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Nosso perfeccionismo cotidiano

por Henrique Raskin

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“O que sempre fez do Estado o inferno na Terra foi, exatamente, a tentativa do homem de transformá-lo no paraíso” — essa é a frase de Hölderlin que Giovanni Sartori[1] escolhe para eleger um dos principais vícios que se criam em meio à política: o do perfeccionismo. Trata-se de uma confusão entre ideal e real, que se transforma na disposição nociva de buscar a realização do ideal, não para o aprimoramento da realidade, mas em reação a ela. Seria como a versão degenerada do idealismo — que, diferentemente do perfeccionismo, concebe a contemplação do ideal enquanto orientação para lidar com a realidade, e não como um projeto de utopização do mundo, na verdade, impossível.

Giovanni Sartori

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Essa disposição perfeccionista de ignorar a impossibilidade da realização da utopia marca o mundo das ideologias — o contemporâneo, pós-Marx, em que se passa a entender a “Ideia” (dos idealistas) não como algo transcendental, mas como resultado de uma consciência social, de uma infraestrutura econômica de produção. Dividindo a sociedade entre burgueses e proletários, talvez tenha faltado a Marx, no século XIX, a diversidade e pluralidade que marcaram o século XX e que multiplicaram exponencialmente as ideologias, prontas para realizar paraísos na Terra.

O problema do perfeccionismo, portanto, não está em seu idealismo. Está, antes, no processo vicioso de uma ortodoxia que busca a utopização da realidade. É um risco a que todos estamos sujeitos, ainda que não se trate de um equívoco trivial, ou fatalidade. O perfeccionismo é uma escolha, consciente e inconsciente, da busca pela perfeição, a partir da intolerância à imperfeição, à heterodoxia, ao diverso; a partir da concepção de um desenho de mundo que corresponda, integralmente, à utopia.

Não é difícil entender, a partir da concepção de Sartori, por que hoje muitos falam do retorno do fascismo, como uma nova onda internacional. Entre muitos elementos, o programa fascista, como um movimento pró-guerra que surge na Itália em 1919, via no conflito uma oportunidade de revolução social, por meio da censura e da aniquilação daqueles que se opunham a tal projeto.[2] É um projeto a refletir, de modo deturpado, o espírito do progresso, próprio ao mundo moderno e, sobretudo, às primeiras décadas do século XX. Reflete um propósito de “limpeza e ordem”, que Freud[3] havia identificado como “distúrbio da época” e que se converte em movimento político no fascismo e nacional-socialismo.

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Mussolini e os camisas-negras na Marcha de 1922

Há algo atitudinal, no comportamento fascista, que traz à tona a disposição perfeccionista. É, imagino, nesse sentido, que Sartori opõe o perfeccionismo ao bom funcionamento da democracia e que se explica por que, entre os principais inimigos do fascismo, são eleitos os liberais e o socialistas. Os primeiros, pelo pluralismo que promovem e pela concepção que trazem da política como um mal necessário, em vez de uma noção política de construção do bem (“tudo no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado”). Os outros, arrisco, pela própria teoria marxista que tem, em sua base, um princípio dialético de contradição como estrutura do real. Isso pois Mussolini, na Itália, advinha do Partido Socialista Italiano, antes de fundar o Partido Nacional Fascista — o que sugere familiaridades. Hitler, por sua vez, atribuindo a destruição da família, ateísmo, e violação da propriedade privada ao comunismo, praticava muito disso que condenava; na prática, o ódio ao comunismo resumia-se a uma acusação racista de conspiração judaica internacional.

Arrisco, portanto, haver, tal como ocorre frente ao liberalismo, intolerância à concepção de mundo que carrega a contrariedade como fundamento. O fascismo não admite contrariedade, anomalia, exceção, imperfeição. Sustenta-se sobre uma estrutura dualista: a do nós contra eles; a da ordem contra a desordem. Qualquer pluralidade ou ambiguidade desestabiliza e implode a ordem construída que prevê uma só “raça”, uma só liderança, uma Welthauptstadt Germania — capital do mundo. Portanto, é inadmissível, ao fascista, qualquer inconsistência na utopia materializada.

Modelo da Welthauptstadt Germania hitlerista, de Albert Speer

Sob esse raciocínio, quando se acusa que o fascismo tenha voltado, talvez se trate, sobretudo, do retorno desse sentimento perfeccionista em um momento de crise, fragmentação e contradições, do que simplesmente de um movimento político tal como se viu nas décadas de 20 e 30. Trata-se da proliferação de crenças frágeis e incapazes de conceber o mundo como ele é, em sua diversidade, desuniformidade e contrariedades.

Tais crenças frágeis, estruturantes do fascismo e capazes de provocar perseguições, campos de extermínio e destruição generalizada, no contexto da II Guerra Mundial, hoje têm tomado nova forma, que parece superficial, mas que tem preocupado pelo seu potencial disruptivo e alienante: o fenômeno das fake news. Essa nova forma de comunicação e de tentativa de construção de um mundo perfeccionista, via redes sociais e aplicativos de comunicação, tem papel análogo ao que teve o cinema na década de 30 — igualmente disruptivo e alienante.

Por isso, “notícias falsas” é uma tradução supérflua e insuficiente do que tem se propagado atualmente. Traduzir dessa maneira seria como igualar o cinema nazista a mera propaganda política. Ambos são mais do que isso: são meios utilitários de reprodução e de validação de crenças frágeis que conseguem sustentar-se por meio da fraude. São ferramentas de construção e retroalimentação de um sentimento perfeccionista — que, portanto, edifica projetos utópicos, provoca perseguição, mascara as contrariedades e ambiguidades existentes e encontra explicações, das mais absurdas, para sustentar visões de mundo insustentáveis. São fraudulentas, mal-intencionadas e, por isso, têm provocado uma sensação de retorno do fascismo.

Por isso, não se pode, apenas, culpar alguém ou alguma máquina pela produção de fake news, ou meramente proibi-las, como se dessa maneira fosse possível impedir a ascensão do fascismo. O fascismo tem voltado, não pelas narrativas fraudulentas propagadas, apenas, mas pela disposição de boa parte da população mundial em lê-las, aceitar acreditar no que elas propagam e, voluntariamente, compartilhá-las em suas redes sociais e com seus contatos no telefone. Tem voltado porque, ao que tudo indica, novamente, ressurgiu a aversão à realidade — imperfeita, heterodoxa, diversa e plural, trazendo de volta o perfeccionismo como vontade generalizada de limpeza, ordem e consistência. Parafraseando Thomas Sowell, essa demanda apenas a mentira satisfaz.

Thomas Sowell

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Notas:

[1] Sartori, G. O que é Democracia? Curitiba: Atuação, 2017.

[2] Paxton, R. A Anatomia do Fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

[3] Freud, S. O Mal-Estar na Civilização. In: Obras Completas, v. 18: O Mal-Estar na Civilização, Novas Conferências Introdutórias e Outros Textos (1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

Henrique Raskin

Henrique Raskin é Professor e Coordenador no curso de Relações Internacionais na Universidade Positivo e Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.