Política

O festival e a consciência política dos jovens

por José Eduardo Faria

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A confusão armada pelo presidente Jair Bolsonaro e sua turma por causa dos protestos ocorridos no Lollapalooza Brasil, um festival de música alternativa, deu a dimensão do receio que eles têm das novas gerações. O que mais os preocupou não foi o que aconteceu no primeiro dia do evento, quando a cantora Pabllo Vittar ergueu uma bandeira em favor do ex-presidente Lula, pré-candidato na eleição de outubro, deflagrando com isso uma onda de xingamentos do público jovem contra o inquilino do Palácio do Planalto.

Foi, isto sim, o que aconteceu no segundo dia, quando o cantor Emicida aproveitou o momento para promover a campanha pelo voto jovem, incentivando adolescentes a tirarem seu título de eleitor para votarem contra Bolsonaro, com o objetivo de impedir sua reeleição. Após o protesto do primeiro dia, um partido bolsonarista recorreu ao Tribunal Superior Eleitoral, alegando que o ato de Vittar era ilegal, por configurar campanha eleitoral antecipada. Como um ministro da corte acolheu o recurso, tomando uma decisão desastrosa e inconstitucional, a ponto de impor uma descabida censura à liberdade de expressão, o caso teve uma enorme repercussão negativa em todo o País. Foi justamente por isso que a fala de Emicida causou enorme impacto junto ao público jovem, deixando o bolsonarismo apavorado com o risco de adolescentes correrem para tirar seu título de eleitor.

Ainda que tosco e ignaro, o presidente da República, que sempre desqualificou a juventude brasileira por considerá-la simpatizante de ideias “marxistas”, passou recibo. Ao perceber o quanto o voto dos adolescentes que pediriam ao TSE a emissão de seus títulos de eleitor poderia dificultar sua reeleição, ele exigiu do partido que o apoiava que voltasse atrás e desistisse o mais rapidamente possível da ação. Se as grandes ansiedades dominam os espíritos, qual é o motivo que leva as novas gerações a terem horror a um dirigente que despreza seus anseios, que faz pouco caso de seus valores e que tenta reiteradamente desqualificá-las?

O problema por trás desta questão não é novo. Ele traz ao debate atual uma bela e instigante conferência proferida por Celso Furtado no Instituto Nacional de Estudos Superiores, em São Paulo, há exatas seis décadas.[1] Mais precisamente, no dia 25 de janeiro de 1962. Ou seja, cerca de 26 meses antes dos heróis idolatrados por Bolsonaro darem um golpe contra a democracia constitucional e instituírem uma ditadura militar sob a justificativa de impedir a ascensão de comunistas e marxistas — sempre eles — ao poder. Os anos de 1960 testemunharam assim o fracasso da primeira experiência democrática em que se destacavam alguns componentes, como lembra José Murilo de Carvalho.[2] Um deles era o crescente ingresso dos brasileiros no processo eleitoral. Na década de 1930, por exemplo, só votavam cerca de 2 milhões de brasileiros — três décadas depois, o número já era de 12 milhões. Outro componente foram as mudanças institucionais das Forças Armadas. Se na Primeira República, entre 1889 e 1930, elas foram fatores de instabilidade, após a revolução de 30 passaram a tutelar governos e a se arvorarem em poder moderador, interferindo em 1945, em 1955, em 1961 e em 1964.

A palestra de Celso Furtado ocorreu entre as duas últimas interferências.  “Tornou-se aguda a consciência de que o País caminha para transformações de grande alcance. E todos, ou quase todos os jovens, desejam compreender o que está ocorrendo, pretendem participar conscientemente dessas transformações, querem assumir uma posição ativa e poder contribuir para moldar um porvir que lhes pertença por excelência. A juventude está exigindo de todos nós definição clara de posições: identificação corajosa de objetivos e métodos na luta pela conquista do futuro”, disse Furtado, logo de saída.

Uma das exigências das novas gerações envolvia o alto custo social do desenvolvimento que ocorrera na década de 1950, que não beneficiou três quartas partes da população brasileira. “Na ausência de uma política consciente que preservasse à ação do Estado o seu caráter social, improvisou-se, em nome do desenvolvimento, uma estrutura de subsídios que muitas vezes premiou investimentos supérfluos ou aqueles que vinham permitir uma concentração ainda maior em mãos de grupos privilegiados”. Outra exigência envolvia distorções na vida político-administrativa.  Trazida pelo desenvolvimento, a ampliação da ação do Estado não foi acompanhada de reformas estruturais no próprio Estado, aumentando enormemente o coeficiente de desperdício, de ineficiência e de apropriação ilícita de capital à custa da parte mais pobre da população.

“Compreendo a revolta da juventude diante desse quadro. Aí estão supostos representantes do povo eleitos pelos contratistas de obras, ainda está a aliança da máquina feudal com as verbas orçamentárias produzindo parlamentares que vão votar outras verbas com fim idêntico.  Poder-se-ia objetar que antigamente era pior: as eleições eram formais e uma oligarquia decidia por conta própria o que se chamava de vontade do povo. Mas essa objeção já não vale para os jovens de hoje”, afirmou Furtado, descrevendo um cenário que hoje é protagonizado por pastores evangélicos que intermedeiam no MEC verbas que deveriam ir para a formação das novas gerações e por um presidente da Câmara que quer revogar os mecanismos de compliance impostos pela Lei das Estatais, sob a justificativa de que eles são tão rigorosos que só “arcebispos” teriam a pureza necessária para presidir a Petrobrás.

“No fundo de nossa intranquilidade presente encontraremos esta verdade simples: sabemos onde estão os erros de nosso desenvolvimento desordenado, sabemos que está a nosso alcance poder erradicá-los ou minorá-los e sabemos que temos consciência disso. Por isso somos responsáveis e por isso nos sentimos intranquilos”, prosseguia Celso Furtado. O trecho mais original da conferência é aquele em que trata da inclinação dos jovens pelo marxismo — abordagem que, “em qualquer de suas variantes, permite traduzir o diagnóstico da realidade social em normas de ação”. O que é o marxismo da juventude brasileira? — indaga Furtado. Ele pode ser visto em três atitudes — responde. A primeira é o reconhecimento de que a ordem social “abriga muitos parasitas e ociosos, miséria da grande maioria”. A segunda é o reconhecimento de que a realidade social é histórica — portanto, em permanente mutação. A terceira atitude é o reconhecimento de que é possível identificar os fatores estratégicos que atuam no processo social, abrindo caminho para uma política consciente de reconstrução social.

Por implicar uma ação política, esta última resulta de uma posição otimista. “Se pretendemos manter um diálogo fecundo com a nova geração, devemos entender-nos sobre o que realmente é fundamental”. Em primeiro lugar, perguntar quais são os objetivos irredutíveis por constituírem os elementos últimos de nossa concepção de vida. Em segundo lugar, tomar todo cuidado para não confundir meios com fins ou transformar nossos fins naquilo que para outros são apenas meios. Em terceiro lugar, valorizar liberdade e desenvolvimento econômico. Em sentido estrito, o desenvolvimento econômico é um meio. Mas que também pode se constituir num fim em si, numa forma de pensar da nova geração, de disseminar a confiança de que o alargamento das bases materiais da vida social e individual é condição essencial para a plenitude do desenvolvimento humano.

Assim, definidos os objetivos, com base na consciência do caráter profundamente anti-humano do subdesenvolvimento, é possível passar para o campo da ação. Mas como transformar em normas de ação desejos e aspirações humanistas? Se a tarefa mais imediata é organizar a opinião pública para que ela se manifeste organicamente, conclui Furtado, caberia aos jovens e aos estudantes, entre outros, “iniciarem o debate franco daquilo que esperam (não só) dos órgãos públicos do País”, mas, também “de seu próprio destino”.

Publicada na íntegra pelo Estadão, a conferência é densa, clara e longa, tomando quase duas páginas. Há parágrafos que parecem ter sido escritos levando em conta os esquemas de corrupção na compra de vacinas por um Ministério da Educação chefiado por um general tão medíocre quanto despreparado, em licitações de ônibus escolares com valores superestimados e em concessões de cargos públicos de confiança a gente sem qualificação para ocupá-los, indicada pelo Centrão. Conceitualmente precisa, a fala de Furtado não apenas respeita as novas gerações, como também propõe um diálogo com elas. Vai a fundo na análise das confrontações ideológicas, especialmente na apreciação do marxismo-leninismo. Acima de tudo, em vez de desqualificar os jovens com palavrões e com o epíteto de comunistas, como faz o inquilino do Palácio do Plano e sua turma, a conferência de Furtado mostra a falta que, num cenário governamental de generais cavilosos, áulicos semialfabetizados e dirigentes despreparados, faz de gente capaz de pensar o Brasil com sofisticação, lucidez, autocrítica e projeto. Quem diria que artistas de um festival de rock alternativo, heavy metal, punk rock, grunge, além de performances de comédia e danças, nos mostrariam essa lacuna? Quem diria que deixariam Bolsonaro apavorado com a inteligente reação dos jovens que sempre desprezou?

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(GettyImages)

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Notas:

[1] Ver Nordeste: novos depoimentos no II Ciclo de Estudos, in O Estado de S. Paulo, edição de 26 de janeiro de 1962.

[2] Cf. José Murilo de Carvalho, Fim de um experimento democrático, in 130 anos: em busca da República, Edmar Bacha, José Murilo de Carvalho, Joaquim Falcão, Marcelo Trindade, Pedro Malan e Simon Schwartzman organizadores, Rio de Janeiro, Intrínseca/Casa das Garças, 2019.

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José Eduardo Faria

José Eduardo Faria é Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).