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#EleNão, #EleSim: autonomia, censura e colaboracionismo em tempos de ativismo

A cantora Anitta. Fonte: Imagem do Youtube

por Tiago Pavinatto

Findava o mês de abril de 1972. Daí até o mês de setembro do mesmo ano, em rede nacional, Elis Regina conclamava os 90 milhões de brasileiros a entoar, em uma só voz, o hino nacional brasileiro (monstrengo apresentado pela peça publicitária ditatorial como “a música de maior sucesso neste País”) no dia 7 de setembro, mês no qual, inclusive, apresentou-se na Olimpíada da Semana do Exército daquele Sesquicentenário da independência do Brasil, então sob a rédea curta do General Emílio Garrastazu Médici. E, assim, a maior de nossas intérpretes foi enterrada viva pela militância opositora ao Regime.

Talvez seja verdade que ela tivesse sido obrigada a gravar o comercial veiculado para a Semana da Pátria por militares munidos de filmadora e roteiro, que a detiveram após um show que fazia no Teatro da Praia, no Rio de Janeiro. Apareceram de “surpresa” em seu camarim. No mais, porque era mãe, o medo justificaria sua participação no evento setembrino. Temia pela vida do filho; temia pela vida do filho sem a mãe, ainda mais depois da experiência traumática que vivenciara no Centro de Relações Públicas do Exército em 1968 por conta de sua entrevista à revista holandesa Tros-Nederland, na qual afirmou que o Brasil era “governado por um bando de gorilas”.

Pode o medo também ter obrigado outros artistas a “colaborarem” com o Regime: Luiz Gonzaga, Jair Rodrigues, Roberto Carlos, Jorge Ben, Wilson Simonal, Cauby Peixoto, Marcos Valle, Ronnie Von, Zimbo Trio, Elizete Cardoso, Marília Pêra, Paulo Gracindo, Tarcísio Meira, Glória Menezes e, até mesmo, Clarice Lispector.

Medo ou simpatia (ou entrega voluntária, o que chamaremos simplesmente de entrega, porque implica ativismo), não importa, ambos são irrelevantes para a militância.

Dois anos depois, atravessamos o Atlântico.

Findava o mês de abril de 1974. Casa lotada em Lisboa, Portugal. A Rainha do Fado posiciona-se entre a viola e a guitarra portuguesa para chorar a primeira canção daquela noite. Tensa e parecendo exaurida com o peso dos inigualáveis diamantes que compunham o broche redondo preso em seu vestido escuro, bem como dos que se penduravam no par de brincos Chandelier, quase em tamanho real, mas, mesmo assim, pronta para oferecer ao auditório o som divinal de sua voz inigualável até os dias correntes, é interrompida por gritos de “Fascista!”, “Vai-te embora!”, além de outras provocações relacionando-a ao mais odiado ditador daquele país, António de Oliveira Salazar, dizendo, inclusive, que pertencia à PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a polícia política lusa entre 1945 e 1969).

Uma década depois, há exatos 34 anos, em setembro de 1984 (ano em que, em Nova Iorque, ela teria tentado suicídio), Amália da Piedade Rodrigues diz ao seu entrevistador, Nuno Espinal da Revista Espaço Aberto: “Sabe? Não sou uma mulher culta, nem conte que vá responder a perguntas de cultura. Acontece que nem tenho mais que três anos de escola”.

Tamanha humildade, inversamente proporcional a suas joias e seus amores, foi bastante conveniente. Mesmo sendo a melhor entre os melhores dos seus pares, sua voz em estado da arte não teria o condão de transformá-la em historiadora, literata ou cientista política.

Contudo, foi em razão dessa sua justa consciência talar que, injustamente, alguns jornalistas e outros artistas, estes engajados contra a tirania, deram passagem aos gritos famigeradores. Artistas que, antes, cantavam o “soldado que vais para a guerra”, “Angola é nossa”, e coisas assim e que, num passe de mágica, viraram à esquerda. Confessa Amália Rodrigues: “eu até aceitava que Angola era nossa, mas valeu-me o meu bom gosto para nunca cantar nada disso. Mas ai de mim se o tivesse feito.”

Amália pagou e sofreu muito por uma virtude sua, a prudência. Teria sido um pecado ela ter sido sempre, segundo seus próprios dizeres, “uma pessoa muito afastada de politiquices”?

Seu silêncio, de um lado, taxou-a de fascista e, de outro, de comunista. Conta Amália: “logo a seguir ao vinte e cinco de Abril fui chamada à Comissão de Extinção da PIDE. Fiquei surpreendida e muito mais quando me perguntaram se a PIDE alguma vez me tinha maltratado. Sabe de que é que tinha sido acusada? Imagine… de ser comunista.”

De tudo isso, conclui: “Agora o que nunca pensei é que uma atitude minha pudesse ter tanta importância… no fundo nunca me senti Amália, sabe?”

Regressamos do Velho Mundo e fazemos uma escala na Venezuela contemporânea.

Em artigo a este Estado da Arte (4 de maio de 2017), o compositor, regente e amigo Leandro Oliveira discorre sobre o “silêncio nada inocente” de Gustavo Dudamel, então diretor musical da Orquestra Sinfônica Simón Bolívar e da Los Angeles Philharmonic, hoje diretor desta e maestro principal da Orquestra Sinfônica de Gotemburgo, Suécia, que, até meados de 2017, sempre se mantivera silente sobre os descalabros do Regime inaugurado por Hugo Chávez, por quem sempre nutriu uma admiração pueril, e continuado por Nicolás Maduro, mesmo quando o Sistema obrigava seus músicos a marchar em prol da tirania travestida, mas indisfarçável. Para Oliveira, Dudamel limitava-se a dizer que a “arte não pode tratar de política”, mas jamais se absteve de ser a marionete de um projeto de poder.

Tanto o maestro super star, quanto Amália e a nossa Pimentinha (esta redimida por seu ativismo posterior contra o Regime) se enquadram no conceito de Collaborationniste, termo introduzido no discurso político pelo Mare­chal Henri Philippe Benoni Omer Joseph Pétain em seu discurso radiofônico exortando os franceses a colaborarem com o invasor nazista em outubro de 1940, da mesma maneira que Maurice Chevalier, Édith Piaf e Coco Chanel, bem como Le Corbusier (muito embora este tenha claramente se vendido em troca de verbas para seus projetos ao afirmar que “a sede dos judeus por dinheiro havia corrompido o país”), Pablo Picasso (que se recusou a subscrever uma petição pela liberdade do poeta e “amigo” Max Jacob preso pela Gestapo), o editor Bernard Grasset, o tenor Tino Rossi e André Gide, que ganharia o Nobel em 1947, com sua célebre sentença: “Prefiro não escrever nada hoje, que possa me deixar arrependido amanhã”.

Medo, indiferença e entrega são os três sentimentos que podem estar por detrás do colaboracionismo, muito embora nos pareça que o sentimento de indiferença seja alheio a essa sentença militante, que, contudo, não se importa com o sentimento do artista, qualquer que seja sua especialidade, uma vez que deveria existir facultatividade ao ativismo, um elemento de vontade personalíssimo na adesão de uma causa política, humanitária ou meramente técnica (o que é raro).

É justo e certo estabelecer que somente o sentimento de entrega configura um colaboracionismo culpável, doloso, pois da indiferença nada se extrai (e, é certo, ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer nada senão em virtude de lei) e, sobre o medo, só cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é, onde o calo aperta; afinal, é da natureza animal o instinto primário de sobrevivência (e não o altruísmo).

Enquanto a entrega pode ser (mas não necessariamente é) claramente perceptível ao observador, o medo e a indiferença podem não ser diferenciáveis, pois podem ser secretos em sua declaração o fato de se guardar uma omissão ou de se emitir deliberada mentira e, assim sendo, serão imperscrutáveis, pois a barreira da reserva mental, para nosso alívio, ainda é barreira intransponível, último e seguro refúgio de nossa intimidade contra qualquer espécie de autoritarismo.

A reserva mental é campo ao qual nenhum limite exterior se impõe e no qual, na esteira de Álvaro de Campos em Pessoa, podemos sentir tudo de todas as maneiras, ter todas as opiniões, ser sinceros contradizendo-nos a cada minuto, desagradar a nós próprios pela plena liberdade de espírito, ir para a cama com todos os sentimentos, ser souteneurde todas as emoções e trocar olhares com todos os motivos de agir, de maneira que, diz Santo Tomás (que, se não é santo, deveras é gênio), “solus Deus cogitationes cordium et affectiones voluntatum cognoscere potest” (“só Deus pode conhecer os pensamentos do coração e as afecções da vontade”).

E chegamos, por fim, em nossa abjeta corrida presidencial e à campanha do #EleNao, sobre a qual discorremos em nosso último artigo (21 de setembro de 2018): A militância outrora GLS e que, hoje, engloba tudo aquilo que não seja “heterossexual cisgênero” (se nos é permitido o uso dessa expressão), tem exigido de algumas artistas, notadamente as cantoras Anitta, Ivete Sangalo e Cláudia Leitte, a adesão explícita ao movimento contra o presidenciável e quase Presidente Jair Bolsonaro; e exigem com a empáfia e a canalhice de um aluno que enfrenta seu professor e diz “Eu pago o seu salário!”.

O motivo do silêncio ou das meias palavras das celebridades é impenetrável. Não temos, ninguém, o direito de exigir seja externado. Os autoritários seríamos nós se o fizéssemos. Fazendo-o, revelamos o quão distante estamos de um sonhado liberalismo e o quanto desacreditamos da capacidade que o indivíduo tem de cuidar de si mesmo e assumir responsabilidades, transformando qualquer movimento artístico, mesmo os mais divorciados da política, em arauto diretivo do sujeito médio.

É, ironicamente, como se nossos autointitulados iluminados do #ELENAO quisessem repetir, palavra por palavra, a frase do Grande Inquisidor relatada por Ivan Karamazov: “Contudo, fica sabendo que hoje, e precisamente hoje, essas pessoas estão mais convictas do que nunca de que são plenamente livres, e entretanto elas mesmas nos trouxeram sua liberdade e a colocaram obedientemente a nossos pés. Mas isto fomos nós que fizemos” (DOSTOIÉVISKI, Fiodor. Os irmãos Karamazov).

Cumpre frisar, por último, que, em que pese o fato dos colaboracionistas viverem uma tirania e não uma ameaça, fundada ou infundada, dela, bem como da intolerância do candidato não tolerado ter ficado em declarações passadas e não fazer parte da campanha, essas celebridades, agora acusadas de colaboracionistas pela implacável militância, nunca deixaram de capitalizar a própria imagem (e carreira) enrolando-se na bandeira de arco-íris. Vai, malandras!

Tiago Pavinatto

Tiago Pavinatto é advogado. Graduado, Mestre e Doutor pela Faculdade de Direito da USP do Largo São Francisco. Coordenador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo (PUC-SP). Autor de “A Condição do Fanático Religioso”.