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Alphaville: o surrealismo do perigo e da salvação

por Juliana Fonseca Pontes

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A Poesia não dará mais o ritmo à ação; ela estará à frente.

Arthur Rimbaud

“Precisamos de poucas palavras para exprimir o essencial, precisamos de todas as palavras para torná-lo real”, diz Paul Éluard. “As palavras vencem”.[1] Essa é uma das definições que consta no verbete “linguagem” do Dictionnaire abrégé du surréalisme. Movidos pela esperança de encontrar o ponto do espírito onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável deixam de ser percebidos contraditoriamente, os surrealistas fizeram na França o que os românticos fizeram na Alemanha no fim do século XIX: confundiram conscientemente o problema do ser com o problema da poesia. Assistindo à assustadora emergência do império da técnica, da lógica e do cálculo no Ocidente, o grupo se laçou à tarefa de salvar a arte do seu extermínio e, com esse objetivo, fundou sua sugestão de utopia precisamente sobre a única coisa que o homem não é capaz de asseverar: o sonho. Só na sur-realité, numa sobre-realidade sustentada pela fantasia, a arte estaria a salvo da técnica — e a humanidade também, por via de consequência. No entanto, nas palavras de Éluard, para a vitória esse projeto todas as palavras seriam necessárias.

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Paul Éluard

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A problemática relação entre técnica e linguagem também ocupou a fenomenologia heideggeriana, que se esforçou sobremaneira para responder a pergunta sobre o que é o ser, quem é o ente que se pergunta sobre o ser e quais as suas condições de existência autêntica, considerando que está jogado-no-mundo na era da maquinação, momento em que a linguagem tem esquecidas — ou suprimidas — as suas possibilidades mais mágicas.

No filme Alphaville (1965), Jean-Luc Godard parece convocar Martin Heidegger e Paul Éluard para uma reunião subterrânea de emergência — no futuro.

Alphaville é uma cidade descolada do tempo e do espaço que vive sob o jugo do supercomputador Alpha 60. Projetada pelo professor dr. Von Braun, a máquina gerencia os destinos dos cidadãos e proíbe-os de formular pensamentos que considera ilógicos, de modo que, para evitá-los, a linguagem fora por ela “confiscada” e reapresentada à sociedade destituída de seu potencial simbólico. O objetivo parece ser um só: a implementação de um regime totalitário governado pela técnica, que vê na esterilização da linguagem e, portanto, da vida dos cidadãos, um método eficaz de controle social — argumento semelhante àquele sugerido por George Orwell no distópico 1984. O lema “silêncio/lógica/segurança/prudência” é acompanhado da cassação do direito dos sujeitos de sentir: não podem chorar, sofrer, amar ou se comportar de modo espontâneo. Em poucas palavras, no império tecnocrata de Alphaville, os súditos devem se assemelhar ao autômato que os governa.

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Alphaville (Reprodução)

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No entanto, o estatuto humano não é tão facilmente eliminável: isto que nos faz humanos, esse elemento central e inalienável, irrompe de modo inderrogável, mesmo quando se faz um esforço quase físico para não expressá-lo — esforço, no filme, tornado visível nos espasmos faciais que acompanham as manifestações emocionadas das personagens. Em razão dessa dificuldade fundamental de exterminar nos seres humanos seu núcleo de humanidade, o supercomputador implementou uma estratégia repressiva: aqueles que, mesmo sem os instrumentos da linguagem, expressam emoções ou sentimentos, são punidos com a morte. Desse modo, se a desumanização não é bem sucedida, o “humano” é eliminado da vida em sociedade de maneira direta e capital.

A estética da violência empregada pelo aparato governamental lembra a dos Estados antiliberais do século XX: os sujeitos são capturados, presos, levados a uma grande sala que possui uma piscina ao centro e forçados a subir em um trampolim para, em seguida, serem metralhados por um batalhão de soldados armados. Um cidadão é morto por ter chorado a morte de sua esposa e outro é atingido por uma saraivada de balas depois de ter declamado versos de Paul Éluard: resta transparente que os tiros não são disparados somente contra os cidadãos, sujeitos corpóreos, mas também contra o amor, contra a poesia — precisamente os elementos responsáveis por sustentar a humanidade sobre os próprios pés.

Assistindo às cenas das execuções, é impossível escapar da lembrança do espanhol Federico García Lorca, fuzilado em Granada pelas tropas do regime franquista. Lorca era poeta e homossexual, dois crimes intoleráveis na Espanha fascista e, em razão deles, foi executado em 1936. Seu assassinato, uma punição ao amor e à poesia, foi insuportável à época. Em 67, ainda era: a poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen escreveu “Não podemos aceitar/ O teu sangue não seca”. E não secará jamais. O ataque a Lorca foi o ataque ao que havia nele de humano e, por essa razão, foi intentado contra toda a humanidade. Godard, certamente atento a essa dor compartilhada, descreve em Alphaville um pesadelo de futuro em que Lorca é fuzilado mais uma vez, em que Lorca é fuzilado repetidamente, e, com isso, evoca esse luto insublimável e o medo permanente que nos assedia: o de que iniquidades dessa natureza possam novamente ter lugar no mundo.

García Lorca

É precisamente esse estado de coisas que o agente secreto/repórter Lemmy Caution (Eddie Constantine) encontra quando viaja à cidade, incumbido da missão de documentar o que lá se passava para informar às Terras Exteriores. Recebido e acompanhado de perto por Natasha von Braun (Anna Karina), filha do professor Von Braun, tenta fazer sentido da realidade que vislumbra, enquanto se esforça para compreender o que pensa a “princesa de Alphaville”, que vive alienada da linguagem.

O fato de Caution ser um repórter, e não simplesmente um agente secreto, encarna a tendência do cinema de Jean-Luc Godard de tratar os temas sobre os quais se debruça de modo jornalístico que, no limite, remete à uma inspiração abstrata no cinema-vérité de Jean Rouch. Como escreveu Susan Sontag em Godard (1968): “O filão de fantasia inspirada no cinema, que perpassa a obra de Godard, é sempre qualificado pelo ideal da verdade documentária”.[2] Alphaville, de modo elementar, assume esse ideal: é um documentário do futuro.

Mas essa é a única afirmação que se pode arriscar com sobre a forma do filme. É tarefa impossível classificar Alphaville a partir dos gêneros cinematográficos tradicionais — como era mesmo de se esperar, considerando a iconoclastia ativa do diretor, notadamente no que se refere a cânones narrativos. Na formulação de uma hipótese sobre o futuro em que a técnica instrumentaliza o homem, é um filme de ficção científica. Na iluminação, nos temas policiais, no figurino, na perseguição, e na referência literária, é um filme noir — enquanto está na cidade, Caution lê O sono eterno (The big sleep), romance policial de Raymond Chandler que foi adaptado para o cinema por Howard Hawks em 1946 (no Brasil, intitulado A beira do abismo). No verdadeiro nome do professor Von Braun, Leonard Nosferatu, e no mistério que ronda seu passado, há uma pronunciada alusão ao vampirismo característico do expressionismo alemão de F.W. Murnau. E é o leitmotiv é o futurismo, tema que tem na Metrópolis (1927), de Fritz Lang, a cartilha perfeita e acabada do argumento.[3]

No entanto, mais além de todos esses elementos e de modo tanto mais central, há surrealismo de Éluard e seus contemporâneos. Diante da ameaça da técnica à subsistência do que é humano, Caution encarna a atitude heroica dos revolucionários franceses e investe contra a estrutura tecnocrática da cidade, com o objetivo de salvar “todas as palavras”. Na cena do confronto final entre o agente secreto e o professor Von Braun, Caution atira, mata-o e salva a humanidade, em um gesto que lembra o que Breton escreveu no seu Segundo Manifesto: “Se não temos medo de insurgir-nos contra a lógica; se não juramos que um ato executado em sonho é menos importante que um executado em estado de vigília; se não estamos certos de que um dia já não existirá o ‘tempo’ [. . . ]: como querem que manifestemos qualquer forma de carinho ou tolerância em relação a algum aparelho de conservação social, seja ele qual for?”. O comportamento surrealista é político e Caution, ao destruir criador e criatura (o professor e, consequentemente, o computador Alpha 60), desfere o golpe definitivo que todos os integrantes do movimento surrealista almejavam desferir: aquele que nos emancipa do medo da instrumentalização da vida pela técnica.

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Alphaville (Reprodução)

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Alphaville parece ser, portanto, um filme sobre o perigo do real e a salvação surreal, uma ilustração da distopia que os surrealistas temiam e uma encenação da sua vitória gloriosa. Se não fosse pelo método narrativo relativamente linear e pela razoável clareza das alegorias, é um filme que Luís Buñuel poderia ter escrito para tornar conhecidas as intenções do movimento. Afinal, trata-se de um pesadelo filmado: um pesadelo que há muito já se confundiu com a realidade. E se é a linguagem que está sob risco iminente, é no sonho o campo de batalha.

A respeito dessa batalha, a fenomenologia de Martin Heidegger também se ocupou e nos ajuda a entender a radicalidade dos desafios que Caution enfrenta em Alphaville. Se o filósofo alemão estava certo e a linguagem é mesmo a casa do Ser, enquanto está na cidade do futuro, o agente secreto experimenta o desabrigo absoluto. Afastado de tudo que lhe é familiar e em um lugar em que as palavram foram semanticamente higienizadas, ele é forçado a suspender sua atitude natural em relação ao mundo, assim como seus juízos a respeito dele — uma postura em algo semelhante à redução fenomenológica como pensada por Edmund Husserl — para engajar sua consciência à investigação da realidade daquela cidade.

Concomitantemente, Caution se apaixona por Natasha e se coloca a tarefa de conquistar o coração da mulher que a técnica havia exilado da linguagem. Ele precisa fazê-la lembrar-se do significado das palavras proibidas na cidade que, há muito tempo, haviam deixado de figurar no seu dicionário oficial (a “Bíblia”), mesmo porque, no rol daquelas que Natasha não se lembra, está “amor”.

Para tanto, Caution convoca a poesia — e o surrealismo romântico. Ele declama poemas do livro Capitale de la Douleur, de Paul Éluard (porque nenhuma escolha de Godard é fortuita), e ela, só então, se recorda, em uma belíssima alegoria à alethéia: verdade que se desvela como lembrança. Através da poesia, a personagem parece ter seu primeiro contato com a linguagem genuína, investida de potencial encantatório, de um modo que lembra a lição de Martin Heidegger: “Dizer genuinamente é dizer de tal maneira que a plenitude do dizer, própria ao dito, é por sua vez inaugural. O que se diz genuinamente é o poema.”[4]

Se da linguagem, a casa do Ser, os guardiões são os poetas,[5] Éluard abre o portão e permite que Natasha volte para casa. Nesse sentido, a narrativa de Alphaville parece ser a da jornada ulyssica, a do retorno ao lar. Filmes como, por exemplo, Paris, Texas (1984) de Wim Wenders, e Encontros e Desencontros (2003), de Sofia Coppola, permitem interpretações semelhantes. No primeiro, o protagonista vaga mudo e sem memória pelo deserto do Mojeve e, lentamente, volta para o lugar de onde havia fugido, reencontra a ex-esposa, enfrenta o trauma, reabilita a linguagem e, então, finalmente se vê livre para habitar o mundo — que é o das palavras. No segundo filme, os dois personagens principais se exilam em Tóquio, se afastam da decadência da “mundidade” (Weltlichkeit), compartilham a experiência da angústia, reinvestem a linguagem de autenticidade e, ao final, também se veem prontos para regressar a seus lares originais, porque já estão em casa novamente: a casa do Ser, que é a linguagem.

Em ambos os filmes e em Alphaville, as personagens se colocam no caminho para a linguagem: por meio do luto amoroso (Paris, Texas), da angústia (Encontros e Desencontros) e da experiência poética (Alphaville), elas se desalienam da impessoalidade do cotidiano e da comunicação decaída, se engajam na tarefa da existência e podem então identificar suas aberturas e se projetar no mundo em atenção às suas possibilidades mais próprias.[6]

Considerando que Godard escreve filmes como quem escreve ensaios, em Alphaville, não é difícil identificar a conclusão de sua crítica: mesmo na era da técnica, há esperança.

Em A questão da técnica (1953),[7] Heidegger apresentou argumento animado pelo mesmo espírito. O filósofo afirmou que a essência da técnica é a de promover o desvelamento aquilo que está oculto: não por acaso, techné era uma das palavras utilizadas pelos gregos para fazer referência à arte. Lembrou que estes, originalmente, utilizavam a técnica como uma maneira de provocar a natureza (physis) à manifestação de suas possibilidades guardadas em potência, mas de modo autenticamente produtivo (poiesis), não exploratório. A poesia, enquanto desvelamento da verdade, seria techné.

Por essa razão, o perigo que a técnica moderna oferece, qual seja, o do esquecimento definitivo do Ser e da redução do mundo ao cálculo e à previsão lógica — precisamente nos moldes do que ocorre em Alphaville — conteria, na sua essência, o seu próprio salvo-conduto. É nesse sentido que Heidegger lembra o verso de Hölderlin: “Onde mora o perigo também mora a salvação”. É na poesia, que compartilha com a técnica a mesma essência, na medida em que desvela o sentido do Ser, que podemos depositar nossas esperanças salvíficas do domínio da maquinação.

Detalhe d’A Morte de Empédocles, de Salvator Rosa

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E é olhando fixamente para aquilo que nos ameaça que avistamos o surgimento de saídas: para Heidegger, quanto mais nos aproximamos do perigo extremo, com mais intensidade brilham os caminhos em direção àquilo que nos salvará. Algo semelhante é o que Godard parece sugerir em Alphaville: quanto mais nos esgueiramos pelas ruas da “capital da dor”, tanto mais brilhante se impõe a poesia no horizonte, iluminando a estrada que permite a fuga dos protagonistas e o caminho para uma outra realidade — ou para uma sobre-realidade.

No limite, a própria experiência de assistir à Alphaville de Godard pode ser assim resumida: fitar o perigo por uma hora e quarenta para, ao final, lembrar do que nos salvará dele. Em 1924, Breton anunciou que o surrealismo seria o raio invisível que um dia nos faria vencer todos os “nossos adversários” — os adversários da humanidade, do amor, da espontaneidade, da magia, da poesia. Esse raio foi vitorioso na Alphaville de 1965 e há de ser na Alphaville de amanhã.

Porque, como disse Éluard — e Godard parece concordar —, as palavras sempre vencem.

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Notas:

[1] Ils nous faut peu de mots pour exprimer l’essentiel, il nous faut tous le mot pour le rendre réel. Les mots gagnet. BRETON, André; ÉLUARD, Paul. Dictionnaire abrégé du surréalisme. Paris: Gazette des Beaux-Arts, José Corti, 2005.

[2] SONTAG, Susan. Godard. In: A verdade radical. Trad.: João Roberto Matins Filho. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 184

[3] Cf. VASCONCELLOS, Mauricio Salles. Jean-Luc Godard: história(s) da literatura. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2015, p. 84

[4] HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis: Editora Vozes, 2003.

[5] HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasiliense, 1995.

[6] HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária, São Francisco, 2012.

[7]  HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. Scientiae Studia, São Paulo, v. 5, n. 3, p. 375-98, jul./set, 2007, Trad. Marco Aurélio Werle. Disponível em: <scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=1678- 316620070003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: julho de 2020.

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Juliana Fonseca Pontes

Juliana Fonseca Pontes é pesquisadora do Grupo de Pesquisa Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito (CNPq/CESUPA).