PoesiaResenha

Sobre quando Érico Nogueira esmerilou o porquinho-da-índia

por Brunno V. G. Vieira

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A Difficult Line from Horace, Lawrence Alma-Tadema, 1881

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Quando uma vez me interessei por poesia e quis saber de sua intimidade, uma professora me deu a dica: era pra eu ler o verbete “Versificação em Língua Portuguesa”. Tratava-se daquela breve poética que tinha sido escrita por Manuel Bandeira, o que se imiscui, nos espirais de minha memória, com a leitura que fiz, tempos depois, do Itinerário de Pasárgada do mesmo poeta.

Pois, Bandeira, enquanto se autobiografava nesses roteiros prosaicos, ia revelando o quanto penou (do professor de Grego Antigo ao mal du siècle), e deixando flagrante que a beleza que vive num poema quase sempre não é espontânea. Assim, quando chegamos a Libertinagem, o porquinho-da-índia pode não ser mais do que uma alegoria da diminuta infância de seres e coisas. Ele pode nem ter vivido, esse “bichinho”, mas não entraria em um poema sozinho, ah, não! As rãs de Homero, o rato de Horácio, a fauna de La Fontaine deviam estar sabidamente calados naquele singelo espaço íntimo, junto ao fogão, observando a cena e lembrando ao ouvido do roedor seu lugar na poesia.

O que Esmeril de Horácio, o novo livro de Érico Nogueira, faz é justamente confidenciar ao ouvido do/a  leitor/a, muitas vezes de modo grave, como a voz de seu autor (a qual se poderá ouvir, conforme as instruções que estão dentro do livro), outras vezes em ironia elegante, o lugar de cada poeta na história de um dado (ou futuro) poema e a conjunção não fortuita de coisas (história, som, estilo, sentido) que engendra poéticos construtos verbais.

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(Reprodução: Filocalia)

Está para aquele Itinerário este Esmeril. Depois de cevar seus porquinhos — Érico é poeta de três livros de poesia publicados (O livro de Scardanelli-2008, Dois-2010 e do glorioso Poesia Bovina-2014) e traduziu para o português Os idílios de Teócrito (2012) —, ele transpõe agora ao português 21 poemas do poeta latino Horácio (13 Odes, 7 Epodos, 1 Sátira), dando a conhecer seu projeto tradutório, que é também um projeto poético, por meio de uma sofisticada reflexão sobre prosódia e métrica comparadas.

Esse esmeril é bruto, e remete ao ofício de burilar diamantes como sugere João Batista Toledo Prado na orelha do livro. Sim, o/a leitor/a que se aventurar a seguir Érico, não se esqueça de seu jaleco ou macacão.  O Esmeril de Horácio, além de mobilizar um conhecimento de nomenclatura métrica e oferecê-lo o mais fluentemente possível, também incita o/a leitor/a a meter mãos à obra como em uma oficina. Com algum empenho para vencer o pesado jargão, Érico nos abre sua caixa de ferramentas, seja indicando como desmonta os versos de Horácio, seja declarando como entende ser o melhor modo de carburá-los em vernáculo.

Em uma síntese notável, o autor consegue oferecer um panorama da assimilação dos metros horacianos pela tradição em língua portuguesa (Portugal-Brasil), passando por nomes como Camões, Garção, Gonzaga e Pessoa, até sua adoção por poetas-e-tradutores recentíssimos como são Leonardo Antunes, Guilherme Gontijo Flores e o próprio Érico Nogueira.

Houve uma quadra do século XX em que muita gente acreditou terem os versos alcançado seu derradeiro dia. Era balela e até quem disse isso já o sabia… Bem quando eram declarados mortos a experiência da tradução foi renovando o maleável português. Dei Bandeira como mote desta retomada, mas nomes como Péricles Eugênio da Silva Ramos (em teoria e na prática) e Carlos Alberto Nunes (na prática tradutória) são duplamente autoridades ao Esmeril de Érico e bons testemunhos sobre o quanto a tradução (seja de língua ainda falada — inglês, alemão, espanhol —, seja de línguas clássicas — grego e latim) levou à reflexão e à construção do verso em língua portuguesa a vulcânicas fábricas.

É que, sobre a pauta silábica que Bandeira bem ensina naquele seu verbete pautado no modelo castilhiano, vem ganhando espaço a pauta silábico-acentual, emulada dos clássicos com a racionalidade requerida, o que outros idiomas faziam descarada e declaradamente desde há muito, mas que a tradição portuguesa praticava na surdina.

De fato, não é que os nossos maiores não flertavam com o veio silábico-acentual, parte de sua grandeza está justamente em forjar o português literário sob o influxo do bárbaro ou do longínquo, mas um tratamento rítmico, por vezes musical, por vezes recitativo, seguido de uma reflexão metapoética sobre ele, vem dominando uma parcela do cenário poético lusófono atual.

Neste lugar e deste lugar, o livro de Érico consegue, a par de outras artes poéticas assim concebidas espalhadas em artigos científicos, teses, traduções, poemas recentes, falar com autoridade e com sensibilidade sobre esse modo até então não declarado de fazer/pensar o verso. Ele recua a Horácio, um vívido modelo de poesia para o Ocidente, também aos seus imitadores e tradutores em português, e revela por esse histórico os andaimes de sua prática poética significativamente erigidos para que pudéssemos ter Poesia Bovina.

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Horácio na Leitura seus versos, por Fedor Bronnikov, 1863

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Brunno V. G. Vieira

Brunno V. G. Vieira é Professor Livre-Docente da UNESP. Traduziu a Farsália, de Lucano (Editora da Unicamp, 2011); o canto décimo quinto das Metamorfoses de Ovídio (EditoraUFSC, 2017); a Arte Poética, de Horácio (com Leandro D. Cardoso, pela Ed. UFPR, no prelo); e, como integrante do Grupo Odorico Mendes, colaborou nas anotações das Bucólicas (Ateliê, 2008) e das Geórgicas (Ateliê, 2019), traduzidas pelo insigne tradutor maranhense.