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Capítulo inédito de Três Porcos, novo romance de Marcelo Labes

O Estado da Arte publica hoje um capítulo inédito de Três Porcos, a ser lançado em 2020, de Marcelo Labes, autor de, entre outros, Enclave (Patuá, 2018) — livro de poemas finalista do Prêmio Jabuti em 2019 — e Paraízo-Paraguay (Caiaponte, 2019) — romance com o qual alcançou a 2a colocação no Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional. 

É dos homens adultos, talvez também dos homens perturbados, perseguir uma ideia de pai. Na ausência do próprio, procuram a ideia de pai em outros homens, ou a negam completamente — e negam os homens, por consequência. A ideia de pai tem a ver com força, destreza, inteligência e responsabilidade. Tem a ver com imóveis, gravatas, automóveis e uma carteira que não cessa de prover a família. Isso para os outros homens.

A minha ideia de pai tem a ver com insetos.

Primeiro, é preciso esclarecer que nem tudo a que chamam mosquito leva mesmo este nome. Nem todo inseto irritante que pica a pele e suga o sangue deve levar este nome. Há diversas espécies e gêneros de animais hematófagos. Os borrachudos, por exemplo, não picam a pele como se tivesse uma agulha na fuça; diferentes, eles mastigam o tecido enquanto sua saliva aplaca a dor que o ferimento causaria. É por causa desse efeito anestésico que só percebemos o borrachudo quando ele já está gordo de tanto sangue sugado. Lento, pesado. Então a palma da mão bate contra a perna esmagando o bicho, uma faixa de sangue no sentido do movimento da mão. É o nosso sangue ali, é o borrachudo, é o sangue do borrachudo, tudo junto.

O mosquito é o que tem uma agulha na cara. Também leva na saliva uma substância anestésica que não nos permite evitá-lo logo que inicia a perfuração em busca do óleo vermelho que utilizará para alimentar-se e para alimentar os seus. Apenas as fêmeas perfuram a pele humana, é de sua natureza. Com essa mistura de sangue humano e suas próprias enzimas digestivas, alimentarão seus filhos e darão à luz centenas de ovos de outros mosquitos. É o sangue de meninos e meninas de bermudas e saias que fazem com que existam mosquitos ainda. Uma praga. Deve haver alguma beleza na vida dos mosquitos.

Maruim é outro bicho ainda. Chegou tarde no sul do país, trazido do norte por caminhões ou navios ou aviões ou por correntes de ar, por nuvens de chuva, pouco importa. São menores que borrachudos e mosquitos, mas não são borrachudos nem mosquitos, mas moscas. Maruins são moscas que rasgam a pele e bebem o sangue humano a largos goles. São tão pequenos que é difícil enxergá-los a olho nu. Mas existem, sentimos a dor que causam com suas dentadas. Não sei se possuem dentes.

Mosquitos, borrachudos, maruins. Sou alérgico aos três, mesmo que signifique pouco ser alérgico. Sou incompetente para lidar com picadas de insetos, sempre fui. O pai me levava na roça para alimentar as vacas, me ensinar a tirar leite das vacas, cortar o mato, o trato, usar o ancinho, a foice, mas eu só tinha as pernas inchadas, a cintura onde a camiseta não cobria, as canelas, as plantas dos pés, seus encimas, os entrededos, tudo doía. Dor forte a de sentir a proteína oleosa do inseto entrar na corrente sanguínea. Como se o anestésico corroesse os dentros e fosse destruindo pele, tecidos, sangue e menino. Os trejeitos magros, o gesto nunca tão rápido como dos dípteros famintos, um sempre curvar-se para a mão alcançar os calcanhares, curvatura servil, sempre olhando para as pernas e para os pés à procura do inimigo, maneira de evitar a dor latejante, o inchaço, o calor da pele machucada. Depois as feridas da coceira, as moscas, o sangue que já não era da extração do óleo vermelho, mas de casca de ferida aberta por unhas sujas e velozes, curtas mas sagazes.

O pai, por seu turno, naquela época e hoje, segue sentado enquanto o mosquito vem, enquanto o borrachudo chega, enquanto maruim se alimenta. Cigarro aceso, café ao lado, havaianas nos pés rudes, as unhas grossas, descascadas, a pele rota, seca, velha. O pai de olhos azuis que viram tão pouco do mundo, que viram mais de sessenta anos de mundo nuns poucos metros quadrados, olha para mim, homem de trinta e cinco, ainda me agachando, ainda me curvando em direção aos pés, mãos à procura da dor e de seu fim, o pai não entende. Tem as pernas marcadas por inúmeros pontos pretos, centenas, milhares de furos e buracos de dente de inseto que ele aceita como um monge. É da natureza dos homens criar os filhos e dar forma ao mundo. Meu pai alimentou-me a mim e a meus irmãos, e na falta de haver bocas abertas esperando comida, como fazem os pássaros filhotes, alimenta os insetos com o sangue que a terra demora a querer aceitar.

Marcelo Labes

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Marcelo Labes

Marcelo Labes é autor de, entre outros, Enclave (Patuá, 2018), livro de poemas finalista do Prêmio Jabuti em 2019 e Paraízo-Paraguay (Caiaponte, 2019), romance, com o qual alcançou a 2a colocação no Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional. Seu novo romance, Três porcos, será publicado em agosto de 2020.