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Sobre o conceito de história, de Walter Benjamin: 80 anos

por Augusto de Carvalho

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Há pouco mais de oitenta anos, Walter Benjamin (1892–1940) finalizava um conjunto de aforismos intitulado Über den Begriff der Geschichte [Sobre o conceito de história]. O ano recém-terminado de 2020 marcou igualmente o aniversário de oitenta anos da morte de Benjamin, que finda sua própria vida poucos meses após finalizar um de seus mais célebres textos. Apesar de improvável, há a hipótese de que Benjamin teria sido assassinado. E em um contexto tão violento como a Europa daquela época, tal conjectura não é inverossímil. As evidências deixam, porém, poucas dúvidas sobre as circunstâncias de seu suicídio: após anos de exílio na França, em Paris desde 1933, apátrida — mesmo berlinense, perdeu a nacionalidade alemã em 1939 —, com a saúde drasticamente debilitada, na fronteira entre a França e a Espanha, objetivando chegar a Portugal e emigrar para os EUA, oprimido pela sua condição particularmente adversa de judeu-alemão e intelectual de esquerda, motivado pela suspeita de perseguição por agentes da Gestapo, Benjamin é encontrado sem vida em um pequeno quarto de Hotel na cidade de Portbou, onde o grupo de migrantes do qual ele fazia parte havia parado compulsoriamente para uma revista de documentos. Os registros oficiais determinam uma overdose de morfina como causa mortis. Em 26 de setembro de 1940, então, Walter Benjamin desaparece em condições sinistras. E por tudo isso, não é um acaso que ele se torne em tão pouco tempo um mártir para os intelectuais alemães no exílio, e também para a comunidade judaica europeia. Parte significativa desse reconhecimento se deve ao conteúdo de suas conhecidas teses sobre a ideia de história, que dão corpo ao muito conhecido texto Sobre o conceito de história, das quais Benjamin falava com entusiasmo meses antes de seu trágico fim, e que registram os últimos pensamentos de uma mente perturbada pela conjuntura política, bem como pelo que ele assim entendia como as origens filosóficas daquele contexto nefasto: o conceito de história. Esse conjunto de teses, posteriormente caracterizado como uma espécie de testamento intelectual — por se referir de uma maneira ou outra a toda sua obra —, foi dedicado inteiramente à história; ou melhor, ao conceito de história como a origem da miséria espiritual e política moderna, e do qual, simultaneamente, derivaria alguma solução teórica e ética.

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O túmulo de Benjamin em Portbou, lendo que ‘Não há documento da cultura que não seja também da barbárie’

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Décadas após a gênese das teses, não há um historiador ou pensador da história que passe incólume pelos últimos aforismos benjaminianos. A linguagem cifrada e os recursos ao aparato teológico levaram gerações de estudiosos a encontrarem ali um manual enigmático — e até mesmo místico — sobre a ordem e função dos acontecimentos históricos. Não é incomum encontrar epígrafes de trabalhos acadêmicos contendo alguma imagem, alegoria, metáfora ou profecia benjaminiana. Afinal, a forma estética do texto é sedutora, e o mistério da fraseologia hermética leva o leitor em geral a uma contemplação poética, que, contudo, muitas vezes faz por ignorar o seu valioso conteúdo.

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Pequeno histórico de um texto que nunca teria sido publicado

A primeira referência ao texto Sobre o conceito de história data de 22 de fevereiro de 1940, quando Walter Benjamin escreve a Max Horkheimer, dizendo que acaba “de concluir uma série de teses sobre o conceito de história” (GB VI, 400-401). Na mesma carta, as teses são caracterizadas como a “armadura teórica” dos seus últimos trabalhos, ao mesmo tempo em que o autor diz que elas foram pensadas a partir da incontornável “situação mundial”. Nas palavras de Benjamin, elas “constituem uma última tentativa de fixar uma forma da história que deve estabelecer uma cisão irremediável entre o nosso modo de ver a história e os vestígios do positivismo que marcam tão profundamente até mesmo a historiografia mais familiar”. Contudo, “o caráter mal acabado” das teses impediria sua apresentação da maneira que elas estão. Em outra carta, datada de fins de abril/início de maio do mesmo ano, poucas semanas após a primeira, endereçada agora a Gretel Adorno, a eventual publicização das teses é efusivamente interditada, pois a leitura do texto tal como se encontrava poderia proporcionar “entusiasmados equívocos ou mal-entendidos” (GB VI, 436). Trata-se, enfim, da perspectiva do autor, de um esboço, um trabalho ainda não terminado e inadequado para leitura pública, restrito aos seus interlocutores mais próximos. Entretanto, a despeito disso, Geschichtsphilosophischen Reflexionen/Thesen [Teses/Reflexões filosófico-Históricas] foram publicadas em 1942 pelo Institut für Sozialforschung [Instituto de Pesquisas Sociais] — exilado em Los Angeles, Califórnia, EUA — mimeografadas e levando a assinatura póstuma do então pouco conhecido Walter Benjamin.

O conjunto de teses de 1942, publicadas em um número especial da revista do Instituto “em memória” de Benjamin, que completaria meio século de vida naquele ano, apresenta significativas diferenças em relação às outras versões originais do mesmo texto, as quais paulatinamente passam a ser descobertas. Como se pode averiguar pelo breve exame do espólio benjaminiano, há ao menos cinco versões originais do conjunto de teses sobre o conceito de história, quer dizer, versões que temos acesso e foram escritas por ele mesmo ou com sua supervisão, incluindo inúmeras variantes e materiais adicionais isolados: a versão mais primitiva do texto é um manuscrito que esteve em posse de Hannah Arendt desde 1940; seguem-no uma versão manuscrita em francês; uma versão datilografada por Dora Benjamin sob a supervisão de seu irmão; uma cópia em carbono da versão datilografada, corrigida à mão por Benjamin e por fim, mas não menos importante, o seu exemplar de trabalho, datilografado e corrigido, confiado por ele a Georges Bataille em 1940, na véspera de sua fuga de Paris (Cf. WuN 19, 159), há oitenta anos.

A primeira versão publicada do texto, de 1942, datilografada por Gretel Adorno — considerado pelos editores de suas obras como um dos originais —, ganha forma, então, a partir de uma misteriosa mistura de versões a que os membros do Instituto de Pesquisas Sociais tiveram acesso. Embora o material exato que dá forma ao texto de 1942 permaneça desconhecido, sabe-se que uma cópia do único manuscrito do texto foi enviada por Hannah Arendt à Adorno em 1941. Além da cópia do manuscrito, outra versão do texto teria sido encontrada por Adorno entre papéis e objetos pessoais de Benjamin. De acordo com uma carta dirigida a Gershom Scholem, de 19 de fevereiro de 1942, Adorno afirma que havia recebido duas malas de Benjamin em Nova Iorque, de um tal Martin Domke — advogado berlinense amigo de Benjamin —, contendo parte do espólio benjaminiano, livros e papéis, dentre os quais estariam “as teses histórico-filosóficas da primavera de 1940” (WuN 19, 171) — possivelmente uma cópia da versão datilografada por Dora Benjamin.

Após a publicação de 1942, sua primeira “verdadeira publicação” em alemão será feita apenas em 1950, na prestigiada revista literária Die neue Rundschau. A versão publicada em 1950 é assim considerada sobretudo porque algumas variantes do conjunto de teses ajudam os editores a reconhecerem o título Über den Begriff der Geschichte como o nome correto do texto, intitulado dessa forma pelo próprio Benjamin, conforme a versão original datilografada por sua irmã mais nova, Dora. Em 1955, pela iniciativa de Adorno alguns “escritos” de Benjamin são editados, e dentre eles, são republicadas as Geschichtsphilosophischen Reflexionen/Thesen de 1942, com pouquíssimas alterações. Somente em 1974, os Gesammelte Schriften [Trabalhos Reunidos] de Benjamin, organizados por Rolf Tiedmann e Hermann Schweppenhäuser — em trabalho conjunto com Adorno e Scholem — apresentariam uma versão publicada do conjunto de teses que passa a ser considerada a versão oficial, revisada a partir das variantes, mas ainda assim provisória (WuN 19, 213-214; GS I.2, 691-704).

Essa pequena odisseia, contudo, não encerra ainda a história da publicação das teses. Seu capítulo mais surpreendente é protagonizado por Giorgio Agamben, que em 1981 recebe das mãos da viúva de Georges Bataille papéis de autoria de Walter Benjamin guardados por mais de quarenta anos. Tratava-se de uma quantidade significativa de papéis conservados na Biblioteca Nacional da França [BnF], confiados por Benjamin a Bataille, funcionário da BnF em 1940, antes de sua fuga para Marseille e a tentativa malsucedida de emigrar para os EUA. Entre os papéis encontrados, Agamben destaca o Handexemplar [exemplar de trabalho] do texto Sobre o conceito de história (WuN 19, 211): vinte folhas datilografas com correções ao texto manuscritas, anotações do próprio Benjamin, incluindo a nota “exemplar de trabalho” registrada no canto superior da primeira folha. A descoberta do manuscrito Agamben modifica significativamente a compreensão do texto, que passa a sofrer importantes reinterpretações a partir de seu conteúdo. A versão final dos Gesammelte Schriften, de 1991, inclui o Handexemplar em seu aparato crítico (GS VII.2, 780-784).  Mas somente com a publicação do décimo nono tomo dos Werke und Nachlaß [Trabalhos e Espólio], em 2010, dedicado ao trabalho de reconstrução crítica do texto Sobre o conceito de história — incluindo fac-símiles e marcas de correção aos textos —, tornou-se possível ressaltar de maneira filológica rigorosa a relevância do Handexemplar em relação às outras variantes originais do conjunto de teses, bem como de suas versões já publicadas.

Apesar da versão oficial, não há, portanto, uma versão original do conjunto de teses. Por isso o conhecimento das variantes é fundamental para a devida compreensão do texto que, a rigor, não seria publicado. Embora Benjamin afirme em uma carta a Stephan Lackner, em 5 de maio de 1940, que havia “terminado um pequeno ensaio sobre o conceito de história” (GB VI, 441) — uma referência possível ao Handexemplar —, não há nenhuma prova ou mesmo sinal contundente que alguma dessas versões originais sobreviventes ao súbito fim de seu autor seja definitiva ou autorizada para publicação.

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Benjamin em sua biblioteca

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As traduções brasileiras do conjunto de teses

Pierre Missac, então colega de trabalho de Bataille na BnF, amigo de Benjamin desde 1937, é responsável pela primeira tradução do conjunto de teses, do alemão para o francês, publicada em outubro de 1947 na revista Les Temps Modernes, antes mesmo da primeira publicação do texto na Alemanha, em 1950. A essa época, a obra benjaminiana ainda era pouquíssimo conhecida mesmo entre o público especializado, situação que começa a se modificar após a primeira edição de alguns “escritos” de Benjamin — republicação de textos já publicados em vida e alguns outros novos ensaios originais de seu espólio —, em 1955, quando começa a ser reconhecido como um pensador indispensável para o pensamento Europeu do pós-guerra. Após a tradução francesa, somente em 1968 Harry Zohn será responsável por uma nova tradução, agora, para o inglês. Neste mesmo ano, pela primeira vez um texto de Benjamin é publicado em português brasileiro, na revista Civilização Brasileira, feito de Carlos Nelson Coutinho, que traduz A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. No Brasil, a propósito, a figura de Walter Benjamin possui uma história particular. Além do curioso fato descoberto por Karlheinz Barck, que Erich Auerbach, em 1935, cogitou um convite a Benjamin para ser professor de literatura alemã na Universidade de São Paulo, alguns dos nomes mais expressivos dos estudos benjaminianos são brasileiros — nascidos ou naturalizados. Já em 1967, quando a obra de Benjamin ainda estava em processo inicial de descoberta na Europa, Leandro Konder publica uma breve análise sobre o papel da estética na política, de acordo com Benjamin, em Os Marxistas e a Arte. Em 1969, Luiz Costa Lima organiza uma coletânea de textos, Teoria da Cultura de Massa, e novamente Benjamin figura entre ilustres pensadores da estética e cultura de massa, merecendo um breve comentário do organizador e a republicação da tradução de Nelson Coutinho. No mesmo ano, José Guilherme Merquior publica o ensaio Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin, primeira apreciação mais extensa à obra benjaminiana originalmente nacional — primeiro livro, aliás, dedicado inteiramente à chamada Escola de Frankfurt. Em 1974, Stefan Wilhelm Bolle [Willi Bolle] deu o primeiro curso sobre Benjamin na USP, e no fim da mesma década, Jeanne-Marie Gagnebin, pioneira no estudo do texto Sobre o conceito de história em uma tese de doutorado, defendida em Heidelberg, em 1978, imigra para o Brasil, onde dará aulas na Unicamp e na PUC-SP, contribuindo sobremaneira para a disseminação da obra de Benjamin em português. Tudo isso está minuciosamente detalhado em Benjamin, Brasil. A recepção de Walter Benjamin, de 1960 a 2005. Um estudo sobre a formação da intelectualidade brasileira, de Günter Karl Pressler.

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Leandro Konder

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Quanto à tradução do texto Sobre o conceito de história no país, sua primeira publicação aparece no oportuno ano da redemocratização, 1985. Num trabalho fundamental de Sérgio Paulo Rouanet, o texto figura na coletânea Obras escolhidas Magia e técnica, arte e política. Após Rouanet, ainda em 1985, Flavio René Kothe também apresenta sua tradução. Em 2005, em conjunto com Marcos Lutz Müller, a professora Gagnebin publica sua própria tradução do conjunto de teses em Walter Benjamin: aviso de incêndio uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”, com notável comentário do professor Michael Löwy. Esta última tradução é amplamente aceita como a mais completa, visto que incorpora significativas variantes do Handexemplar. Em 2020, ano em que o texto completou oitenta anos, Márcio Seligmann-Silva e Adalberto Müller oferecem uma tradução em forma de edição crítica do texto Sobre o conceito de história, realizada a partir dos últimos avanços filológicos sobre o espólio. Seligmann-Silva e Müller, então, apresentam novas traduções de algumas variantes das teses e do aparato crítico até então inéditas no Brasil — apesar de publicadas desde 2010 na Alemanha —, que reafirmam a importância histórica e analítica do texto de Walter Benjamin no tempestivo contexto político atual brasileiro. É digna de uma menção final a tradução portuguesa de João Barrento, muito lida no Brasil, presente na coletânea O Anjo da História, de 2012.

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Por que um texto dedicado à história?

Em uma carta a Scholem, de 20 de janeiro 1930, Walter Benjamin já expressa o desejo de construir uma introdução crítica ao Das Passagen-Werk [Trabalho das Passagens], assim como fez com o livro Ursprung des deutschen Trauerspiels [Origem do drama trágico alemão], de 1925. Mas desta vez, tal introdução se concentraria em uma “teoria do conhecimento histórico” (GB III, 503). Apenas uma década depois, no entanto, em 1940, “a guerra e a constelação que ela traz consigo” (GB VI, 435) conduziu Benjamin “a estabelecer alguns pensamentos” em forma de aforismos ou teses; alguns deles o acompanhavam “há vinte anos” (GB VI, 435): um texto sobre o conceito de história, o qual apresenta simultaneamente um diagnóstico sociológico-histórico sobre sua época, uma teoria sobre o conhecimento histórico, e uma teoria sobre a natureza do fenômeno histórico. A conjuntura política serviu, assim, como catalisador para dar à luz antigos pensamentos acerca da história. Isto é, se por um lado a atualidade dos acontecimentos políticos e sociais europeus de então provocaram a formalização das ideias apresentadas nas teses — sobretudo o pacto germano-soviético de 1939 (GS I.3, 1228), que elimina a esperança da intelectualidade de esquerda de alguma resistência sistêmica ao Nacional-Socialismo alemão —, por outro lado, trata-se de “um conjunto de teses” que se relacionam com toda obra benjaminiana das últimas duas décadas de sua vida — Michael Löwy demonstra que poderíamos ainda aumentar esse número para vinte e cinco anos —, e sobre as quais desde ao menos 1930 Walter Benjamin se dedicava intelectualmente a partir de um objeto específico, o trabalho sobre as passagens parisienses. A relação imediata que alguns aforismos possuem com o convoluto N do trabalho das Passagens, aliás, fortalece a hipótese de que o conjunto de teses serviria concretamente como sua “armadura teórica” (GB V, 83) em forma de introdução.

O tema da história era bastante familiar à Benjamin, que apesar da formação filosófica tradicional, trabalhou em grande parte de sua vida como historiador. Destacam-se a sua tese para habilitação na Universidade de Frankfurt, sobre a origem do drama trágico alemão, e a inconclusa monumental já citada Passagens, iniciada em 1927, projeto com o qual Benjamin se ocupou até a fuga de Paris, em 1940. A ideia de história, portanto, não era um objeto pouco habitual ao filósofo; ao contrário, era ao menos há vinte anos um de seus temas principais de estudo. De um ponto de vista teórico, e a propósito de um problema premente daquela época, qual seja a crise do historicismo, é digno de nota o fato de que Benjamin participou de um seminário sobre a obra de Ernst Troeltsch, Der Historismus und seine Probleme [O historicismo e seu problema], em 1923 — ou seja, apenas um ano após a publicação do livro —, organizado pelo professor Gottfried Salomon, em Frankfurt. Além disso, em 1913 foi aluno de Heinrich Rickert — e a título de curiosidade, colega de classe de Martin Heidegger —, em um seminário sobre a ideia de tempo de Henri Bergson, ocasião em que o caráter histórico da realidade era um tema recorrente. A história como objeto teórico, enfim, nunca foi um campo ignoto para Benjamin, fato atestado por sua obra e espólio. No entanto, apesar do interesse e dedicação ao problema da história, como também de sua vontade de construir uma teoria da história particular para o trabalho das Passagens, não é auto evidente por que o conjunto de teses de 1940 foi elaborado precisamente naquele momento e da forma como foi, não somente em relação à data ou contexto do texto, mas sobretudo em relação à escolha do tema central, a história — e não a filosofia, por exemplo —, e à maneira como Benjamin tematiza o seu problema, através de alegorias teológicas e filosóficas cifradas.

É amplamente aceita pela fortuna crítica a hipótese de que o pacto Hitler-Stalin de 1939 e o início da guerra são os grandes acontecimentos políticos que motivam Benjamin a escrever as teses — ou catalisam suas ideias —, as quais criticam de maneira frontal a ideologia Nacional-Socialista coeva de um ponto de vista sociológico e filosófico a partir de um diagnóstico quase profético sobre os acontecimentos que seguem sua morte. Contudo, e a despeito do expressivo caráter político do conjunto de teses, o texto Sobre o conceito de história é igualmente uma reflexão imediatamente teórica sobre a ideia de história e sua conceitualização; ou melhor, as teses possuem ao mesmo tempo um caráter generalista, dizem respeito a certa fenomenologia dos acontecimentos históricos e seus pressupostos teóricos; fato que se evidencia pela sua capilaridade e ampla recepção para além do contexto germânico e europeu daquele momento. Nestes termos, há diferentes maneiras de abordar o texto, bem como diferentes níveis de elaboração podem ser derivados de cada tese de acordo com a questão que se coloca previamente. Pode-se afirmar, assim, que Benjamin fundamentalmente procura demonstrar por meio de suas teses a centralidade do fenômeno histórico em diversos aspectos, dos quais destaco o político, o sociológico, o fenomenológico, o epistemológico, o ontológico e o metafísico.

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Rejeição do automatismo e progressismo político-social

Da perspectiva política e social, o contexto coevo e a experiência pessoal de Benjamin são indispensáveis para construção de algumas das teses. Em 1933, após o partido Nacional-Socialista conseguir a maioria dos assentos do Reichstag e da consequente assinatura do Verordnung des Reichspräsidenten zum Schutz von Volk und Staat [Decreto do presidente do reino para a proteção do povo e do Estado], em 28 de fevereiro do mesmo ano, assim como da promulgação, em de 24 de março, da Gesetz zur Behebung der Not von Volk und Reich [Lei para sanar a aflição do povo e do reino], quando Paul von Hindenburg investe o chanceler recém empossado, Adolf Hitler, de plenos poderes, Benjamin se exila na França, em Paris. O antigo filho da alta burguesia berlinense passará a viver em pequenos quartos sublocados, e terá cerca de dezoito endereços diferentes até 1940; perde seus editores, leitores e boa parte de seus bens materiais — imóvel, livros, recursos financeiros, etc. Miserável economicamente, frequentemente solitário, com a saúde cada vez mais debilitada, neste contexto reflexivo sobre as inúmeras promessas de felicidade fracassadas da civilização e da cultura, Benjamin solidifica gradualmente sua compreensão sobre a condição existencial à qual a modernidade resiste e persiste na forma específica, apesar de dissimilada, da barbárie, cuja origem ele identifica na ideologia do progresso como motor da ideia moderna de história.

De acordo com Benjamin, o progresso técnico, um fato social, confunde-se com o progresso espiritual na Europa de então, o que leva à consolidação do progresso como norma existencial da modernidade, sua ideologia instintiva, a qual se conecta de maneira irreflexiva com o conceito de história. Na tradição filosófica, Jean-Jacques Rousseau, em 1755, no Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes [Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homen], falará em perfectibilidade do espírito humano como um dado natural, cuja história é a testemunha maior segundo o seu progresso. G. W. F. Hegel, nas Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte [Preleções sobre a filosofia da História Universal], de 1882-1823, falará em impulso de perfectibilidade inerente ao movimento progressivo da história, a identidade espiritual e ética da modernidade. Grosso modo, o progresso como manifestação espontânea da perfectibilidade ética humana, então, torna-se o motivo de variadas ideias sociais e políticas — contaminando até mesmo a ciência —, tais como evolução, processo e sobretudo a noção de revolução, por definição, a aceleração de determinado “processo histórico” compreendido como necessariamente inevitável — por isso passível de “aceleração” —, isto é, metafisicamente garantido pela noção a priori de progresso ou perfectibilidade humana. Nesses termos, Maximilien Robespierre, em 10 de maio 1793, em um dos períodos mais turbulentos da revolução francesa, anuncia na Assembleia Nacional da novíssima República que “o progresso da razão humana preparou uma grande evolução, e sobre vós pesa o dever singular de acelerá-la!”. O vocabulário escolhido por Robespierre não é aleatório, pois já em fins do século XVIII o aparato teórico moderno se encontrava estabelecido; o progresso tornava-se a norma e um fundamento existencial inquebrantável.

A “interminável perfectibilidade da humanidade” (GS I.2, 700), todavia, produz o contrário do prometido, e o progresso técnico da ciência — esse sim, efetivo e concreto —, desloca sua função redentora em direção ao serviço do progresso social, político e ético, isto é, ideologicamente construído. Benjamin se queixava frequentemente que se afirmasse um absurdo o fascismo ainda existir nos anos 1930, pois somente um raciocínio progressista acredita que há um fim ou termo temporal necessário para determinada ideia. No âmbito espiritual da humanidade não haveria perfectibilidade, pois, a ideologia do progresso moderna escondeu-se por baixo do manto da história para operar sua realização mais bem acabada, a revelação de sua outra natureza: a barbárie. Para Benjamin, em relação ao mundo coevo e concreto, tanto a tecnocracia Nacional-Socialista quanto o marxismo político, em termos teóricos, são frutos de uma mesma ideia, a ideologia do progresso. A Socialdemocracia de então, através de uma antiga moral trabalhista alemã “revela os mesmos traços tecnocráticos do fascismo” (GS I.2, 699), que de maneira ativa instaura um regime cujas normas eram previstas pela suposta aceleração do aperfeiçoamento orgânico do espírito humano (GS I.2, 699). A Socialdemocracia alemã e os comunistas coevos, de modo passivo e conformista (GS I.2, 698), esperavam que a superação da ordem Nacional-Socialista era apenas uma questão de tempo, algo que automaticamente aconteceria devido à fantasiosa natureza evolutiva do fenômeno da história — de acordo com o “materialismo histórico” marxista então em voga —, como história normal do progresso (GS I.2, 697) em direção à sociedade sem classes, conforme a alegoria do autômato enxadrista, na primeira das teses (GS I.2, 693): “uma concepção que somente leva em consideração os progressos da dominação natural, mas não os retrocessos sociais” (GS I.2, 699). O progresso humano e social fundamenta-se como “reivindicação dogmática” (GS I.2, 700), e não se relaciona em nenhum aspecto com a realidade histórica, segundo Benjamin. “[A] realidade social não amadureceu o suficiente para tornar a técnica num órgão próprio […] a técnica não foi suficientemente forte para dominar as foças concretas do social” (GS III, 238), que sujeitam a técnica aos seus caprichos. A civilização, que prometia a emancipação dos limites mais primitivos da condição humana, por fim, reitera os mesmos limites de maneira grotesca, transforma em ruínas os mesmos edifícios materiais e espirituais que havia outrora construído.

Do ponto de vista teórico ou filosófico, portanto, de acordo com o diagnóstico de Benjamin, não há motivos para se assumir a existência de qualquer progresso automático ou orgânico, pois não há impulso de perfectibilidade ética humana. O progresso, então, como ideologia seria um dos aparatos dogmáticos da modernidade que se esconde por trás da figura imparcial e objetiva da ciência histórica, segundo as teses, operando sua força de maneira velada, escondida, por isso mesmo tão poderosa e implacável. De certa maneira, a ideologia do progresso estrutura uma via especial [Sonderweg] para toda Europa, não apenas para a história alemã, a qual termina inevitavelmente como catástrofe.

Isto posto, vale notar que o mérito mais expressivo da crítica a ideologia do progresso de Benjamin está no fato dela não se limitar ao traçado caricato da fisionomia de um “inimigo” concreto claro, o fascismo ou Nacional-Socialismo alemão — apesar dele não evitar a nomeação efetiva de seus algozes; Benjamin se concentra em compreender por que tais fenômenos sociais e políticos nocivos à própria humanidade ganharem relevo e adesão social entre variados campos da luta política, assim como os motivos que levam os mesmos campos políticos se sustentarem por elementos teóricos análogos. Benjamin está preocupado com os fundamentos escondidos e estruturais da barbárie. Sua hipótese, ainda em 1940, localiza na ideologia do progresso automático político-social da humanidade uma das origens da guerra, teoria básica relativamente comum após 1945.

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Inscrição de Benjamin na Biblioteca Nacional da França

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Crítica à historiografia moderna como ciência conservadora

A força da ideologia do progresso, de acordo com Benjamin, estabeleceu-se através da elaboração da ideia de história universal moderna e sua legitimação historiográfica (GS I.2 702). A história do ponto de vista moderno seria naturalmente progressista, a clara manifestação da evolução ética, material e espiritual, do progresso humano, evidenciado através da expansão efetiva da cultura e da civilização por meio da dominação; o registro da evolução do estado de natureza primitivo rumo à modernidade e todo seu aparato espiritual e tecnológico avançado. Junto a isso, a historiografia moderna e seu procedimento “aditivo” (GS I.2, 702), isto é, sua forma compendiosa de elaborar o conhecimento sobre a experiência do passado humano, irreflexiva e mecânica, seria o princípio epistemológico que torna a história, segundo Benjamin, uma ciência conservadora por definição, um conhecimento passivo diante das demandas e questões oriundas do passado descoberto, que se contenta apenas em descrevê-lo empaticamente (GS I.2, 696), quer dizer, a partir de certa confiança ingênua naquilo que se apresenta como a causa anterior ao fato em questão. Trata-se do que Benjamin pessoalmente resumiu sob a epítome historicismo.

A progressão histórica, a ausência de uma epistemologia (re)ativa diante dos fatos passados e sobretudo a empatia em relação à cultura e à civilização moderna como a finalidade da cadeia de acontecimentos totais, orientariam o historiador historicista a tornar-se “instrumento da classe dominante” (GS I.2, 695) — ou dos “vencedores” e “poderosos” (GS I.2, 696) de então —, pois sendo o agora presente e o progresso futuro a finalidade da história, a historiografia trataria apenas de explicar as causas desse mesmo processo “natural”. Assim, a historiografia funcionaria como uma espécie de imagem organizada da tradição ou “transmissão cultura” (GS I.2, 696), daquilo que do passado foi transmitido como causa orgânica do estado atual e necessariamente moderno da civilização. O mundo histórico, portanto, seria construído basicamente pela tradição, pelo material espiritual transmitido em forma de cultura, sendo a historiografia a ciência que produz tal conservação. “Que ‘as coisas continuem assim’ — eis a catástrofe” (GS V.1, 592 [N 9a, 1]), uma vez que a norma é identificada com a tradição (GS V.1, 591 [N 9, 4]). Nesses termos, Benjamin afirma que não há um documento de cultura ou da civilização que não seja simultaneamente um documento sobre a barbárie operada pela ideologia do progresso. Por isso, seria preciso “escovar à contrapelo” a história, ou seja, descaracterizar a cadeia contínua e orgânica entre passado e presente para organizar a experiência histórica de outro modo, que não seja por meio da mera conservação do passado e, consequentemente, do estado político presente, mas “interrompendo” (GS I.2, 702-703) a transmissão das vitórias da classe dominante e sua consequente conservação. Diferentemente da noção clássica de revolução, segundo a qual se trataria de acelerar um processo histórico já vigente e necessário, na “revolução” (GS I.3, 1231) benjaminiana o suposto progresso histórico é “interrompido”, de modo que se produza um momento autêntico em que a ordem política é efetivamente desafiada. Se Karl Marx sugeriu que as revoluções seriam as “locomotivas da história”, para Benjamin elas seriam, na verdade, o “freio de emergência” (GS I.3, 1232).

Benjamin estaria propondo uma historiografia pensada, crítica, não apenas em relação aos seus objetos, mas sobretudo a forma de visar a experiência do tempo. Mais do que ao passado que se transmite na superfície da consciência, há de se fazer justiça aos passados que se escondem inconscientemente, identificados como o “passado oprimido” ou “recalcado” (GS I.2, 703) pela transmissão cultural própria ao progressismo histórico, que somente se torna acessível por meio do confronto com a tradição dos vencedores em favor do encontro do tempo passado perdido no processo ou progresso civilizacional. Segundo Benjamin, tal reconhecimento objetiva dar nome aos “sem nome” (GS 1.3, 1241), realizando, assim, uma outra historiografia que descubra, enfim, a natureza ainda não consciente da história ao resgatar do esquecimento os passados esquecidos pela tradição, matéria da historiografia oficial.

Não obstante a sofisticação e originalidade da crítica de Benjamin à ideia de história moderna, a qual, aliás, torna-se relativamente hegemônica no pós-guerra, é preciso admitir que o conceito de historicismo usado por Benjamin nas teses é bastante impreciso. Heinz Dieter Kittsteiner sugere que na verdade o uso do termo Historismus por Benjamin pode até mesmo ser interpretado como um grave equívoco; “ideia de história moderna” poderia ser mais adequado ao intuito genérico da análise benjaminiana. Afinal, o historicismo fundamentalmente constata o caráter histórico, contingencial e temporal de todo e qualquer fenômeno, o aspecto único de cada momento ou evento, tal como o próprio Benjamin, aliás, advoga (GS I.2, 702). A ideia de que o historicismo não possui “armadura teórica” (GS I.2, 702) ou refere-se inequivocamente ao progresso e à perfectibilidade humana (GS I.2, 700) talvez tenha sido abastecida por um único possível entendimento dentre os muitos entendimentos possíveis de historicismo cabível a seu argumento, presente, por sua vez, na obra Die Krisis des Historismus [A crise do historicismo] (1932), de Karl Heussi, para quem Historismus não é nada além de um tipo de historiografia radicalmente descritiva.

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Fundamentos metafísicos do fenômeno da história ou sobre o conceito de passado

Se em 1940, Benjamin escolhe a história como o tema central de seu conjunto de teses, o diagnóstico sobre as contradições da modernidade, suas promessas de felicidade não cumpridas, a relação imprecisa e dogmática entre progresso técnico, progresso ético-humano e progresso histórico, bem como sobre a revolução epistemológica historicista e o consequente estabelecimento da ciência histórica como visão de mundo estão na base de seu derradeiro texto. Entretanto, apesar dos aspectos sociopolíticos e epistemológicos prementes das teses, há um estímulo relativamente pouco explorado pela fortuna crítica, qual seja uma reflexão metafísica e ontológica sobre os fundamentos da realidade histórica, a qual, grosso modo, reconhece o papel essencial do fenômeno passado na constituição da experiência humana. Sobre o conceito de história poderia ser, enfim, igualmente intitulado Sobre o conceito de passado.

A história é precisamente o fenômeno que evidencia ou manifesta a temporalidade como um fundamento ontológico da realidade. Se há história, significa antes de mais nada que há tempo — de acordo com a conhecida fórmula de Martin Heidegger —; se há tempo, significa antes de mais nada que há passado. Reconhecer o papel central do tempo passado para a configuração da experiência humana não se caracteriza, no entanto, necessariamente como um gesto político reacionário ou conservador, conforme Michel Maffesoli recentemente argumentou, em entrevista ao professor Rodrigo Coppe no Estado da Arte. Do ponto de vista fenomenológico, esse reconhecimento da função essencial do fenômeno passado para a devida constituição das experiências individuais e coletivas apenas ressalta de modo ontológico um princípio medular do pensamento histórico, que não há existência ex nihilo: nada provém do nada.

Apesar da história da ideia de tempo organizar três modalidades temporais essenciais — o passado, o presente e o futuro —, não deve restar dúvidas quanto à característica especial do modus temporal passado como o tempo elementar e questão principal para qualquer exame sobre a temporalidade na perspectiva benjaminiana. Se tempo é basicamente um dos nomes dados ao fenômeno da transitoriedade dos estados gerais da realidade, quer dizer, o fenômeno da passagem, pode-se afirmar que há tempo ou que “o tempo passa” somente e na medida que passado. No conjunto de teses, com efeito, Benjamin resume a premissa em questão precisamente ao “reconhecer que a imagem da felicidade [desejos, futuros] que nós possuímos está completamente marcada pelo tempo que agora se refere ao fluxo de nossa própria existência” (GS I.2, 693). Para ele, “com a representação do passado, que a História toma para si, ocorre o mesmo” (GS I.2, 693). Se a historiografia, de um ponto de vista epistemológico e antropológico, lida continuamente com um jogo entre horizontes de expectativas futuras em relação à experiência presente próprio à temporalidade, tal como a conhecida fórmula metahistórica de Reinhart Koselleck brilhantemente evidencia, da perspectiva ontológica ou metafísica, contudo, e em conformidade com as teses de Benjamin, tanto a experiência do tempo quanto a expectava sobre o tempo seriam formas ou modos de ser de algum material sempre passado. As teses admitem assim a centralidade metafísica do tempo passado para qualquer ideia sobre a realidade histórica e do tempo como seu análogo; fator que pessoalmente acredito ter levado Benjamin à ideia moderna de história como fundamento da crise existencial analisada em seus últimos aforismos.

O passado, por conseguinte, ao contrário do que costumeiramente afirma a ideia de tempo tradicional, não significaria o tempo do realizado, o representante daquilo que foi consumado e “já não é mais”, o fenômeno anterior à existência e à realidade que, a rigor, não existe, pois “existiu”, sendo por isso considerado perfeito, acabado. Nada disso significaria algo propriamente passado, e tais características se originariam de uma compreensão equivocada sobre o caráter metafísico do fenômeno do tempo. De acordo com Benjamin, o tempo passado se refere imediatamente ao fenômeno da existência e à realidade. O que se chama comumente de presente ou futuro, nada mais seriam que modos de ser de um mesmo fenômeno; não do tempo, absoluto (Hegel) ou transcendental (Kant), mas da passagem, a “eterna e total transitoriedade” (GS II.1, 204) dos estados gerais da realidade, que se conecta fenomenologicamente e imediatamente ao conceito de passado. No passado, não no futuro ou no presente, residiriam as características elementares da temporalidade do tempo, de suas potências transitivas mais básicas: a profundidade da existência; o inacabamento dos sentidos; a abertura própria a liberdade, a imperfectibilidade humana. A esperança, temática persistente na obra de Benjamin, diferentemente do que sua concepção vulgar poderia pressupor, encontra-se, de acordo com as teses, em relação imediata com o passado, não com o futuro — tal como afirmou Péter Szondi. Então, da mesma maneira que a alegoria do “anjo da história” determina, da perspectiva metafísica própria a essa imagem, o passado, sempre “à frente” (GS I.2, 697) da existência, ocupa o lugar de tempo tradicionalmente reservado ao conceito de futuro, pois, concretamente, não haveria futuro de fato; ou melhor, não há futuro necessariamente causado pela continuidade temporal, de um ponto de vista existencial; não há futuro de uma perspectiva metafísica, mas somente epistemológica, como conhecimento invariavelmente prévio acerca de alguma probabilidade de repetição já antes experimentada; isto é, de um ponto de vista ontológico e concreto, há somente passados “diante” do fenômeno do tempo ou do “anjo da história”. Dessa constatação, Benjamin retira todo seu argumento sobre a natureza do tempo, cuja base material é a passagem, a transitoriedade, característica elementar do passado.

Da ilusão sobre a existência metafísica do fenômeno futuro — meta, finalidade e razão do télos progressista —, origina-se, segundo Benjamin, a ideologia do progresso, que arrasta o “anjo da história” para bem longe de sua tarefa, que é acordar os mortos, ouvi-los, dar nome aos sem-nome, frear o cortejo dos vencedores, interromper o fluxo contínuo da história, e reconstruir o passado a partir de suas ruínas, para que a historiografia não seja apenas a comemoração dos feitos dos vencedores de ocasião, mas a rememoração dos que pereceram sem a dignidade da memória. Somente dessa forma, o esclarecimento sobre as forças sociais, políticas e existências gerais que imperam sobre o “tempo-do-agora” (GS I.2, 703) seria devidamente alcançado. Benjamin nomeia as forças escondidas do tempo de “messiânicas” (GS I.2, 694), as quais, diferentemente do que a nomenclatura teológica pode sugerir, não significam o “fim de um desenvolvimento” (GS I.3, 1243), mas um momento no qual se tornam cognoscíveis, compreensíveis, quando revelam certa possibilidade ainda a realizar-se — ideia coerente em relação ao messianismo judaico, segundo o qual o messias nunca virá, futuramente, mas está oportunamente sempre vindo hayom [agora]. Vale ressaltar que a terminologia teológica não objetiva nada além do que a explicação de um fenômeno concreto, qual seja o caráter suspenso e eternamente incompleto da existência. O recurso a teologia se explica, sumariamente, pela interpretação benjaminiana da modernidade capitalista como uma religião — amplamente presente em sua obra, mas apresentada em um fragmento chamado Kapitalismus als Religion [Capitalismo como religião], de 1921, bem como pela visão que Benjamin possuía sobre alguns fenômenos particularmente enigmáticos, cujas características seriam somente acessadas por uma teologia, antes da filosofia. As forças “messiânicas” das teses se referem ao caráter não-realizado e imperfeito do tempo passado — diametralmente oposto à ilusória perfectibilidade —, os projetos e desejos suspensos, ideias a se concretizar; novamente, aspectos tradicionalmente ligados ao conceito de futuro, mas que Benjamin identifica propriamente e concretamente no tempo passado. Desse modo, a reflexão de Benjamin não se situa apenas no âmbito epistemológico da historiografia, da escrita da história, muto menos se detêm na perspicaz análise política coeva, mas avança no campo metafísico sobre os princípios lógicos da ideia de história, da formulação abstrata sobre o que se pode nomear como a historicidade da existência ou da realidade.

Não haveria como escapar das forças espirituais e telúricas do passado, conforme Benjamin. Assim como demonstrado em sua análise epistemológica e sobretudo metafísica sobre o fenômeno do tempo, no exame ontológico sobre a existência do passado repousariam as ferramentas teóricas para a devida compreensão da natureza estrutural da história. Dessa investigação, enfim, deriva a proposta benjaminiana da crítica histórica ou a abordagem crítica da historiografia, quer dizer, o projeto de uma história que confronte a tradição e todo material transmitido culturalmente à maneira nietzscheana. Entretanto, de forma análoga a Friedrich Nietzsche em sua segunda consideração “inatual”, Vom Nutzen und Nachtheil der Historie für das Leben [Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida], de 1874, a abordagem benjaminiana, essencialmente crítica, comporta o perigo mais evidente e implacável de todos os riscos próprios ao pensamento histórico: a negação do passado e das forças existenciais que dele emanam. A negação, afirma Nietzsche, não anula o poder que o passado possui sobre a existência; ao contrário, apenas oculta cada vez mais a sua presença perene e inevitável, dificultando a sua devida elaboração: a tarefa do historiador.

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Benjamin

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Retornar ao conjunto de teses para reinterpretar os fundamentos da ideia de história atual

O retorno ou o movimento até à razão ou princípio da existência, o retorno ao passado enfim, não se apresenta nas teses apenas como atitude epistêmica ou procedimento intencional da historiografia. Para Benjamin, o retorno ao passado ocorre mesmo quando não se tem plena consciência ou convicção de sua realidade. O pensamento, no âmbito individual, e a história, na esfera coletiva, devem obediência às leis espirituais do tempo, cujo átomo fundamental, não por acaso, encontra-se no fenômeno do passado, que impõem inevitavelmente sua presença. Reconhecer isso, diria Benjamin, evitaria importantes inconvenientes epistemológicos e políticos.

Em um mundo que não recusa a necessidade do progresso, pois ainda se surpreende ou se assusta diariamente com a ameaça do espectro negacionista, populista e da guerra e em um tempo que insiste em afirmar a perfectibilidade do espírito humano como a identidade insubstituível do fundamento existencial da ação política, quando as forças não-conscientes do aparato irracional da humanidade reativam a capacidade de controlar o destino de sociedades inteiras, e a religião sucumbe ao império da moralização e da violência como doutrina, as teses de Benjamin mantêm sua intransigente relevância. As potências da memória parecem não funcionar devidamente, a ideia de história permanece obscurecida pelo permanente desejo ingênuo do atual e da novidade, deseja-se ainda a modernidade a qualquer custo, como se fosse possível ser indiferente ao passado e suas forças espirituais e concretas. Acerca disso, afirma Benjamin já em 1932, trata-se do “que talvez seja a coisa mais importante em nós: a memória histórica”:

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‘Nosso povo tem uma memória frouxa’ . . ., ‘o que se possui, sempre se perde outra vez’. Isso é mais que um simples equívoco. Quem se esquece de séculos de experiência, nunca adquire uma verdadeira autoconsciência histórica fundada na consciência presente das experiências históricas, seus reflexos, seu controle sem fim. Não convém, em um mundo que a cada dia fica mais velho, brincar como a eterna criança que, a cada manhã legada pelo senhor Deus, deseja iniciar tudo de novo. (GS IV.2, 819)

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Benjamin, irmão e irmã, c. 1905

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Referências citadas

BENJAMIN, Walter; TIEDEMANN, Rolf; SCHWEPPENHAUSER, Hermann. Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991. [GS]

BENJAMIN, Walter; RAULET, Gérard. Werke und Nachlaß. Kritische Gesamtausgabe – Band 19: Über den Begriff der Geschichte. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2010. [WuN]

BENJAMIN, Walter; GÖDDE, Christoph; LONITZ, Henri. Gesammelte Briefe. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1995-2000. [GB]

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Augusto Bruno de Carvalho Dias Leite

Augusto de Carvalho é professor e pesquisador visitante no Departamento de Filosofia Japonesa da Universidade de Quioto.