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A volta do Gran Torino: os eleitores de Trump no mundo globalizado

Clint Eastwood em “Gran Torino” (Divulgação)

por David Magalhães

Get off my lawn! (saia da minha grama!) tornou-se uma expressão idiomática comum nos EUA. A grama verde e bem aparada é a manifestação física do sonho americano da casa própria. É também um símbolo de prosperidade e status. Não à toa, no romance de Scott Fitzgerald o milionário Gatsby manda um jardineiro cortar a grama desleixada do seu vizinho Nick para não causar má impressão na vizinhança. É nesse sentido que Get off my lawn! representa a reação estereotípica do americano médio ao ver sua grama invadida e pisoteada. Em uma das suas twitadas, Trump afirmou que os EUA precisam de uma lei anti-imigração que fosse tão eficaz para o país quanto o Get off my lawn! é para as casas americanas.      

É também com um Get off my lawn! que Walter Kowalski, empunhando um rifle, enxota os imigrantes asiáticos que invadiram sua grama na cena mais conhecida do filme Gran Torino, de Clint Eastwood. Veterano da Guerra da Coreia (1950-53) e ex-funcionário da Ford, Kowalski vive no subúrbio da decadente Detroit em uma casa ilhada por imigrantes asiáticos e latinos. Ao contrário de outros americanos, o velho de ascendência polonesa, enfastiado e ranzinza, opta por permanecer na cidade. A bandeira dos EUA que aparece hasteada em sua varanda é um símbolo da sua luta para Make America Great Again. Lançado em 2008, no contexto da crise financeira que abalou a economia mundial, o filme prenuncia o desencanto da classe média americana que levou Donald Trump à presidência. Get off my lawn! poderia muito bem ser o slogan da campanha Trump.   

Na garagem de sua casa, Kowalski guarda um Gran Torino 1972, que ajudou a montar quando trabalhava na linha de produção da Ford. O carro – conservado como uma relíquia sacrossanta – é a metáfora da nostalgia de Kowalski com os prósperos anos do pós-Segunda Guerra que fizeram de Detroit uma das mais importantes cidades dos EUA. Os filhos, yuppies e interesseiros, tentam persuadi-lo a abandonar o melancólico sonho americano. Mas o esforço é em vão: “Não adianta, papai ainda vive nos anos 50”. Sozinho, como numa tela de Edward Hopper, o ex-combatente de uma guerra esquecida é também abandonado pela família e pelo governo, que supostamente teria deixado a indústria automobilística colapsar. 

Detroit foi um dos centros mais prósperos do Cinturão das Indústrias (Manufacturing Belt), como era chamado até os anos 1970 o coração do capitalismo industrial norte-americano, que abrange estados do nordeste, dos Grandes Lagos e do meio-oeste. Henry Ford fundou, em 1927, na área metropolitana de Detroit, um complexo industrial automobilístico que empregou 90 mil trabalhadores, dentre os quais imigrantes italianos, húngaros e poloneses. Os trabalhadores poloneses, como Kowalski, chegaram a fundar uma cidade perto de Detroit, a Poletown (cidade dos poloneses). Os investimentos militares, durante a Segunda Guerra Mundial, ajudaram a aquecer a economia local, embalada pela política econômica keynesiana de F. D. Roosevelt. Além disso, a legislação trabalhista e a rede de seguridade social criadas pelo New Deal assegurou salários e benefícios aos operários e deu vitalidade aos sindicatos. 

Entre 1973 e 2007, o Cinturão das Indústrias tornou-se Cinturão da Ferrugem (Rust Belt). A região passou por um profundo processo de desindustrialização, que se acentuou nos anos 1990 com a intensificação do processo de globalização. Para manter a competitividade, empresas como a General Motors transferiram plantas industriais de Michigan para o México ou para a China. A abertura comercial inundou o mercado americano de automóveis japoneses e alemães. Se o Gran Torino representa, para Kowalski, os anos dourados da indústria automobilística, os carros japoneses – que seu filho primogênito vende – simbolizam a capitulação ao sonho americano e o desencantamento com a globalização.  

Em seu livro “O Lexus e a Oliveira”, de 1999, Thomas Friedman também utiliza o carro japonês como expediente metafórico para compreender a euforia liberal dos anos que se seguiram ao fim da Guerra Fria. Friedman conta que, em 1992, viajou para o Japão e visitou a fábrica de automóveis de luxo Lexus, da Toyota. Na época a fábrica estava produzindo 300 sedãs Lexus por dia, montados por 66 seres humanos e 310 robôs. Ao voltar para o hotel, a bordo de um trem-bala, Friedman leu uma notícia no jornal sobre o conflito entre Israel e a Palestina, uma “briga a respeito de quem possui qual oliveira”. O autor conclui então que o Lexus e a Oliveira eram símbolos da chamada Nova Ordem Mundial: metade do mundo parecia sair da Guerra Fria com intenção de produzir um Lexus melhor, com o propósito de modernizar, dinamizar e privatizar suas economias, a fim de prosperar no sistema da globalização. E metade do mundo – às vezes, metade do mesmo país, às vezes metade da mesma pessoa – ainda estava brigando a respeito de quem possui a oliveira. 

O que Friedman chamou de Lexus e Oliveira, Celso Lafer e Gelson Fonseca, em artigo de 1994, denominaram “forças centrípetas e centrífugas da globalização”. Como sugere a alusão à física, as forças centrípetas são atrativas e gregárias, fundadas na crença iluminista e no triunfo racional de valores universais. Representam a inclinação natural, existente desde a aurora da civilização, ao intercâmbio, à troca, buscando ampliar espaços em todos os sentidos. A proliferação de organizações internacionais, como ONU e OMC, e de blocos econômicos, como NAFTA e Mercosul, criados para institucionalizar esta tendência, é o resultado de um processo de integração global de longa duração. Em suma, as forças centrípetas induzem ao processo de globalização da economia, dos valores, da segurança, percebidos como hegemônicos logo após o fim da Guerra Fria.   

Por sua vez, as forças centrífugas são, por natureza, repulsivas e desagregadoras, movidas pela lógica da fragmentação, da afirmação das identidades, da valorização das fronteiras. Representam o aflorar do particularismo, do soberanismo e do tribalismo. Em uma era em que predominava a crença na construção de uma “aldeia global”, as forças centrífugas despontaram para afirmar o particularismo local por meio do ressurgimento de conflitos de caráter étnico, religioso e cultural, do recrudescimento de nacionalismos ou, no plano econômico, das práticas protecionistas. Havia durante a década de 1990, uma convicção entre os liberais de que o Lexus triunfaria sobre a Oliveira, de que as forças centrípetas se sobreporiam às forças centrífugas. 

Foi a exacerbação das forças centrípetas da globalização que avivou em Kowalski o apego à Oliveira, neste caso representado pelo Gran Torino. A percepção do trabalhador do Cinturão da Ferrugem era de que Washington priorizou Wall Street em detrimento das indústrias do meio-oeste, preferindo o capital financeiro ao produtivo. Em Michigan muitos culparam o NAFTA por transferir empregos para o México. 

Além do desemprego e da perda nominal de riqueza dos trabalhadores, o colapso do Cinturão da Ferrugem produziu também a marginalização política e cultural da região. Cidades foram abandonadas, a criminalidade aumentou exponencialmente e a crescente imigração intensificou a sensação de esvaziamento da identidade nacional norte-americana. A Detroit em que vive Kowalski é uma cidade violenta em que gangs mexicanas e asiáticas, não assimiladas ao American Way of Life, disputam espaço e poder. 

Em meio à decadência da classe média norte-america, Kowalski devota sua vida a conservar as coisas permanentes que conferem sentido a sua existência – a honra, a independência, a propriedade e o Gran Torino, símbolo do seu trabalho. Em face da indiferença insensível dos custos humanos produzidos por aquilo que Joseph Schumpeter chamou da “destruição criativa” do capitalismo globalizado, o velho polaco resiste às forças “amorais” da globalização, percebidas como responsáveis pela desordem trazida ao estilo de vida da sua comunidade local. No velório da sua mulher, logo no começo do filme, fica patente o dissabor de Kowalski ao observar a zombaria com que sua neta trata a liturgia da Igreja Católica. 

Não é nova a crítica conservadora ao capitalismo. Desde o século XIX, conservadores tradicionalistas veem com preocupação os efeitos dilacerantes da sociedade de consumo sobre os elos sociais históricos. A expansão indiscriminada do capitalismo aumenta a distância social entre os indivíduos, afrouxa os laços de família e confere um carácter de endinheirado a todo o tipo de vida.

Nos EUA, essas ideias encontraram eco entre os paleoconservadores – especialmente Pat Buchanan – que defendem que o capitalismo global lesa os interesses materiais do americano médio. Como as elites transnacionais não tem lealdade a nada além do lucro de sua própria classe, elas terceirizaram, sem escrúpulos, a produção para países em desenvolvimento ou importaram imigrantes para reduzir os salários americanos. Além dos danos materiais causados pela globalização, seus efeitos culturais são igualmente importantes para os paleoconservadores. O capitalismo global produz um mundo de consumidores atomizados, não se importando com religião ou cultura e, por essa razão, sua influência deveria ser controlada. A família de Kowalski representa a geração de americanos transformados em consumidores atomizados. A neta, que não tira os olhos do celular, só quer saber de herdar o Gran Torino do avô; os filhos propõem ao pai que ele passe o resto de sua vida em um asilo. 

A vitória de Trump em três estados do Cinturão da Ferrugem – Michigan, Pensilvânia e Wisconsin – foi decisiva para leva-lo à presidência dos EUA. Os três Estados não tinham votado juntos por um presidente republicano desde Ronald Reagan, em 1984. Trump venceu as eleições porque conseguiu compreender melhor do que os Democratas as queixas dos milhões de Kowalskis esquecidos pelo governo norte-americano desde a década de 1980. 

Eleitores de Trump no Rust Belt

Com frequência Trump tem afirmado que a globalização “varreu a classe média”. No campo econômico, o presidente norte-americano tem abusado das velhas práticas mercantilistas para “proteger” a classe média americana das elites financeiras da costa leste. Quando anunciou as tarifas protecionistas sobre o aço e alumínio, Trump fez questão de convidar trabalhadores da indústria siderúrgica, vestidos a caráter, para participar da cerimônia de assinatura do decreto. Recentemente se autodenominou um “homem tarifa” (I’m a tarriff man). Não raro, Trump tem usado o twitter também para constranger empresas americanas. O caso mais recente foi a ameaça que fez à General Motors quando a empresa decidiu fechar plantas industriais nos EUA. Tudo isso seria música para os ouvidos de Kowalski.

Mas há Kowalskis também na França. A apenas duas horas ao norte de Paris, encontra-se o Rust Belt francês. A região que prosperou no passado com a produção siderúrgica tem sido atingida por um severo processo de desindustrialização, tendo o desemprego atingido o patamar de 17%. Como ocorreu nos EUA, historicamente os metalúrgicos e mineiros do Rust Belt francês votavam em partidos de esquerda. Contudo, nos últimos anos o partido populista de direita, Front National, vem ganhando força na região. Em 2014, a legenda de Marine Le Penn venceu as eleições em duas importantes cidades na região, Hénin-Beaumont e Hayang. Essas transformações levaram a historiadora Valérie Igounet e o fotógrafo Vincent Jarousseau a passarem dois anos registrando as reivindicações “antissistema” de Kowalskis francófonos, esforço que resultou na publicação do livro L’Illusion Nationale.

Foto de Vincent Jarousseau, do livro “L’Illusion Nationale”

Mas como costuma acontecer com os personagens de Clint Eastwood, ao longo do filme o veterano de guerra nos revela uma personalidade muito mais complexa do que a de um mero precursor do trumpismo. Inicialmente, Kowalski é caracterizado como um velho rabugento, ressentido, alienado e racista. Faz questão de não se relacionar com os vizinhos asiáticos, a quem chama de “ratos” e “bárbaros”. Fosse esse o perfil único do protagonista ele estaria mais próximo dos supremacistas brancos da alt-right. 

No entanto, uma série de acontecimentos leva Kowalski a se aproximar dos seus vizinhos hmong, que ele costumava chamar pejorativamente de “china”. Descobre que hmong é um povo montanhês que viveu no Laos e que, apoiado pela CIA, ajudou os EUA na Guerra do Vietnã. Com a vitória comunista em 1975, os hmongs, perseguidos por Ho Chi Minh, migraram para o EUA e tiveram direito a asilo como refugiados. 

Ainda que mantidas as enormes diferenças culturais, Kowalski se identifica com o tradicionalismo dos hmongs. É uma família unida, religiosa e conservadora nos costumes. Em um almoço na casa dos vizinhos asiáticos, o velho sussurra para si mesmo: “tenho mais em comum com essa gente do que com minha própria família”. Kowalski apadrinha o garoto Thao, o mesmo que outrora tentara roubar seu Gran Torino como a exigência de iniciação para entrar na gang local.  Enquanto ajuda Kowalski na zeladoria da decadente vizinhança, o velho polaco ensina ao garoto os valores de masculinidade tão comuns no meio-oeste, aquilo que Walter Russel Mead chamou de cultura jacksoniana e que é parte constituinte do populismo norte-americano.  

No desfecho do filme, Clint Eastwood promove a redenção de Kowalski. Ao invés de pegar sua arma para exterminar a gangue de criminosos que aterrorizava a vida dos vizinhos refugiados, Kowalski se sacrifica para facilitar a prisão dos perpetradores, sem derramar sangue algum além do próprio. Em um supremo ato de amor cristão, ele finalmente exorciza os espectros que o obcecaram por mais de cinquenta anos. Sua morte profundamente simbólica – com o corpo estendido no chão na inconfundível forma de uma cruz – o faz alcançar a paz que procura há tanto tempo. Ao se despedir do padre após a confissão, o próprio Walt afirma que encontrara verdadeiramente a paz. O ato de vingança, a terrível lei da retaliação, a resposta violenta à violência original, a exigência fria do olho por olho – tão comum na cultura jacksoniana do meio-oeste – nada disso permite uma fuga real das misérias da condição humana. 

Por mais que a mensagem final deixada por Clint Eastwood seja um apelo à tolerância, Kowalski anuncia as forças centrífugas que hoje levantam barricadas contra a globalização. O Gran Torino, assim como a Oliveira, representa tudo aquilo que nos enraíza, nos ancora, nos identifica e nos localiza neste mundo. Do nacionalismo hindu de Modi, na Índia, ao tradicionalismo cristão de Viktor Orbán, na Hungria, temos assistido à retorno do Gran Torino. 

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David Magalhães

David Magalhães é professor de Relações Internacionais da Faap e PUC-SP.