Artes

O tempo da delicadeza

por Mariana Garcia Vasconcellos e Rogério Passos Severo

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John Constable, ‘Cloud Study’, 1821

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No clássico A variedade das experiências religiosas, William James escreveu que “a felicidade, como qualquer outro estado emocional, é cega e insensível a fatos opostos” (1902, cap. 4). Todos sabemos o que isso quer dizer. Tomados de felicidade, os problemas, as desarmonias e as maldades não adquirem “sentimento de realidade” para nós. Em vez disso, são as harmonias, o fluir dos acontecimentos e a bondade implícita nos gestos alheios que nos parecem mais relevantes e reais. O inverso vale para a tristeza, cega e insensível que é para toda graça. Essas observações de James podem ser estendidas às experiências artísticas. Há estados de ânimo típicos da apreciação de algo como artisticamente valioso ou belo. Quando assim animados, o problemático e conflituoso em nós esmorece. Mudamos de perspectiva. Contemplamos a arte ao mesmo tempo em que algo em nós se dobra, delicadamente lembrado de algo mais importante.

Na modernidade, a ideia de que podemos ver a realidade de perspectivas diversas foi elevada ao centro de nossa cultura e consagrada em muitas filosofias. De um lado, isso implicou em uma consciência aumentada das funções da mente na moldagem daquilo que o mundo nos apresenta. De outro, tendeu a colocar o mundo à distância, a filtrá-lo pelas categorias de nossa consciência. Em O tempo da imagem de mundo, Martin Heidegger chamou a atenção para este fato: “O que distingue a essência da modernidade não é que se transite de uma precedente imagem do mundo medieval para uma imagem do mundo moderna, mas sim que o mundo se torne, em geral, imagem” (1938, p. 113). Para a instauração dessa mentalidade moderna concorreram diversos fatores já bem conhecidos, que incluem a revolução científica, as grandes navegações e as transformações sociais e religiosas pelas quais passou a Europa nos séculos XVI e XVII. O mundo científico, moral, político e religioso então passou a ser concebido e estudado por intermédio de imagens, representações, teorias, esquemas conceituais, visões de mundo e cosmologias. A ideia de uma imagem de mundo alternativa e radicalmente diversa simplesmente não fazia sentido para os antigos e medievais. Para o grego antigo, o estrangeiro era um bárbaro. Para o cristão medieval, o pagão era uma ovelha perdida. Para nós, ao contrário, muitas são as perspectivas, e a nossa é apenas mais uma. Reconhecemos alternativas metafísicas diversas da nossa como não apenas viáveis, mas positivamente atraentes. Reconhecemos culturas e religiões diversas, cujas existências parecem-nos tão legítimas quanto as nossas. Reconhecemos a possibilidade de nossas melhores teorias científicas estarem erradas. Reconhecemos que boa parte das normas morais e sociais são historicamente contingentes. Reconhecemos a possibilidade do progresso, que é o reconhecimento de que no futuro teremos outras perspectivas. Essa consciência alargada do papel ativo da mente na apresentação do mundo instaurou entre nós o apreço pela diversidade e talvez até um gosto pelo exótico. No entanto, trouxe também o seu pequeno inferno, a nossa Torre de Babel, aquele lugar em que proliferam línguas intraduzíveis. Como no mito bíblico, a multiplicação de perspectivas trouxe consigo o conflito de perspectivas, e nos dispersou.

No ocidente, as artes prenunciaram essa problemática, uma vez que progressivamente mitigaram seus aspectos participativos e passaram a ser artes para serem observadas. Embora esses desenvolvimentos sejam complexos, podemos reduzir a questão a uma dimensão manejável tomando apoio em alguns marcos já bastante tradicionais. Um primeiro movimento importante foi o que Ernst Gombrich romanticamente chamou, em Art and Illusion (cap. 4), de “revolução grega”. Trata-se de representar as coisas como elas apareceriam na perspectiva de um observador humano, em vez de apresentar por meio de símbolos a sua essência metafísica ou espiritual. A uma linguagem visual simbólica, os artistas sobrepuseram o paradigma alternativo da mimese que é, como deplorou Platão, necessariamente parcial e restrita ao que nos é acessível pelos sentidos.

Mas este perspectivismo era ainda muito incipiente e generalista para ser equiparado ao que nos toca atualmente. Tratava-se de valorizar o ponto de vista da humanidade em geral, mas de nada humano em particular, e a marca de distinção do artista era mais sua habilidade em corresponder aos princípios coletivos de idealização e de mimese do que a afirmação de seu ponto de vista individual. Algo nesse sentido só começa a acontecer na transição da Idade Média para o Renascimento. Nesse período, nas artes visuais como também na literatura e na filosofia, os artistas começam a assinar suas obras, promovem estilos próprios, criticam os de seus vizinhos e envolvem-se em manobras complexas de marketing pessoal.

A coroação desse movimento ocorre com a invenção da perspectiva linear na pintura. Segundo Erwin Panofsky, em A perspectiva como forma simbólica, longe de ser apenas uma técnica, ela é a concretização visual de uma visão de mundo. A perspectiva linear pressupõe um ponto de vista único do qual a imagem deve ser observada para que a ilusão de tridimensionalidade espacial funcione; um oeil du prince ideal e, a rigor, impraticável para seres que possuem dois olhos. A superfície da pintura passa a ser a fronteira (isto é, simultaneamente o ponto de contato e de separação) entre o espectador individual e o mundo representado, que é visto como que através de uma janela. Essa mesma separação entre o nosso mundo e o da obra — e, por espelhamento, entre o eu e o mundo — começa a aparecer também em outras formas de arte. Cada vez mais (salvo talvez em suas manifestações populares), as artes deixam de ser participativas e imersivas para tornarem-se espetáculos e transformarem-nos em espectadores: de museus, de salas de concerto, de telas.

Outro desenvolvimento importante aparece no Romantismo. Se a perspectiva renascentista pressupunha um indivíduo abstrato, dotado simplesmente da faculdade neutra e universal da visão, nessa nova etapa tanto artista como espectador são vistos como sujeitos, caracterizados por uma interioridade única e particular que necessariamente interfere sobre sua relação com o mundo exterior. As obras de arte então passam a ser os frutos dessa subjetividade do artista e talvez o único meio possível de torná-la sensível, compartilhada. Émile Zola, mais tarde, descreveu a obra de arte como “um canto da natureza visto através de um temperamento”. Passando por esse filtro da subjetividade, a obra não é mais simples mimese, mas sobretudo expressão. Por outro lado, é também nesse período que a estética se afirma como disciplina, a partir de uma nova ênfase sobre a experiência do espectador — da arte, da natureza, do mundo.

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Caspar David Friedrich, ‘Die Lebensstufen’, 1835

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No século XX, a arte rompeu tanto com a perspectiva única na representação do espaço — no cubismo, por exemplo — como com o próprio pré-requisito da representação. Uma parte das artes contemporâneas chegou a dispensar os meios tradicionais, buscando algo que fosse indistinguível da vida. Mas mesmo o happening ou instalação mais imersivos e participativos pressupõem as perspectivas do artista e do espectador: aquele propõe uma experiência à qual e da qual este é sujeito; muitas obras sequer existem senão dentro da perspectiva do participante. Nesses casos, o todo da obra está precariamente ancorado na experiência individual e subjetiva, correndo sérios riscos de afundar sob a indisposição cética dos membros do público; isto é bastante diferente das experiências participativas das culturas tradicionais, nas quais as individualidades não costumam ser relevantes a não ser enquanto partes de um todo que é muito mais real do que elas.

Perspectivista como nós mesmos, a arte hoje tem como um de seus papéis nos ajudar a reconhecer e apreciar a diversidade de perspectivas, até mesmo a nutrir uma postura mais empática em relação a elas; no entanto, isso não é o bastante para solucionar nossos conflitos. A afirmação e a compreensão daquilo que compartilhamos — o país, a espécie, o planeta — não estão se mostrando suficientes para sequer mantermos a civilidade entre pessoas de diferentes opiniões, que dirá para construirmos um projeto conjunto de futuro. A superação dos conflitos pela percepção artística da realidade não ocorre com o mero reconhecimento de novas perspectivas. Antes, ela acontece pelo arrefecimento do apego às perspectivas, que é um produto do ânimo e da sensibilidade artísticos, por meio dos quais a vida se apresenta de modo único a cada um de nós, individualmente. A cada um de nós em sua inteireza, momentaneamente desnudos de nossas fórmulas e máscaras, como personagens imersos em nossas próprias histórias e não como elementos de um esquema. A vida única e singular, com seus contatos irrepetíveis, com tudo que se apresenta de mágico e vívido, isto é o que a experiência da arte anima, e por isso ela anda de mãos dadas com o amor, com a reverência ao que é valioso e sagrado, com o cheiro suave de um bosque ao amanhecer.

Nesses momentos, deixamos de estar claramente aqui dentro, de onde olhamos para algo lá fora, e aquilo para o que olhamos pode parecer mais interno do que nosso próprio olhar. Pode então acontecer que nosso “eu” seja temporariamente removido do centro de seu próprio universo; e, ao ir parar em um ponto periférico da circunferência, talvez perceba que o centro está em toda parte.

É claro que nada garante que isso ocorra. A arte pode ser intelectualista, do mesmo modo que o amor pode ser egoísta, ou a religião pode ser teológica, ou a natureza, explorada; de fato, parte relevante de nossa cultura estimula que assim seja. O ânimo artístico sobrevive em nós, no entanto. A qualquer momento, podemos ter a experiência do contato com algo singular, único e incomum. Mesmo quando esse contato é concebido como acontecendo a partir de uma perspectiva mental e cultural, a sua experiência pessoal e subjetiva é justamente a do afrouxamento do controle e do apego a uma visão de mundo. Esse afrouxamento, em acontecendo, anula o ímpeto para os conflitos de perspectivas e instaura o tempo da delicadeza em nosso íntimo. O oposto da Torre de Babel. Essa é a Festa Imodesta, tão lindamente cantada por Chico Buarque: “acima da razão a rima”!

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J.M.W. Turner, ‘Norham Castle, Sunrise’, c. 1845

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Mariana Garcia Vasconcellos é mestranda em Artes Visuais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Rogério Passos Severo é professor no Departamento de Filosofia da mesma universidade.