A estrutura do negacionismo
por Rodrigo Toniol
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Katharine Hayhoe é uma cientista política que se tornou figura pública nos debates sobre mudanças climáticas nas últimas duas décadas. Ocupando esse espaço sobretudo nos Estados Unidos, Hayhoe rapidamente parece ter percebido que o que este tema traz à tona são duas urgências que, embora conectadas, demandam movimentos analíticos e estratégias de ação bastante distintas. De um lado, a urgência do próprio processo de aquecimento do globo, que caminha rapidamente para situações irreversíveis e cada vez mais comprometedoras para a manutenção da vida no planeta. De outro, a atenção ao amplo conjunto de atores que têm se engajado nos debates sobre o tema a partir de sua negação, ora negando a realidade do fenômeno em si, ora mobilizando um argumento frouxo que enxerga em ações globalmente concertadas, como tratados internacionais e consórcios de pesquisas, atitudes “globalistas”, que esconderiam propósitos de uma espécie de imperialismo climático.
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Diante deste quadro, Hayhoe fez do negacionismo seu próprio objeto de investigação, identificando em suas variadas versões e formas de expressão uma espécie de estrutura, cuja reprodução não se limita aos grupos de negacionistas climáticos, mas, pelo contrário, assume contornos bastante semelhantes a despeito do objeto que se está negando. Descritos na forma de estágios, já que marcados temporalmente pelo próprio avanço das catástrofes que se procura negar, essa estrutura poderia ser descrita a partir de sete máximas:
(1) não é real;
(2) não é com a gente;
(3) não é tão ruim;
(4) é caro demais para resolver;
(5) encontramos uma solução excelente (solução essa que invariavelmente é ineficaz);
(6) agora é tarde demais;
(7) você devia ter me avisado antes.
Há pelo menos dois aspectos da proposição mais geral de Hayhoe que devem ser retidos. O primeiro é que negacionismo é antes de tudo uma atitude, um modo de agir no mundo a partir do qual a negação é apenas uma de suas formas de manifestação. Negar é parte do que fazem os negacionistas que, nem por isso, devem ser confundidos com a simples negação. Isso implica também em dizer que o negacionismo não é atitude passiva, mas sim parte de uma posição ativa, que postula realidades de mundo numa agenda que pouco tem de defensiva. A dificuldade de reconhecer esse fato não parece distante de análises que teimam em apresentar agendas políticas, por mais socialmente retrógradas que sejam, como produtoras de mundo.
O segundo aspecto a ser retido diz respeito à natureza da negação dos negacionistas. Estruturalmente, o objeto da negação não são os fatos, não é isso o que está em jogo. Antes, nega-se o próprio enunciador daquilo que se nega. Pautada por um falso dialogismo, essa aparente controvérsia é a base de movimentos de aniquilação da alteridade. É assim que àquele que enuncia o que é negado restam apenas dois lugares possíveis: o de habitante de um outro mundo e, por isso, cuja existência é tão externa quanto indiferente; e o de alheio aos reais problemas, cuja controvérsia em questão é apenas a menor parte.
Entre o primeiro e o segundo aspectos aqui descritos há uma óbvia relação: a atitude negacionista é propositiva também porque ela é geradora da força de agendas de eliminação e de destituição de mundo. É nesse sentido que negar a realidade das mudanças climáticas, negar a concretude de uma pandemia, negar a escravidão é o meio e não o fim. Em todos esses casos, o objeto em questão é sempre um aliado e não um inimigo.
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