História

A História como Presente: Déspotas esclarecidos, troquemos o espelho!

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A História como Presente: Déspotas esclarecidos, troquemos o espelho!

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Há uma passagem fundamental em Labirinto da Solidão, de Otavio Paz, na qual o autor mexicano reflete sobre as variadas versões sobre a História de seu país e de sua nação. Segundo o brilhante ensaísta, cujo falecimento completou 23 anos ontem, 19 de abril, as camadas que compõe a história mexicana não permitem que olhemos para esta trajetória reproduzindo certa obsessão em descobrir qual seria a verdadeira nação, o verdadeiro povo ou o verdadeiro México. Isso porque, ainda segundo o vencedor do Nobel de 1990, a nação mexicana não era nem a herdeira da amálgama entre povos ameríndios, nem do domínio espanhol. E muito menos da definição geográfica e política do Vice-reino da Nova Espanha, divisão administrativa do período colonial. Era, com ponderações diferentes, mas imensuráveis, a justaposição entre todas elas, com os ajustes referentes às misturas religiosas e aos processos políticos que caracterizam a História do país, tal como a Revolução de 1910.

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Octavio Paz

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A preocupação de Paz era desmistificar tanto a leitura romântica de que os trezentos anos de domínio espanhol pouco representa para a história de povos que ali estão há muito mais tempo, mas também a leitura marxista de meados do século XX que só enxergava imperialismo, no estilo de Eduardo Galeano. Ou ainda a versão criolla, de predomínio civilizatório europeu sobre os ‘selvagens’ nativos.   Em outras palavras, o aviso que nos deu Paz é que se uma ou outra versão se impõe de modo a buscar o monopólio sobre o autorretrato que aquela sociedade tem, invariavelmente esta história está pela metade. E, mais grave, na rota da colisão e da fratura. Seja qual for.

Lembro disto porque nos últimos anos e com especial destaque nos últimos dias, leio e vejo declarações e hipóteses sobre o autorretrato que o Brasil estaria vendo durante o governo Bolsonaro. A mais envernizada foi lançada já há alguns anos e versava sobre nosso comportamento violento, enraizado em nossas estruturas, que teria se revelado no ‘ódio das ‘elites’ que então apoiavam a eleição do atual mandatário. A tese é charmosa, mas carece de seriedade. Antes de tudo porque este comportamento violento — obviamente estrutural e herdado da decisão do uso da violência ter sido, na maior parte de nossa história, circunscrito ao espaço privado — não é restrito à elite. E nem esteve vinculado às flutuações econômicas e sociais. E, claro, porque o comportamento violento não era menor antes de Bolsonaro se eleger presidente. A própria premissa é heroica: se o comportamento violento é estrutural e herança nefasta de nossa história escravista, não parece razoável que dez anos de determinado governo seja capaz de resolver o problema. Misturar as temporalidades é mágica conhecida por outros mágicos, que não podem revelar o segredo ao público para não parecerem pelegos.

Outra tese é que a elite teria nos últimos meses e, em especial, ante o desastroso enfrentamento da pandemia, se visto no espelho. Espelho que teria refletido uma imagem assustadora e que justificaria certa debandada entre os apoiadores de Bolsonaro. O equívoco é óbvio: boa parte dos que apoiaram e continuam apoiando Bolsonaro não são da elite, seja lá o que isso quer dizer. Ao contrário, a imagem que a elite — ‘seja lá o que isso quer dizer’ — tem de si própria é a da eficiência. Um certo despotismo esclarecido de perifeira. Foi isso que movimentou a tal ‘elite’ a apoiar Lula e Palocci na condução da política econômica do primeiro mandato do ex-presidente e agora possível candidato em 2022. É isso que movimentará a tal elite em 2022.

O alvo deste tipo de crítica está equivocado, como em geral, estão aqueles que querem enxergar tudo pela dicotomia esquerda e direita ou elite e povo.  O ponto é que boa parte do país, que está para além das academias e dos suplementos culturais da ‘grande mídia’ (a mesma que até pouco tempo atrás era chamada de PIG — Partido da Imprensa Golpista — pelos esclarecidos apoiadores de Lula et caterva) não enxerga, por exemplo, a inacreditável oposição artificialmente construída entre escola e família. Ao contrário, entende a escola como extensão da família. Esteja isso certo ou errado. Aliás, quem define o que é certo em geral está bem longe dos que não entendem o porquê desta divisão.  Assim como também não reconhecem a oposição entre um discurso voltado à segurança pública e a sua posição social. O modo como veem sua posição social é exatamente o que os faz desejar uma melhora na segurança pública e não o contrário.

Ou seja, a suposta visão que estamos vendo no espelho — a violência enrustida do Brasil, o arcaísmo de nossas elites etc. — é, em partes consideráveis, o reflexo do espelho que escolhemos usar. O autorretrato que identificamos a partir do nosso modo de ver a história. E não a partir do modo que aqueles que imaginamos envergonhados no espelho veem.  Experimente trocar o espelho ou pintá-lo de preto. Talvez enxerguemos que Bolsonaro deu face — de maneira caricatural, pois radicalizada e bufa — a uma longa trajetória que, na ânsia de contarmos uma história em detrimento de outra, tenhamos simplesmente esquecido que existia.

O que derrubará Bolsonaro é sua ineficiência, e não seus valores. A não ser que estes valores parem de ser tratados por nós, déspotas esclarecidos da periferia, como sendo de segunda classe. Se eu e você não gostamos deles, isso não significa que eles não existam. E com Bolsonaro eles estão gritando, raivosos, reivindicando que olhemos para eles, que reconheçamos que eles existem. Diminuiremos a raiva deles quando os tratarmos como adultos. Até lá esta raiva será magistralmente manipulada pelo irresponsável de plantão.

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26ª Marcha para Jesus (Foto: Gabriela Biló/Estadão Conteúdo)

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Vinícius Müller

Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.