Política

A Política como ataque à Razão

por Thomas Conti

Um dos fenômenos mais curiosos dos tempos que vivemos é a chamada “polarização factual”. Polarização factual é o que ocorre quando fatos plenamente passíveis de serem entendidos pela análise científica passam a ser disputados seguindo as linhas divisórias de grupos políticos. Não se trata apenas de pessoas que não foram expostas à informação e evidências. Essa polarização costuma ser intensa, radical e persistente a novas informações. O mais comum é que cada grupo tenha certeza que está do lado correto das evidências, seja qual for o tema em debate.

Um exemplo emblemático de polarização factual ocorre no tema do aquecimento global nos Estados Unidos. Hoje, nos EUA há maior discordância entre democratas e republicanos sobre a afirmação factual “o aquecimento global está ocorrendo e possui causas humanas” (71% dos democratas concordam, contra 15% dos republicanos) do que sobre temas inerentemente políticos, como “deveríamos tributar mais os super-ricos” (85% dos democratas dizem que sim e 54% dos republicanos concordam).

nos EUA há maior discordância sobre a afirmação “o aquecimento global está ocorrendo e possui causas humanas” do que sobre temas políticos

Em abstrato, partidos políticos serviriam justamente para separar diferentes posições políticas existentes na sociedade, propor diferentes ações, com base em valores diferentes, etc. É surpreendente portanto que temas estritamente valorativos, como o que fazer com respeito a impostos, possam dividir menos a sociedade do que temas empíricos, como o aquecimento global ou tantos outros.

Neste texto apresento um pouco do que algumas pesquisas empíricas sobre o tema da polarização factual têm mostrado sobre suas causas e consequências. Em meu próximo texto, tratarei de algumas formas de se evitar a polarização factual, também com base em resultados de pesquisas sobre o tema.

O aspecto psicológico decisivo por trás da polarização factual é a forma peculiar com que nossa mente lida com o comportamento em grupos e, em especial, com identidades de grupo. Temos um viés cognitivo generalizado que nos leva a favorecer pessoas que entendemos como “do nosso grupo”, ante pessoas “de outro grupo”. O critério definidor de quem está “dentro” e “fora” pouco importa. Experimentos controlados desde o início da década de 1980 têm mostrado que o critério pode ser completamente arbitrário, como preferências por pintores ou rótulos de palavras inventadas, que ainda assim é possível identificar algum viés de favorecimento de grupo.

Esse favorecimento ante quem é “do grupo” por sua vez constitui um incentivo material decisivo para aqueles que fazem parte do grupo quererem demonstrar sua afiliação. Diferenciar-se dos demais grupos sociais passa a ser um comportamento recompensador.

Sob quais bases serão criadas essas diferenciações, no entanto, fica sujeito às caóticas interações sociais. Algumas pessoas desenvolvem uma identidade de grupo mais forte com rótulos partidários (e.g., Democratas versus Republicanos), outros com rótulos de pensamento político (e.g., Liberais versus Conservadores), outros com etiquetas de coletivos (e.g., pequenas correntes religiosas). Em qualquer caso, a identidade de grupo ocorreu em graus variados de intensidade e fazer parte de um grupo não é suficiente para sabermos quão forte é esse vínculo identitário. Todos os grupos criam alguma identidade e algum incentivo ao favorecimento interno, mas nem todos os grupos têm um conteúdo político forte. Na interação entre diferentes grupos, pode acontecer um alinhamento dessas identidades em torno de identidades mais fortes, como as político-partidárias.

Fatores cognitivos, sociais, emocionais e de personalidade também atuam diante dessas identidades. Identidades mais fortes fornecem maior certeza cognitiva (não há dúvida, insegurança ou ansiedade a respeito do que acreditar ou quais as razões para isso) e coerência (a interação entre diversas crenças é simplificada pela heurística de simplesmente seguir as crenças predominantes no grupo). Grupos pequenos e identidades a grupos pequenos – como um pequeno partido político sem chance de vitória eleitoral – são mais capazes de fornecer esses benefícios na medida em que é mais fácil e direto diferenciar seus membros, por serem poucos, do que em um grupo grande.

O que é decisivo em cada um desses pontos – tratamento diferenciado interno ao grupo, certeza cognitiva e coerência cognitiva – é que todos eles têm como referência elementos do próprio grupo: qual é o tamanho do grupo, como estou posicionado nele, quais são as possibilidades de ascensão, quem são “os outros”, o que diferencia o grupo dos demais, o que o grupo pensa, qual é a coerência entre o que o grupo pensa e o que diferencia dos demais, etc. O critério de raciocínio é convergente em relação aos padrões do grupo e não convergente em relação a um mundo exterior.

Isto é, uma vez que estamos dentro da lógica de raciocínio das identidades de grupo, o fato de que alguns problemas, como o aquecimento global, possam ser totalmente externos ao grupo e impossíveis de serem resolvidos pela lógica do posicionamento político é tanto menos importante quanto mais forte for a identidade da pessoa em relação ao grupo.

Quanto maior for a identidade de grupo que uma pessoa carregue, mais ela tenderá a empregar a convergência de grupo para balizar as crenças sobre qualquer assunto. Assim, uma evidência que aponte no sentido de que o aquecimento global tem causas humanas pode deixar de ser apenas uma evidência a mais em todo um debate sobre um problema de investigação do mundo exterior e se torna ela mesma uma ameaça. Ameaça a o que? Ameaça a uma identidade de grupo.

Aceitar a evidência e atualizar as crenças a respeito do tema deixa de ser uma reação racional diante de novas informações e se torna um processo doloroso, motivo de ansiedade ou raiva. Pois coloca em jogo não a avaliação do problema em questão, mas sim os diversos sinais sociais indesejados que a atualização de crenças causaria, tais como a reação de pessoas importantes do meu grupo aos meus sinais sociais, a diluição das fronteiras claras entre o “meu” grupo e “os outros”, a perda do conforto fornecido pela certeza cognitiva e a ansiedade quanto à coerência com todas as demais crenças minhas e do grupo que a atualização pode causar.

É por essas linhas que diversas pesquisas da psicologia social sobre o comportamento político têm mostrado que emerge a “polarização factual”. Fatos são avaliados por parcelas expressivas da população não pelo critério de pertinência diante de um problema empírico, mas pela pertinência diante de sinalizações sociais, prestígio, desejos de conforto, certeza e coerência. Na verdade, o fenômeno tem um potencial invasivo tão grande que um pequeno corpo de pesquisas recentes sugere que até mesmo nossa capacidade de usar e identificar um raciocínio lógico válido, como uma simples dedução, pode ser desvirtuada seguindo linhas divisórias partidárias se a avaliação do uso da lógica estiver tratando de algum tema com forte peso para a minha identidade de grupo.

Essas inclinações psicológicas não surgiram agora, mas as redes sociais podem ter ampliado a escala de manifestação desse problema. Afinal, nas redes sociais todo texto é acessível a toda a nossa rede de contatos, todo texto pode ser balizado pelos critérios de demonstrar pertencimento ao grupo, estabelecer fronteiras políticas, diferenciar-se dos demais, fornecer clareza cognitiva e segurança de todo um sistema de crenças, etc. Elas também facilitaram o movimento inverso, de pessoas com determinadas crenças que buscam um grupo para usufruírem desses benefícios. Diversos nichos de pequenos grupos, muitas vezes radicais, acabam reforçando as crenças uns dos outros à revelia de outros critérios de avaliação de evidências.

À luz da teoria e evidências encontradas por essas pesquisas, deveríamos então abrir mão de tentar analisar friamente os problemas? Abraçar de vez a realidade conflitiva das narrativas sobrepostas e identidades de grupo tentando se diferenciar uma das outras?

Não, isso não é necessário. Primeiro que, como apontei aqui, fazer parte de um grupo não implica necessariamente que se irá adotá-lo como parte da sua identidade – embora o risco exista. Segundo, mesmo adotando-o como parte da sua identidade, a identidade de grupo vem em diferentes graus de intensidade e todos os efeitos aqui discutidos são tanto menores quanto menos intensa for essa identidade de grupo para a pessoa. E terceiro, há uma literatura científica crescente sobre formas de tentar diminuir a polarização factual que aponta caminhos para isso. Continuaremos essa discussão em meu próximo texto aqui para o Estado da Arte.

Thomas Conti é doutor em economia e professor do Insper