Cinema

Viagem a Tóquio: uma leitura heideggeriana de Encontros e Desencontros

por Juliana Fonseca Pontes

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O filósofo e crítico literário Benedito Nunes, que recebeu de Clarice Lispector a carinhosa e justíssima alcunha de Mestre de Belém, jamais concebeu a crítica da arte como um exercício que pudesse prescindir da filosofia. A contrario sensu, afirmou categoricamente que “não há crítica sem perspectiva filosófica” (NUNES, 2009, p. 54). É por concordarmos com essa afirmação que sugerimos aqui uma possível interpretação do filme Encontros e Desencontros (2003), de Sofia Coppola, a partir da fenomenologia da angústia de Martin Heidegger.

Há, neste ensaio, um esforço consciente de não incorrer em desrespeito à filosofia imanente ao filme, cuidadosamente elaborada pela diretora, porque ela se sustenta por si só e não precisa de qualquer explicação academicista exógena para ser compreendida. Mais uma vez em atenção às lições de Benedito Nunes, não abordaremos a obra como se uma cartilha filosófica pudesse “esclarecê-la” de uma posição hierarquicamente superior, mas, a partir de uma postura dialética e de simbiose, pensaremos novas linhas interpretativas que inaugurem outros caminhos de produção de sentido, com o intuito de enriquecer a experiência estética que o filme oferece.

Em momentos diferentes de suas narrativas pessoais e enfrentando desafios e dúvidas das mais diversas naturezas, Bob Harris (Bill Murray) e Charlotte (Scarlett Johansson) abandonam suas realidades domésticas e embarcam rumo a Tóquio. Lá, empurrados por forças do acaso, os dois se encontram no bar do hotel em que estão hospedados e, daquele momento em diante, arquitetam uma relação sofisticada, que cativa e emociona em todas as suas sutilezas. No entanto, muito se perderia, pensamos, se essa amizade apaixonada de sintonia tão fina fosse compreendida exclusivamente pelas rubricas românticas clássicas, de modo que sua história fosse reduzida à condição de “mais um conto de amor no século do desencantamento”.

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(Reprodução)

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Trata-se, certamente, de um romance que floresce em uma temporalidade desértica e que declama um elogio à resistência na intimidade, mas o elemento responsável por projetar a obra de Coppola ao panteão monolítico do cinema contemporâneo está longe de ser um “lugar-comum” das love stories hollywoodianas. Consideramos que o que a torna tão prodigiosa é a condição de possibilidade do amor entre Bob e Charlotte, o que permite que vibrem na mesma frequência: para nós, o fato de compartilharem a mesma disposição afetiva angustiada, no filme retratada de modo tão insólito quanto manifesto.

Para Heidegger, a angústia é uma disposição fundamental (Grundstimmung) que franqueia ao ser-aí (Dasein), este ser que somos, uma abertura privilegiada para suas possibilidades. Isso porque ela o cassa sua capacidade de se compreender a partir da decadência, de acatar de forma desinteligente a interpretação pública e de sustentar a impessoalidade do cotidiano. Quando ela se dá, se é confrontado com o Nada e dirigido ao polo de impertinência, o que faz com que o sujeito se sinta “estranho” (Unheimlich), desabrigado, estrangeiro onde quer que fisicamente se encontre. (HEIDEGGER, 2012, p. 250-257). Essa sensação de “estranhamento”, semelhante à de não se sentir em casa e de não reconhecer a familiaridade no “mundo”, é a que, pensamos, os personagens experimentam no filme.

A bem da verdade, a viagem que ambos empreendem à capital japonesa pode, ela mesma, ser interpretada como uma metáfora dramática dessa tonalidade afetiva e do que acontece quando nos desviamos da decadência do cotidiano, de um modo de ser inautêntico: quando estamos angustiados, vamos para Tóquio — aquele lugar diametralmente oposto ao que vivemos e onde somos, em que nada é familiar e no qual a palavra não é útil.

Talvez precisamente porque “a angústia corta a palavra” (HEIDEGGER, 1979, p. 40), o filme seja tão silencioso. O silêncio e o estar-junto é a melhor maneira de compartilhar a angústia e é um comportamento muito mais autêntico do que o “parlatório”, a utilização decadente da linguagem, que encobre o sentido do Ser e promove o fenômeno da impessoalidade. A “falação” da atriz que estrela o filme em divulgação no hotel e as obrigações domésticas que a esposa de Bob o demanda são sempre representadas à distância, como ruídos irrelevantes aos quais os protagonistas permanecem indiferentes. É da mundidade (Weltlichkeit) que o ser-aí se encontra afastado, quando angustiado.

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(Reprodução)

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Assim sendo, estando suspensas as ocupações cotidianas, o ser-aí se vê confrontado com aquilo que o angustia, isto é, ele próprio e a sua condição de ente negativo, que nada é, mas que tudo pode-ser, a depender do modo que se projete no mundo. Nas palavras de Heidegger, “aquilo com que a angústia se angustia é o ser-no-mundo como tal” (2012, p. 252). Mas, a despeito do desconforto que provoca, essa disposição afetiva “abre, de maneira originária e direta, o mundo como mundo” (2012, p. 254) e franqueia ao ser-aí a oportunidade de, uma vez desincumbido das azáfamas da existência, experimentar a liberdade que lhe é própria para escolher outros modos de existir.

É o que se dá na cena de ímpar delicadeza em que Bob e Charlotte conversam na cama do quarto do hotel. Ela o diz: “I don’t know who I’m supposed to be” e passa a enumerar as ocupações que já havia experimentado, como a de escrever e a de fotografar, numa consciente avaliação da maneira como havia se projetando no mundo até então. Essa sorte de reflexão é fundamental para que o ser-aí descubra quais são seus projetos mais autênticos e precisamente o movimento existencial que a angústia estimula, segundo da cartilha heideggeriana.

Além disso, a angústia permite que se ouça o chamado do cuidado (Sorge). Para Heidegger, o cuidado, ou cura, é a condição de possibilidade existencial para uma “preocupação com a vida”, uma dedicação a ela. (2012, p. 267). Trata-se da ocupação essencial da existência: o ser-aí, singularizado pela angústia, pode ser quem é enquanto cuida por ser, enquanto se dedica a esta tarefa. É assim que ele se apropria de seu ser e interpreta a facticidade a partir de sentidos que servem à sua autenticidade.

Pode ser tomada como sensível ilustração desse fenômeno uma das últimas cenas do filme, em que Bob confessa à esposa em um telefonema: “I’m just completely lost . . . I would like to start taking better care of myself”. A utilização da expressão “take care”, a sugestão ao cuidado de si, parece aqui assumir a dimensão existencial do Sorge heideggeriano: esse desabafo denuncia o sentimento de desenraizamento do mundo, que provoca a sensação de estar “perdido”, e o desejo de se re-colocar nele de um outro modo. Os dois personagens, durante toda a viagem, se inclinam em direção à tarefa de desempenho do cuidado, na medida em que, desligados do “mundo das ocupações”, podem se concentrar no vislumbre de suas possibilidades mais próprias.

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(Reprodução)

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E é no exílio em Tóquio que possuem a melhor chance de descobri-las, afinal, “somente na clara noite do nada da angústia surge a originária abertura do ente enquanto tal: o fato de que é ente — e não nada” (HEIDEGGER, 1979, p. 41). Em outras palavras, Bob e Charlotte, ao fitarem o escuro nas noites insones que compartilham, lembram que existem. No Japão, podem ocorrer os encontros e desencontros mais fundamentais: o desencontro do mundo decaído e encontro com a própria liberdade, característica da existência. Afinal, como ensina Benedito Nunes, “o cuidado, como raiz do poder-ser, para onde retrocede a noção heideggeriana de liberdade, vem da nadificação revelada pela angustia.” (2012, p. 113). Ou seja, para que haja apropriação de si e para que haja liberdade, é preciso conhecer o Nada. É preciso ir para Tóquio. Por mais que essa seja uma viagem angustiante.

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Referências:

NUNES, Benedito. Crítica literária no Brasil, ontem e hoje. In: A clave do poético. Organização e apresentação Victor Sales Pinheiro. São Paulo: Martins Fontes, 2009

_______________. Poesia e Filosofia: uma transa. In: Ensaios Filosóficos. Organização e apresentação Victor Sales Pinheiro. Martim Fontes, São Paulo, 2010

______________. Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger. São Paulo: Edições Loyola, 2012.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. 7 ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2012

__________________. “Que é Metafísica?”. In.: Conferências e escritos filosóficos. Trad. Ernildo Stein. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

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Juliana Fonseca Pontes

Juliana Fonseca Pontes é pesquisadora do Grupo de Pesquisa Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito (CNPq/CESUPA).