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Por que ler tragédia grega hoje?

por Daniel Peixoto Murata

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A morte de Ésquilo por Maso Finiguerra (ilustração do séc. XV)

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Praticamente todos já ouviram ou leram alguma tragédia grega. O imaginário popular é permeado por figuras mitológicas que são partes importantes em tragédias, como Édipo, Electra, a Esfinge, Antígona e outros. Apesar disso, por muito tempo prevalesceu a impressão de que essas figuras e suas histórias eram relíquias de um mundo antigo, que revisitávamos ocasionalmente em aulas de literatura ou história.

A situação tem — se não no Brasil, no resto do mundo — mudado. Cada vez mais pessoas têm percebido que existem ressonâncias importantes entre os temas centrais das tragédias gregas e os temas centrais de nossas vidas aqui e agora. Ressentimento, justiça, conflito, desiguldade entre gêneros, e o sentimento de que o mundo pode ser no final das contas simplesmente arbitrário eram elementos que ocupavam a mente dos gregos na composição das tragédias, e são elementos que permanecem conosco.

Entre acadêmicos, nomes como Bernard Williams (falecido em 2003) e Martha Nussbaum tem contribuído para mostrar como Sófocles, Ésquilo e Eurípides são fontes importantes de insights filosóficos sobre moralidade, responsabilidade e liberdade. Fora da academia, trabalhos como o desenvolvido pelo Theater of War (Teatro da Guerra, em tradução livre), liderado por Bryan Doerries, tem levado a tragédia grega para o centro de dilemas contemporâneos. Entre as realizações recentes do grupo, que começou suas atividades apresentando Ajax e Philoctetes para veteranos de guerra, estão a adaptação Antígona em Ferguson (2017) e Édipo Rei (2020). Adaptações que ressoam respectivamente com a ferida ainda aberta do racismo estrutural e com a pandemia da Covid-19.

A tragédia grega surgiu entre os séculos VI e V a.C, e acompanhou a cidade-estado de Atenas em seu auge e declínio. As origens precisas da tragédia ainda são controversas, mas é mais ou menos certo que ela tenha origens religiosas. Conforme Simon Critchley nos relata em seu empolgante livro Tragedy, the Greeks and Us (Profile Books, 2019), tanto Aristóteles quanto Nietzsche alegam que a tragédia surge com o culto do deus Dionísio, e é um fato notório entre os leitores de Nietzsche que o filósofo alemão baseou muito de sua filosofia de juventude naquilo que ele se referia como o contraste entre o Apolíneo e o Dionisíaco, um contraste que mapeia o ideal e o real, o racional e o emocional, o artificial e o natural, mas que não é reduzido a essas dicotomias.[1]

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‘A Epifania de Dionísio’, mosaico no Museu Arqueológico de Dion

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Os gregos eram “viciados em competições”, como dizem Bagg e Scully, tradutores de Sófocles. A grande competição esportiva, as Olimpíadas, existe até hoje, ainda que de forma bastante diferente da original, mas a tragédia também possuía seu próprio torneio, a Grande Dionísia.  Apesar de menos conhecida do que as Olimpíadas, a Dionísia era também central à vida da antiga Atenas. É emblemático da importância da tragédia para os antigos gregos que seus autores eram chamados de didaskaloi, um termo que pode ser traduzido como “educadores” ou “professores”.[2]

A compreensão da importância da tragédia para os gregos passa pela compreensão de sua relação com a guerra. Essa relação é importante ao ponto de Critchley dedicar um capítulo de seu livro (um dos primeiros capítulos, aliás) à sua análise. Em termos de contexto, Os Persas, a mais antiga tragédia que chegou até nós, de Ésquilo, foi escrita pouco tempo após a vitória grega nas Guerras Médicas, e muitas outras peças foram escritas enquanto Atenas e Esparta se enfrentavam. Em termos de conteúdo, basta dizer que praticamente todas as peças de Sófocles que chegaram até nós se conectam direta ou indiretamente a algum conflito bélico, Ajax e Philoctetes destacando-se aqui por serem peças que se passam durante a guerra contra Troia. Não é exagero dizer que a tragédia tinha um certo papel terapêutico no que diz respeito aos traumas da guerra.[3]

Dizer que os gregos antigos valorizavam a tragédia é uma coisa. Dizer que nós devemos lê-las hoje é outra. Então, por que ler as tragédias? Critchley, Williams e Nietzsche parecem compartilhar de uma resposta, ou ao menos, compartilham os contornos do que pode ser uma resposta. O ponto de partida é a seguinte observação, feita de diferentes formas por esses autores: muito de nossa tradição filosófica, de Platão até os dias de hoje, passando pelo cristianismo e por Kant, está comprometida com a ideia de que tanto nossa vida interior — nossa constituição psicológica — quanto o mundo exterior — todo o resto que nos rodeia — são passíveis de sistematização ou harmonização.

Essa sistematização ou harmonização se dá em dois níveis. Existe um nível interno, segundo o qual nossos apetites e desejos são colocados em seu devido lugar por uma parte ordenadora de nós mesmos, a razão. Um indivíduo saudável, nos diz a tradição, é aquele no qual a razão ordenou o resto da nossa existência. Simon Critchley se refere a essa tentativa de harmonização como o “ideal de uma vida psíquica não-contraditória”.[4]

Existe também um nível externo, segundo o qual nossa existência no mundo é justa, mesmo que nós não consigamos perceber isso de imediato. No nível externo de harmonização, a filosofia é vista como consolação. O caso mais emblemático dessa tentativa de harmonização é a velha crença segundo a qual mesmo que a vida terrena seja terrível, uma vida melhor aguarda os bons no além. Em sistemas filosóficos como o platonismo e o cristianismo, esses dois níveis de harmonização são conectados. Há um contínuo que vai de ser uma boa pessoa (ou uma pessoa santa) até a justiça última do mundo.

Esse pressuposto central de muito de nosso pensamento filosófico é colocado em xeque pela leitura atenta das tragédias. A tragédia grega, nos diz Bernard Williams, fornece um “um suplemento necessário e uma limitação adequada à meta incansável da filosofia moral de tornar o mundo seguro para pessoas bem-intencionadas”.[5] A narrativa das tragédias nos confronta com situações para as quais não há final feliz, para as quais não há resolução harmoniosa para conflitos, e para as quais não há necessariamente algum sentido. Isto é, não há um contínuo entre ser bom e haver justiça no mundo.

As Mulheres de Trakhis, de Sófocles, é ilustrativa do poder trágico. Nessa peça, Deianeira, uma pessoa que nós não hesitaríamos em considerar boa, inadvertidamente causa a morte de seu marido, o herói Herakles, e comete suicídio motivada por remorso. Ao final da peça, Hyllos, o filho de Deianeira e Herakles, diz à sua audiência que “tudo o que eles ali viram era Zeus”. Existem muitas formas de interpretar seu dicurso, mas é certo que ele é indicativo da ausência de sentido em relação aos sofrimentos que podem acometer aos seres humanos.

Agamemnon, de Ésquilo, por sua vez funciona como bom exemplo dos tipos de conflitos pessoais que nós vivenciamos e que não são domesticáveis pela reflexão filosófica. A peça toma como seu ponto de partida o dilema de Agamemnon, rei de Argos, em Aulis. Como comandante das tropas gregas prestes a zarparem para a guerra contra Troia, Agamemnon é colocado em um dilema pela deusa Artemis. Os ventos necessários para a navegação virão apenas se Agamemnon sacrificar Iphigeneia, sua própria filha. Estão em jogo, de um lado, a honra de Agamemnon e sua autoridade como comandante e no limite a moral das tropas gregas, e de outro, a vida de Iphigeneia. O personagem acaba por sacrificar a jovem.

Esse tipo de dilema, que encontra uma versão mais recente no caso do patriota aflito de Sartre, é o tipo de dilema que resiste às tentativas de sistematização filosófica no sentido de ser passível de uma resposta harmoniosa capaz de reduzir o conflito, ou de uma resposta que exclua atitudes como remorso ou culpa. Não importa o que possa ser dito para Agamemnon, nem o que ele termine por escolher. Ao fim do dia o que teremos é um homem quebrado. Igualmente, ao fim do dia o patriota aflito terá que decidir se fica em casa cuidando da mãe doente ou se abandona a mãe para combater os invasores. O poder da razão, enquanto parte ordenadora, é limitado em casos assim.

É por isso que Bernard Williams afirma que, para Nietzsche, “nós temos a arte para que possamos simultaneamente apreender a verdade e não perecer por causa dela”.[6] Por meio da tragédia, nós somos relembrados de nossa fragilidade, de nossa incapacidade em encontrar soluções para o insolucionável, e de nossa absoluta vulnerabilidade frente às arbitrariedades da existência. Em resumo, a tragédia nos relembra de nossa finitude. A tragédia nos vacina contra o artificialismo otimista de boa parte da filosofia.

Essa forma de terapia trágica parece ser motivo suficiente para ler Sófocles, Ésquilo e Eurípides hoje. No entanto, há mais a ser dito. Se é verdade que a tragédia chama a nossa atenção para as limitações do humano, também é verdade que ela aponta suas potencialidades. Um bom exemplo disso é o desfecho de Eumênides, a última peça da Oresteia de Ésquilo. Nessa peça, Palas Atena persuade as Fúrias — por meio do discurso — a abrirem mão de sua vingança contra Orestes e a se tornarem guardiãs da pólis. Toda a ação da peça é estruturada em termos forenses, com acusações e defesas se sucedendo. Muitos estudiosos apontam que em Eumênides (e também no desfecho de Ajax) o discurso e o convencimento na arena pública emergem como ferramentas que possibilitam a vida em comunidade.

Mesmo em As Mulheres de Trakhis há algo de mais propositivo a se extrair. Se “tudo o que eles ali viram era Zeus”, talvez essa seja uma boa razão para perdermos menos tempo buscando culpados e formas de atribuir responsabilidade às pessoas. Se muito do mundo e de nós mesmos está fora de nosso controle, talvez devamos perder menos tempo buscando formas de culpar os outros, ou o mundo, ou o que quer seja, e devamos nos dedicar mais em assumir responsabilidade por fazer o possível. Em As Mulheres de Trakhis essa é a atitude de Hyllos ao final da peça. O jovem assume a responsabilidade de conduzir os ritos de morte de seu pai, Herakles.

Para nós, aqui e agora, talvez essa responsabilidade seja reduzir o sofrimento dos demais, mesmo quando nós não somos a causa desse sofrimento. Isso é o outro lado da percepção de nossa finitude. Conforme apontado por muitos de seus estudiosos, a tragédia nos lembra de que somos todos sujeitos ao sofrimento. Nossa vulnerabilidade comum talvez possa, em luzes mais otimistas, nos ajudar a assumir coletivamente a responsabilidade por reduzir o sofrimento de todos. Essa me parece uma excelente razão para ler tragédia grega hoje.

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Orestes, William-Adolphe Bouguereau, 1862

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Notas:

[1] Simon Critchley, Tragedy, the Greeks and Us (Profile Books 2019) pp. 36-37.

[2] Robert Bagg and James Scully, ‘General Introduction –When Theater was Life: The World of Sophocles’ in Sophocles, The Complete Plays of Sophocles – A New Translation, trans. by Robert Bagg and James Scully (New York: Harper Perennial, 2011) pp. xxv-xxvii.

[3] Simon Critchley, Tragedy, the Greeks and Us (Profile Books 2019) p. 19.

[4] Idem, p. 09.

[5] Bernard Williams, ‘The Women of Trachis: Fictions, Pessimism, Ethics’ in B. Williams, The Sense of the Past, edited by M. Burnyeat(Princeton University Press 2006) p. 59.

[6] Idem, p. 58.

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Daniel Peixoto Murata

Daniel Peixoto Murata é Doutor em Filosofia do Direito pela University of Surrey (Reino Unido), Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) e Bacharel pela mesma instituição. Foi bolsista pela Faculty of Arts and Social Sciences (FASS) da University of Surrey e pela FAPESP.