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Contemplando o jardim secreto: a beleza da matemática

A partir do nada eu criei um novo e estranho universo
Janos Bolyai

por Marcel Novaes

Em seu ensaio A Mathematician’s Lament [1], Paul Lockhart propõe que imaginemos uma sociedade na qual a música é ensinada nas escolas com base apenas em partituras. Os estudantes devem conhecer as notas e as claves, entender as escalas e os ritmos e decorar os nomes das principais peças dos grandes autores, mas nunca chegam a ouvir nenhuma música. A audição é considerada uma atividade muito avançada e acredita-se que as crianças não conseguirão entender algo tão complexo se não tiverem primeiro dominado perfeitamente a linguagem e os conceitos básicos da música.

Qualquer um reconhece o absurdo da situação descrita. É óbvio que a fruição musical por meio da audição é algo acessível a todos, enquanto que a correspondente formalização por meio de códigos deve ser deixada para aquela pequena fração de pessoas que realmente se interessa por isso. Da mesma maneira, seria considerado insano quem sugerisse ensinar às crianças os nomes das cores e os tipos de pincéis sem permitir que pudessem pintar e rabiscar livremente.

Entretanto, é exatamente essa a situação do ensino de matemática. Formalismo, definições, regras e nenhuma fruição. Nenhuma criatividade. Nenhum contato com a verdadeira matemática. Mas o que é a verdadeira matemática? Ora, assim como a música e a pintura, é uma atividade artística.

O que é a verdadeira matemática? Ora, assim como a música e a pintura, é uma atividade artística.

Para nos convencermos disso, nem precisamos nos lembrar das conexões histórias entre a matemática e as outras artes. Não que elas faltem. Poderíamos mencionar a relação próxima entre o uso da perspectiva na pintura e o desenvolvimento da geometria projetiva. Ou a importância da proporção na escultura e na arquitetura. Ou o impacto que a ideia da quarta dimensão teve sobre o cubismo. Ou poderíamos ainda olhar para os desenhos de Escher, que contêm faixas de Möbius, tesselagens periódicas e geometrias não-euclidianas [2]. Mas basta prestar atenção à própria matemática e àqueles que a fazem.

Convém dar ouvidos, por exemplo, a G. H. Hardy, um dos maiores matemáticos da primeira metade do século XX, professor em Cambridge e em Oxford. Em seu clássico ensaio A Mathematician’s Apology [3], Hardy escreve: “Um matemático (…) não tem outro material para trabalhar além de ideias (…) Os padrões [que ele cria], assim como os do pintor ou os do poeta, devem ser belos; as ideias, como as cores e as palavras, devem se encaixar de maneira harmoniosa. A beleza é o primeiro teste: não há lugar permanente no mundo para matemática feia”.

Vejamos como David Mumford, medalhista Fields, se recorda de uma palestra que assistiu quando jovem: “[aquilo] me enfeitiçou. Quando [o palestrante] pronunciava as palavras ‘variedade algébrica’, havia uma certa ressonância em sua voz que sugeria claramente que ele estava contemplando um jardim secreto. Eu imediatamente quis ser capaz disso. Foram 25 anos de luta para tornar esse mundo tangível e visível”.

A sensação de ter acesso a uma verdade profunda, ao mesmo tempo pessoal e universal, que precisa ser revelada; a necessidade de criar uma obra que expresse essa verdade; o reconhecimento de que tal obra é, de alguma maneira, bela (o prodígio indiano S. Ramanujan dizia que equações não significavam nada para ele a menos que expressassem “o pensamento de Deus”). Se não estamos falando de arte, de que estamos falando?

Que a matemática seja também uma espécie de ciência, com regras rígidas e uma exigência inegociável de consistência, apenas a torna ainda mais interessante. Um matemático criativo pode inventar os fractais ou a transformada de Fourier. Pode decidir que sentido dar a séries divergentes ou a números imaginários. Mas, uma vez colocadas no mundo, essas criaturas ganham vida própria e é preciso estudá-las para desvendar todos os seus segredos.

A essência da matemática é a liberdade, disse Georg Cantor

Janos Bolyai recebeu um dia uma carta de seu pai que dizia: “Você não deve seguir esse caminho (…) Eu atravessei essa noite sem fim, que extinguiu a luz e a alegria da minha vida (…) aprenda com meu exemplo”. Em sua resposta, o jovem de 21 anos declarou: “Descobri coisas tão maravilhosas que fiquei fascinado, e seria uma eterna má sorte se elas se perdessem (…) posso dizer apenas isto: a partir do nada eu criei um estranho e novo universo”. O tema em questão era o postulado de Euclides sobre retas paralelas, e o resultado do trabalho de Bolyai foi a criação da geometria não-euclidiana. Algum estudante, seja no ensino primário, secundário ou universitário, teve algum dia ao menos um vislumbre que seja do drama humano por trás da matemática? Pior: quantas pessoas algum dia enxergaram a atividade matemática como algo que requer imaginação e criatividade? Todo mundo já fez um desenho, tirou uma fotografia, inventou uma musiquinha, contou uma história. Mas quem já tentou desenvolver uma ideia matemática própria?

Recentes reformas educacionais pretendem aumentar a importância e a carga horária da disciplina de matemática. Querem dar uma resposta ao fato vergonhoso de que o Brasil ocupa os últimos lugares nas avaliações mundiais de desempenho de estudantes nessa área. Louvável. Esforço semelhante ocorre com a disciplina de língua portuguesa. Mas pelo menos ninguém ignora que a literatura é uma atividade criativa, e em aulas de redação os alunos escrevem seus próprios textos.

Em comparação, a aula de matemática consiste em eterna repetição. “Eis aqui uma definição. Eis aqui uma regra. Aplique a regra a estes vinte problemas parecidos. Vai cair na prova.” Este triângulo é agudo, enquanto aquele é obtuso – ou será escaleno? A obviedade de que “a vezes b” é igual a “b vezes a” é chamada comutatividade. A fração em que o numerador é menor que o denominador é dita própria. O inverso do seno é a cossecante. Podemos culpar os alunos que acham o assunto chato? Quem seria capaz de enxergar a imaginação e a criatividade por trás dessa cortina de fumaça?

De onde veio uma dada definição? Quem a criou? Por que essa pessoa achou que isso era importante? Por que não definimos de outra forma? Será que a regra apresentada é a melhor maneira, é o modo mais elegante, mais belo, de abordar essa situação? Haverá outro modo? Se deixado por si mesmo, como o aluno resolveria aquele problema? Que relação esse assunto tem com aquele outro assunto? Perguntas como essas não costumam aparecer. Em vez disso, temos salas e mais salas de estudantes memorizando “mais ou menos raiz quadrada de b ao quadrado menos quatro ac” sem terem a mínima ideia do que isso significa.

“A essência da matemática é a liberdade”, disse Georg Cantor. Se apresentarmos aos alunos temas interessantes, eles terão suas próprias ideias naturalmente. Vão aprender fazendo. Espera-se que saibam dar respostas, mas é muito mais importante saber fazer perguntas. Os números primos, a quadratura do círculo, os paradoxos de Zenão, os sólidos platônicos, a raiz quadrada, a noção de infinito, a simetria dos mosaicos árabes, o teorema das quatro cores, são tantos assuntos fascinantes. Nenhum aumento de carga horária, nenhuma reforma curricular, vai fazer diferença se não permitirmos que os estudantes possam se relacionar com ideias matemáticas de forma pessoal e passional, como se relacionam com outras manifestações artísticas como músicas, fotografias e poemas.

Marcel Novaes é professor de Física na Universidade Federal de Uberlândia e autor de “Pizza com Gauss, rosquinhas com Euler, e outros 20 tópicos deliciosos de física-matemática”.

[1] Paul Lockhart, A Mathematician’s Lament. Bellevue Literary Press, 2009
[2] Doris Schattschneider, The Mathematical Side of M. C. Escher. Notices of the American Mathematical Society 57(6), 2010.
[3] Godfrey H. Hardy, A Mathematician’s Apology. Heritage Publishers, 2017