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Crise nas Humanidades: por que o trabalho de João Cezar de Castro Rocha importa

Photo by Stanislav Kondratiev

por Hans Ulrich Gumbrecht*

Em seu livro mais recente, Leituras Desauratizadas: Tempos Precários, Ensaios Provisórios, João Cezar de Castro Rocha fala sobre alguns dos autores e temas que se tornaram muito importantes em seu trabalho ao longo das últimas duas décadas: Machado de Assis e Shakespeare, jornalismo cultural e xadrez, museus e o atual estado da Crítica Literária (um dia eu adoraria vê-lo escrever sobre futebol, com a paixão e a competência que conheço de nossas – até agora – conversas privadas).

No entanto, apesar das perspectivas inovadoras que ele extrai dos temas que analisa, o livro é, acima de tudo, uma busca por novas formas – mais precisamente, uma busca e um experimento sobre novas formas de escrever por meio das quais a Crítica Literária e as Ciências Humanas em geral poderiam, no futuro, atingir leitores de fora do ambiente acadêmico e, assim, fazer uma contribuição (talvez decisiva) para sua própria sobrevivência institucional e intelectual.

Tanto o título do livro como a introdução de Valdir Prigol descrevem exatamente essa intenção: Prigol identifica algumas das técnicas e estratégias discursivas com as quais João Cezar, como autor, traz o leitor para dentro de suas análises e argumentos. Ao mesmo tempo, o título anuncia como isso poderá acontecer – se é que acontecerá – em um ambiente histórico no qual parecemos ter perdido todas as certezas tradicionais (“tempos precários”), no qual não acreditamos mais na condição quase transcendental dos objetos culturais que apreciamos e respeitamos (“leituras desauratizadas”) e no qual, por todas essas razões, tudo o que escrevemos ou dizemos tem um caráter provisório (“ensaios provisórios”).

Mas todos esses conceitos talvez não sejam fortes e específicos o suficiente (afinal, há regras de modéstia autoral) para expressar de maneira aprofundada por que a prática de João Cezar é muito mais do que só mais uma tentativa desesperada – e desesperançosa – de atribuir ao nosso trabalho nas Ciências Humanas uma relevância de que muito precisamos.

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João Cezar e eu temos uma longa história. Eu o conheci como estudante de graduação no início da década de 1990, quando apresentei um seminário sobre os primeiros trabalhos de Heidegger na UERJ, onde ele cursava o programa de Literatura Comparada enquanto ganhava seu sustento como jogador de xadrez profissional. Algumas semanas depois, já de volta a Stanford, recebi uma transcrição de minha fala que me pareceu claramente superior à minha apresentação, com uma simples pergunta de João Cezar pedindo minha autorização para publicá-la nos então lendários Cadernos da Pós, dos quais ele era editor. Dada a qualidade do texto, hesitei um pouco, perguntando-me se um “sim” para a publicação com o meu nome seria um favor para ele, e, então, concordei sob a condição de que conversaríamos na minha próxima visita ao Rio. Este foi o começo de quatro anos realmente brilhantes de João como primeiro aluno sul-americano no programa de doutorado em Literatura Comparada da minha universidade – uma época que muitos dos meus colegas, e inclusive o então reitor de Stanford, Gerhard Casper, ainda lembram com muito carinho.

Nosso novo aluno nos mostrou o quanto todos nós tínhamos para aprender não só com os textos clássicos das literaturas sul-americanas, mas, acima de tudo, com a vida intelectual contemporânea do subcontinente. Ao mesmo tempo, e em todos os sentidos da palavra, ele era o amigo mais generoso entre seus colegas – e, mesmo assim, sempre preocupado e agradecido por qualquer gesto de generosidade que recebia.

Um dia, João Cezar me perguntou o que ele poderia fazer para compensar o que havia recebido – e minha resposta informal foi que, se ele estava feliz com o que fiz por ele, deveria fazer o mesmo pelos seus próprios alunos um dia. Nós dois nunca esquecemos esse diálogo, mesmo em épocas mais difíceis da nossa amizade, e isso se tornou muito emblemático para mim, porque hoje eu vejo em João uma generosidade (a única “virtude” com que me importo) que é visceral, autêntica e, principalmente, se estende além de seus alunos, atingindo seus leitores. Em outras palavras: há uma bela falta de qualquer tipo de “estratégia” ou “boa vontade pedagógica” em suas tentativas de despertar um novo interesse pelo nosso trabalho.

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Mas o que exatamente eu quis dizer quando escrevi que precisávamos de uma descrição diferente (“menos modesta”) da atual situação cultural sobre a qual o impulso de generosidade de João tem impacto? Em primeiro lugar, e em referência aos “tempos precários” em que estamos trabalhando, acredito que chegamos a um limiar dramático no qual o legado do Iluminismo que tem acompanhado as culturas ocidentais por dois séculos como horizonte normativo viável parece ter ficado para trás, deixando de ser pertinente para lidarmos com novos desafios políticos e existenciais.

Hoje, parece não ser mais suficiente citar Kant, Hume ou Rousseau como se eles tivessem “soluções” para nós – e, mesmo assim, precisamos admitir que não podemos substituí-los. Ao mesmo tempo – e creio que João Cezar está entre os colegas mais avançados no enfrentamento deste segundo problema (especialmente na maneira como repensa a obra de Shakespeare) –, ficou evidente que a visão de mundo histórica, da maneira como moldou nossa relação com o passado, o presente e o futuro, deixou de ser suficiente para nos fornecer experiência, orientação e projetos para um futuro no qual tantas ameaças parecem lentamente se aproximar da humanidade.

Finalmente – e talvez isso se aplique apenas à classe média global em expansão –, as novas tecnologias eletrônicas, juntamente com outras mudanças em nossas vidas, têm nos oferecido um nível de escolha e liberdade individual que parece estar se transformando na sobrecarga existencial de um “universo de contingência” ao qual reagimos com o desejo de nos prender a uma certeza que não temos – mas que uma nova geração de líderes perigosamente carismáticos está feliz em oferecer.

O legado do Iluminismo que tem acompanhado as culturas ocidentais por dois séculos parece ter ficado para trás

Uma das opções que vejo em nosso presente pós-iluminista e pós-histórico, sem soluções certeiras (e muito menos “ideologias”), é uma redescoberta, tanto no dia a dia como no pensamento contemporâneo, das dimensões físicas da vida humana; uma redescoberta que se estabelece em contraste e tensão com a condição extrema de desmaterialização e racionalidade quase matemática que tem nos dominado com a progressiva digitalização de nossas vidas.

Ao menos entre os intelectuais, acabamos nos tornando mais interessados nos aspectos de nossa existência que não podem ser totalmente justificados pela razão. O que desde a emergente era da Racionalidade pós-1700 havia se tornado a aura excepcional da “experiência estética”, na qual mente e corpo convergiam, agora voltou à esfera comum – e, assim, perdeu sua aura tradicional.

Voluntária ou involuntariamente, hoje encontramos camadas estéticas em praticamente todos os fenômenos e situações do cotidiano – na comida, na moda, nos esportes, em nosso comportamento, na política e nos amplos horizontes do design de produtos.

Para disciplinas como a Crítica Literária, a História da Arte e a Musicologia, essa “desauratização” implica uma dissolução do que costumava ser o limite de seus “campos” e, também, uma nova incerteza sobre seus conteúdos e seu status. Mesmo em trabalhos individuais ou coletivos de alta qualidade intelectual, não podemos mais ter certeza de sua posição institucional – para não falar de sua possível “utilidade”.

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Como podemos conseguir – e nos atrever a – criar uma aproximação, como tem feito João Cezar, com o que está além dos limites das Ciências Humanas acadêmicas a fim de atrair leitores de fora do nosso mundo profissional com verdadeira generosidade? Hoje, essas tentativas estão acontecendo, como diz o título do último livro de João, em um contexto no qual nossas perguntas, nossos discursos e nossas possíveis reivindicações de respostas estão mais “precários” do que nunca, pois estamos cada vez mais cientes de que as Ciências Humanas e a Crítica Literária perderam seu status e prestígio tradicionais na esfera pública.

Surpreendentemente, e confirmando uma afirmação de Friedrich Hölderlin – amigo de Hegel e possivelmente o nome mais relevante na história da poesia alemã – de que nos “momentos mais ameaçadores da nossa existência, visões de um resgate aparecerão”, é possível perceber o surgimento de duas vertentes de um novo interesse em nosso trabalho intelectual.

Se na era eletrônica, com seu ritmo cada vez mais acelerado de divulgação de notícias, a função da mídia impressa, incluindo jornais e revistas diários, deixou de ser a de nos “informar” e nos “manter atualizados”, então os textos de opinião e as seções culturais – isto é, textos de contemplação e reflexão – devem ter adquirido uma importância maior e atraído um novo interesse.

Estamos cientes de que as Ciências Humanas e a Crítica Literária perderam seu status e prestígio tradicionais na esfera pública

Mas também vemos, ao menos nos programas das faculdades de algumas das principais universidades americanas, que estudantes dos campos das “hard sciences” (Ciências Exatas), em cursos como Administração, Direito, Medicina e Engenharia Eletrônica, de repente passaram a adicionar ao perfil de seus estudos enfoques secundários em diferentes áreas das Ciências Humanas, especialmente Filosofia e Literatura Comparada. E dizem que fazem isso não por um desejo de “compensação” e “distração”, mas porque estão convencidos de que a participação e a aquisição de competência nesse estilo intelectual tão diferente lhes deixará mais competentes e eficientes em suas práticas profissionais futuras. Em outras palavras: ao mesmo tempo que tememos o desaparecimento institucional das Ciências Humanas, um novo e inesperado fascínio pelo que fazemos começa a surgir.

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Ninguém tem receitas de como podemos reagir a esse novo interesse que vem de fora das Ciências Humanas, mas eu certamente não conheço um colega que tenha ido tão longe nessa reação quanto João Cezar de Castro Rocha com a generosidade autêntica dos seus experimentos discursivos.

Para concluir, gostaria de enfatizar que suas Leituras Desauratizadas tratam muito mais do próprio processo de pensamento, reflexão e contemplação ativa (secular) do que de possíveis resultados. Muitas – se não a maioria – das suas posições permanecem profundamente (e deliberadamente) ambíguas, após ter se exposto à grande complexidade de certos fenômenos abordados, porque ele entendeu que um dos raros privilégios das Ciências Humanas é precisamente a não obrigação de atingir conclusões completas e definitivas.

Ao mesmo tempo que tememos o desaparecimento institucional das Ciências Humanas, um novo e inesperado fascínio pelo que fazemos começa a surgir

São particularmente interessantes, comoventes e oportunas, nesse sentido, suas páginas sobre o Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, nas quais, longe de abrir mão do senso crítico, ele se recusa a formular um veredito final negativo sobre o patriotismo ultrapassado que costumava permear suas exposições. Gostei de uma ambiguidade estruturalmente semelhante entre a ironia amistosa com que João Cezar comenta a persistente recusa de Gary Kasparov, “o maior jogador de xadrez de todos os tempos”, em reconhecer sua derrota para um programa de computador e a própria melancolia de João Cezar em relação a essa derrota. Até mesmo o que possivelmente é a maior conquista do seu trabalho intelectual até o momento, a tentativa de um diálogo entre o mundo do teatro de Shakespeare e o legado das culturas sul-americanas, condensada em exatamente cem páginas de Leituras Desauratizadas, pertence ao gesto e estilo intelectual que prioriza o processo sobre os resultados. Como leitores, nos tornamos parte desse diálogo como uma genealogia potencialmente infinita, sem sermos designados a um “lugar seguro” em termos éticos e, até, ideológicos.

Mais tarde, em minha própria trajetória intelectual, ou, para ser mais preciso, após o final de sua articulação institucional devido à minha aposentadoria, João Cezar me convenceu de que a generosidade de iniciar movimentos intelectuais e reações de ressonância sem saber para onde isso nos levará é a única opção a ser buscada pelas Ciências Humanas em geral e a Crítica Literária em particular em seu presente precário e inevitavelmente provisório. E é por isso que o trabalho de João Cezar importa – não apenas para mim.

*Tradução: Ana Beatriz Fiori

Hans Ulrich Gumbrecht é formado em Teoria Literária e transita por áreas como filosofia, história cultural, literatura e epistemologías. É professor de Literatura Comparada da Universidade de Stanford (EUA).