História

Duzentos anos depois, Visconde de Cairu parece ser mais sábio do que antes

A série 3 x 22 é uma parceria entre a Universidade de São Paulo, o Instituto CPFL e o Sesc-SP que busca promover o debate histórico, artístico, cultural e político em torno do Bicentenário da Independência do Brasil e do Centenário da Semana de Arte Moderna a serem comemorados em 2022. Como parceiro do Instituto CPFL, o Estado da Arte promoverá uma série de artigos, podcasts, textos clássicos e entrevistas dedicados a reflexões sobre temas nacionais. 

por Vinícius Müller

Entre os tantos obstáculos enfrentados por aqueles que se debruçam sobre a História, há um, recorrente, que nos remete à dificuldade de estabelecermos um ponto de partida que justifique e dê sentido à trajetória que queremos reconstruir. Sentido, inclusive, é o termo usado por Caio Prado Jr em Formação do Brasil Contemporâneo (São Paulo: Brasiliense, 2007. Edição Original: 1942) para identificar aquilo que enxergava como sendo algo como um DNA da História brasileira. Para ele, em uma abordagem que misturava uma linearidade e uma temporalidade cíclica, a trajetória brasileira iniciara com a chegada dos portugueses em 1500. Este início conteria em sua própria estrutura e coerência aquilo que justificaria nossas dificuldades de longa duração com o desenvolvimento. A predominância de um sistema econômico amparado na exportação de produtos primários que se sucederiam, ao longo do tempo, em uma sequência descrita por Prado Jr. como o ciclo do pau-brasil, o ciclo da cana, o ciclo do ouro, e assim por diante. Exportação de matérias-primas, o sentido, formado por uma espiral de ciclos, em uma análise francamente inspirada na lógica hegeliana e marxista. 

Anos depois de Caio Prado Jr., Celso Furtado, em seu Formação Econômica do Brasil (São Paulo: Cia das Letras, 2007. Edição Original:1958), resgata a tese central do historiador paulista e a aprofunda com seus conhecimentos mais específicos em Economia. Aponta, por isso, que a ‘grande empresa mercantil’ criada pelos portugueses em terras tupiniquins e voltada à produção e exportação de produtos primários teria transferido partes muito significativas da riqueza produzida no espaço brasileiro à metrópole, fato comprovado, para Furtado, pela baixa acumulação e circulação de riqueza no Brasil colonial. Ou seja, para além da exclusividade metropolitana sobre a colônia, o próprio fundamento daquilo que os portugueses aqui fizeram – produzir e exportar matérias-primas para o comércio europeu – estaria na origem de nossa baixa capacidade de acumulação e de desenvolvimento.

Estas visões respectivas de Prado Jr. e Furtado, combinadas, criaram uma síntese e uma justificativa para nosso (sub) desenvolvimento e passaram a ser, mais do que uma hipótese sobre nosso passado, algo como um diagnóstico sobre nosso relativo atraso. E como deve ser um diagnóstico, foram seguidas por receitas e prescrições sobre o que deveríamos fazer para, enfim, acelerar nosso passo rumo ao desenvolvimento: em resumo, industrialização liderada pelo Estado e voltada para o mercado interno.

Não que a leitura dos dois autores seja dispensável. Ambos deram contribuições fundamentais para o entendimento sobre a nossa História, principalmente a Econômica, mas também social e política. E, compreensivelmente, viraram referências para quem, a partir deles, formulou propostas de superação do atraso e desenvolvimento. A segunda metade do século XX foi um palco para testes e propostas políticas que incluíam o diagnóstico de Prado Jr. e Furtado em suas premissas. Além disso, a interpretação dos dois autores tangenciava outro debate, ocorrido século antes no país e que agora, às vésperas do bicentenário da independência, nos serve como parâmetro de certa revisão de nossa História. 

Durante a primeira metade do século XIX, precisamente entre 1808 e 1844, debate semelhante ocorrera, opondo os partidários de certo liberalismo econômico aos defensores do protecionismo industrial.  Isso porque desde 1808, ano do Decreto de Franquia dos Portos pelo então Príncipe Regente D. João, a perspectiva liberal, fosse comercial ou produtiva, se consolidara como aquela que representava os interesses mais proeminentes da economia nacional, a dos grandes produtores e exportadores agrícolas. Também, em complemento, os interesses dos britânicos, já que como exportadores de produtos industrializados ao Brasil, não só se beneficiavam com a abertura da economia, mas também com tarifas preferenciais das mercadorias britânicas no mercado português, consolidadas pelos acordos de 1810 e confirmadas pela renovação dos acordos de 1827. 

Esse liberalismo, apontado por muitos como a origem do relativo atraso industrial brasileiro, foi tema de debate e refutação durante as décadas seguintes à Independência de 1822. Ante a esse liberalismo tupiniquim, representante dos interesses ligados aos exportadores de matérias primas, se colocava o protecionismo industrial, que nos daria a oportunidade de fazer um ‘catching up’ frente às nações então mais desenvolvidas. Essa oposição, debatida em outros países e representada em seu máximo pela obra do economista germânico Friedrich List (Sistema Nacional de Economia Política, de 1841) teve seu momento de ápice no Brasil com a aprovação da Lei ou Tarifa Alves Branco em 1844. Segundo o próprio Furtado, a Lei de 1844 transformou o Brasil no país mais protecionista do mundo. 

Se, para o lado protecionista, as posições de List foram as inspirações, o lado liberal amparava-se nas ideias que, no Brasil, eram representadas por José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu. Leitor entusiasmado de Adam Smith e Thomas Malthus e, de certa forma, antecipador das teses sobre as Vantagens Comparativas de David Ricardo, o baiano Cairu esteve entre os mais célebres defensores das medidas liberais de 1808 e dos acordos com a Grã-Bretanha de 1810. E por isso, é visto como o ‘maldito’ que, ao representar os interesses dos exportadores de produtos primários por meio de sua defesa quase intransigente do liberalismo econômico, nos legou, no curto prazo, o atraso do desenvolvimento industrial em favorecimento da economia britânica. E, no longo prazo, a manutenção da estrutura econômica que só viria a ser superada no século XX, notadamente após 1930. 

Assim Cairu e seu pensamento foram definidos por pesos-pesados como Sérgio Buarque de Holanda como defensor do atraso e da economia primária. Também por David Landes, que certamente influenciado pela visão de Furtado, reproduziu tal visão sobre Cairu como aquilo que representaria a antítese do desenvolvimento.[1] O que pouco foi dito é que Cairu, diferentemente de ser um defensor da ‘vocação agrícola’ brasileira, na verdade chamava a atenção para a diferença entre as condições de Brasil e Inglaterra – e mesmo EUA – para o desenvolvimento da indústria. E que pensar que a superação destas imensas diferenças seria obtida por proteção, não só era uma distorção do pensamento liberal, mas também uma solução equivocada. E que, por outro lado, o Brasil teria seu desenvolvimento industrial apenas quando apresentasse condições para isso. Ou seja, quando ampliasse sua infraestrutura, desenvolvesse sua ciência e tecnologia, e, antes de tudo, proibisse a escravidão. 

Em outros termos, o que Cairu falava, principalmente em sua obra Observações Sobre a Franqueza da Indústria e Estabelecimento de Fábricas no Brasil (Brasília: Senado Federal, 1999. Edição Original de 1810) não é tão diferente, em essência, do que falava o vencedor do Prêmio  Nobel de Economia Douglass North em seu encontro com Furtado no Brasil em 1961.[2] Que a industrialização e o desenvolvimento não se fazem de ‘trás para frente’, mas do início para o fim.  Se o contrário fosse, ou seja, se olhássemos menos para o protecionismo como solução aos supostos males do liberalismo e, principalmente, se entendêssemos, assim como Cairu, que não precisaríamos de proteção se fizéssemos aquilo que antecede o desenvolvimento industrial, não teríamos que conviver com teses estapafúrdias sobre os males da abertura econômica e muito menos com a eterna justificativa de que a indústria nacional merece ser protegida frente à competição estrangeira.  Saberíamos com mais clareza que os males não vem da abertura e da competição, mas sim de nossa incapacidade de resolver questões básicas, como a nefasta herança da escravidão, a baixa produtividade e o atraso tecnológico. Exatamente o que Cairu, tão mal entendido por Furtado, falava às vésperas de nossa Independência.  

O problema é o mesmo: achar o ponto original para contar uma história é sempre um desafio imenso. Preferimos usar como ponto inicial de boa parte de nossa História as versões de Prado Jr. e Furtado. Abandonamos em partes consideráveis a leitura de autores anteriores como Cairu. Uma boa oportunidade de equilibrarmos esta falha pode ser agora. Em pouco tempo completaremos 200 anos da Independência. Pode ser o momento exato para pensarmos que certa versão que privilegiamos ao contar nossa História nas últimas décadas não mais responde aos nossos problemas reais. 

Notas:

[1] Esta qualificação de Cairu, feita por David Landes, assim como outras feitas por Celso Furtado e Sérgio Buarque de Holanda, são apresentadas por Fernando Novais e Jose Jobson Arruda na Introdução da edição da obra de Cairu (Observações Sobre a Franqueza da Indústria e Estabelecimento de Fábricas no Brasil) feita pela Editora do Senado Federal em 1999

[2] Sobre este encontro entre Douglass North e Celso Furtado no Brasil, em 1961, ver: Boianovsky, Mauro e Monastério, Leonardo.  O Encontro entre Douglass North e Celso Furtado em 1961: Visões alternativas sobre a Economia Nordestina. Em: Revista Brasileira de Economia. Vol. 72, n.3, jul-set 2018.

Vinícius Müller

Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.