Filosofia

O talvez de William James

por Daniel Peixoto Murata

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William James (1842-1910) teve uma vida memorável. Filho mais velho em uma família de intelectuais e irmão do importante romancista americano Henry James, na juventude estudou pintura, depois medicina, viajou para a Amazônia em uma difícil expedição científica em 1865, inaugurou o primeiro laboratório americano de psicologia, e foi um dos fundadores do pragmatismo filosófico. Lecionou nos cursos de fisiologia, psicologia, e filosofia na Universidade de Harvard. James também lutou por muito tempo contra problemas de saúde, depressão severa e impulsos suicidas. Seu pensamento filosófico, diz John Kaag, autor de uma inspiradora biografia intelectual de James, “do começo ao fim, foi orientado para salvar uma vida, a vida dele”.[1]

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William James no Brasil em 1865

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Entre filósofos profissionais, James é provavelmente mais conhecido pela sua defesa do pragmatismo, que ele entendia como sendo tanto um método filosófico quanto uma teoria da verdade. Essas ideias são desenvolvidas em detalhe em seu celebrado Pragmatism (1907), inicialmente uma série de lectures por ele ministradas no início do século XX. O texto de James que gostaria de discutir neste ensaio, porém, é seu Is Life Worth Living? (A Vida Vale a Pena ser Vivida?).[2] Ao menos hoje em dia, a reflexão sobre o valor da vida lamentavelmente migrou das prateleiras de filosofia para as prateleiras de autoajuda, e não acho improvável que algum guru ao gosto do Vale do Silício tenha se apropriado do título de James para emplacar algum best-seller. Nosso autor, no entanto, tratou de seu tema com a mais alta seriedade.

Todos somos potencialmente vulneráveis ao sentimento de Weltschmerz, palavra de origem alemã citada por James que designa um certo cansaço do mundo, uma forma de melancolia na qual as coisas parecem não valer a pena. Recentemente, não acho que seja exagero dizer, todos nós fomos atingidos em cheio por esse sentimento. Não há quantidade de pães caseiros, aulas de yoga no YouTube e podcasts que seja capaz de vencer a sensação de que, entre entre o caos econômico-político e a pandemia da Covid-19, nós fomos macerados. O sentimento de Weltschmerz nos pressiona constantemente a nos perguntarmos qual o valor de viver em um mundo assim.

Sentimos como se as oportunidades escapassem pelos nossos dedos, não importando a força que fazemos para nos agarrarmos a elas. A imagem humilhante que me vem a mente para descrever a vida em nosso contexto de crise é a de um ser humano tentando desesperadamente lamber o leite derramado em meio aos estilhaços da jarra. Vale a pena? A pergunta terrível que Albert Camus coloca como o centro da filosofia, por que não cometer o suicídio, está sempre à espreita, nas esquinas sombrias do pensamento.

É aí que James nos estende sua mão, oferecendo um tratamento que conforme ele mesmo reitera, talvez nos ajude. Relembrando suas origens intelectuais na medicina, James nos convida a pensar a atitude pessimista, o sentimento de Weltschmerz, como uma “doença” de origens religiosas ou como uma forma de “hipocondria”, mas que me parece melhor capturada na ideia de “neurose”: somos viciados na ideia de que o mundo reflete alguma ordem natural ou desígnio cósmico ou divino. Uma vez que a marca do mundo como o conhecemos são horrores e sofrimento sem fim, nosso pensamento é guiado para a conclusão de que qualquer que seja essa ordenação última do mundo, ela não pode ser boa. Nós sentimos como se a qualquer momento o mundo fosse nos pegar na esquina, como se houvesse alguma conspiração do mundo contra nossas vidas. A atitude pessimista é um sintoma dessa neurose.

Eu me referi a esse pensamento como uma neurose porque ele não se baseia em nada. Por que razão haveria, necessariamente, uma ordenação última no mundo? Mesmo que haja tal ordem, por que razão ela, necessariamente, se expressaria em sua integridade de uma maneira compreensível a nós? Quando refletimos sobriamente sobre o que o mundo nos revela sobre ele mesmo, concluímos, nas palavras do próprio James, que “Ou não há Espírito revelado na natureza, ou se há ele é inadequadamente revelado nela”.[3] Retornarei a esse ponto posteriormente.

A cura da neurose começa com a percepção de que ou não há uma ordenação ou de que ela não é adequadamente expressa no mundo. Assim sendo, o mundo se desvela como incerteza, como multiplicidade; e frente a essa multiplicidade várias atitudes tipicamente humanas são possíveis para além do pessimismo. Aponto duas atitudes discutidas por James. De forma bastante imediata, o mundo como incerteza convida a curiosidade: nós simplesmente não sabemos o que o mundo nos reserva, e essa curiosidade pode fazer toda diferença. Mesmo quando mergulhados em desamparo, “nós sempre podemos permanecer por mais vinte e quatro horas, nem que seja para ver o conteúdo do jornal de amanhã, ou o que o próximo correio trará”.[4]

Essa atitude não é a única. “A história da nossa própria espécie é um longo comentário sobre a alegria derivada de enfrentar males”,[5] nos recorda James. Essa é uma das muitas (e curiosas) afinidades entre James e Nietzsche. O gosto pelo confronto, o prazer do triunfo, o mero fato de haver um combate a ser travado, são instintos humanos capazes de revestir uma vida com valor. Essas atitudes instintivas, diz James, “. . . podem fazer a vida em bases puramente naturalísticas parecer digna de ser vivida no dia a dia por homens que abandonaram toda metafísica com o intuito de se livrar da hipocondria …”.[6]

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William James na década de 1890

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James tem mais a dizer. Quando devidamente compreendidas, a atitude religiosa e a apreciação do inefável e da mística podem contribuir para dar valor à vida. É importante perceber que James não está falando aqui de religiosidade no sentido usual do termo. O que ele tem em mente é mais profundo e mais geral: se a crença em uma ordenação última que nós somos incapazes de compreender inteiramente é capaz de nos ajudar a dar valor à vida, então nós temos “um direito” a acreditar nessa ordem. É preciso ser atento aqui. James não está dizendo que essa ordenação existe, nem que ela não existe. Ele está dizendo que a crença nela pode nos ser útil.

Eis a analogia que James traça para explicar esse ponto. Imagine um alpinista que durante uma escalada, se encontra em uma situação de vida ou morte. Ele apenas sobreviverá se executar um salto potencialmente mortal. Se o alpinista acreditar ser incapaz de pular a distância necessária, ao fim do dia ele estará morto, seja porque se recusou a saltar, seja porque saltou de modo hesitante. Por outro lado, se o alpinista acredita que pode saltar a distância necessária, ele tem alguma chance de sobreviver. Ele assumiria um risco, se exporia, mas talvez obtivesse sucesso. Talvez ele sobrevivesse. Esse é o talvez de William James:

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“Nenhuma vitória é conquistada, nenhum ato de fé ou de coragem é feito, exceto sob um talvez; nenhum serviço, nenhuma generosidade, nenhuma exploração científica ou experimento ou livro, que não possa ter sido um erro. É apenas ao arriscarmos nossas pessoas de uma hora para outra que nós conseguimos viver. E não raro nossa fé de antemão em um resultado não garantido é a única coisa que faz o resultado se tornar verdadeiro”.[7]

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O alpinista pode sobreviver, ou não. O fato é que a única hipótese na qual ele obtém sucesso é aquela na qual ele abraça o talvez, na qual ele assume o risco. De mesmo modo, acreditar que existe uma ordenação última, uma dimensão espiritual, ou o que quer que seja, pode fazer com que a vida de alguém tenha valor. Trata-se de um talvez por meio do qual o indivíduo talvez seja capaz de ver valor em sua vida. Porque ele acredita que existe algo além do mundo imediatamente percebido, o indivíduo consegue superar os males e obstáculos que o cercam e construir uma vida que ele reconhece como valiosa. Em certo sentido, para James, o valor da vida é análogo a uma profecia autorrealizável.

É importante perceber que o talvez de James não está restrito apenas àqueles que por uma razão ou outra são capazes de acreditar em uma ordenação última do mundo. Voltemos ao mundo como incerteza e multiplicidade. O alpinista de James está inserido nessa incerteza. Antes de seu salto, as cartas ainda não estão na mesa. Ao saltar, talvez ele sobreviva, mas esse talvez só existe porque ele agiu no mundo. A vida dele talvez se torne mais valiosa aos seus próprios olhos porque ele acreditou em suas chances. Quanto mais ele acredita que pode fazer algo, mais chances ele terá de realmente fazer algo, e consequentemente, mais valiosa será sua vida aos seus próprios olhos. Se o mundo é incerteza e multiplicidade, por que eu não poderia acreditar em mim mesmo? Eu posso acreditar que sou capaz de ser aquilo que gostaria de ser, e minha crença na minha capacidade talvez se converta na sua realização. Novamente, o valor da vida emerge como uma profecia autorrealizável.

A vida vale a pena ser vivida? A resposta, para James, é sempre radicalmente pessoal. No entanto, o autor nos fornece insights valiosos que talvez nos ajudem a encontrar algum valor na nossa própria vida. Uma vez superada a hipocondria ou neurose da crença em uma ordem expressa no mundo, e que por ser uma expressão total no mundo só pode ser maligna, estamos livres para encontrar recursos em nós mesmos, e quiçá além, para valorizar a vida. Nós podemos ser curiosos, nós podemos ser combativos, nós podemos ser religiosos no sentido peculiar de James, nós podemos ter uma crença inabalável em nós mesmos. Talvez devêssemos seguir as palavras finais de James: “Não tenham medo da vida. Acreditem que a vida vale a pena ser vivida, e sua crença ajudará a criar o fato”.[8]

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Alice Runnels James (aka Mrs. William James), John Singer Sargent, 1921

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Notas:

[1] John Kaag, Sick Souls, Healthy Minds – How William James Can Save Your Life (Princeton University Press, 2020). Todas as traduções no presente ensaio são livres e de minha autoria.

[2] William James, ‘Is Life Worth Living’ em Pragmatism and Other Writings (Penguin, 2000). Originalmente publicado em The Will to Believe and Other Essays in Popular Philosophy, de 1897.

[3] Idem, p. 228.

[4] Ibid, p. 230.

[5] Ibid, p. 230.

[6] Ibid, p. 232-233.

[7] Ibid, p. 238.

[8] Ibid, p. 240.

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Daniel Peixoto Murata

Daniel Peixoto Murata é Doutor em Filosofia do Direito pela University of Surrey (Reino Unido), Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) e Bacharel pela mesma instituição. Foi bolsista pela Faculty of Arts and Social Sciences (FASS) da University of Surrey e pela FAPESP.