é irrealista. Ler, no verdadeiro sentido da palavra, uma página de Kant, um poema de Leopardi, um capítulo de Proust, é ter acesso aos espaços do silêncio, às salvaguardas da intimidade, a determinado nível de formação linguística e história pregressa. É ter livre acesso a instrumentos que ajudam a compreensão como os dicionários, as gramáticas e as obras de valor histórico e crítico. Desde os tempo da Academia ateniense até meados do século xx, muito esquematicamente, tal condição era a própria definição. Em maior ou menor medida, sempre foi o privilégio, o prazer, a obrigação de uma elite. Da Biblioteca de Alexandria àquela de são Jerônimo, da torre de Montaigne ao escritório de Karl Marx no British Museum, as artes da concentração — que Malebranche definia como “a piedade natural da alma” — tiveram sempre uma importância essencial na vida do livro.

É uma banalidade constatá-lo: essas artes, em nossos dias, são amplamente erodidas; elas se tornaram uma “ocupação” universitária cada dia mais especializada. A maior parte dos adolescentes americanos não sabe ler em silêncio; há sempre uma música mais ou menos amplificada ao fundo. A intimidade, a solidão que permite um encontro profundo entre o texto e sua recepção, entre a letra e o espírito, é hoje uma singularidade excêntrica, psicologicamente e socialmente suspeita. É inútil nos determos a respeito do declínio do nosso ensino médio, em seu desprezo à aprendizagem clássica, ao estudo mnemônico. Uma espécie de amnésia planificada prevalece atualmente nas escolas.

Ao mesmo tempo, vocês sabem melhor do que eu que o formato do livro em si, a estrutura do copyright, da edição tradicional, da distribuição nas livrarias, está em plena transformação, para não dizer revolução. Os autores já podem chegar aos seus leitores pela internet, entrando em contato direto com eles (assim foi “publicado” o último livro de John Updike). Cada vez mais se lê on-line, na tela do computador, ou se compra pela internet. Oitenta milhões de volumes da Biblioteca do Congresso, em Washington, só estão disponíveis digitalmente. Ninguém, por mais bem informado que seja, pode prever aquilo que acontecerá com o próprio conceito de autor, de textualidade, de leitura pessoal. Sem sombra de dúvida, essas evoluções são maravilhosamente eletrizantes. Cada vez mais, livros escritos, editados, publicados e comprados “à maneira antiga” pertencerão às “belas-letras”, àquilo que os alemães chamam, perigosamente, de Unterhaltungsliteratur, a “leitura fácil”. Cada vez mais, a ciência, a informação, o saber em todas as suas formas serão transmitidos e registrados por meios eletrônicos. As rachaduras já grandes na nossa cultura e nas nossas letras só vão aumentar.

Daí a extrema importância desta feira do livro na orgulhosa cidade de Alfieri e Nietzsche. Mais do que nunca necessitamos dos livros, mas eles também necessitam de nós. Que privilégio maior pode existir que estar ao seu serviço?

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Turim, 10 de maio de 2000

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George Steiner (Foto: Suzanne Kreiter/The Boston Globe)

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Tradução: Pedro Fonseca

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