Literatura

A floresta-mundo de Daniel Fagunwa

por Adriano Moraes Migliavacca

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D. H. Lawrence era um homem assustador. Se o ateísmo democratista de Bertrand Russell — chocante para a Inglaterra vitoriana — parecia bem-comportado diante do politeísmo selvagem de Lawrence, que não faria o romancista de Eastwood com o providente Deus de Benjamin Franklin, que o próprio Lawrence compara a um grande lojista? Ao “Deus único” que fez todas as coisas e governa o mundo por Sua Providência de Franklin, Lawrence antepôs “deuses estranhos”, que se aproximam e se distanciam da clareira, o self conhecido, dentro da floresta escura que era sua alma (LAWRENCE, 1960). Devidamente estarrecido, me permito perguntar: e se Lawrence abandonasse a clareira de si e o desfile dos deuses e se aventurasse na própria floresta sombria? Em um mito indiano, coletado por Heinrich Zimmer, o sábio Markandeya se aventura para fora do corpo de Vishnu — seu mundo conhecido — e acaba encontrando a escuridão, tendo diante de si apenas uma criancinha que o desagrada com a aparente insolência de querer dar lições a um velho sábio. Quem era a criancinha senão o próprio Vishnu (ZIMMER, 1974)?

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Markandeya e Vishnu em gravura do séc. XVIII

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A clareira na floresta não é nossa desconhecida. Heidegger fez dela uma metáfora explicativa para a percepção que o indivíduo tem do ser. Soyinka colocou seus personagens sob uma para revelarem seus segredos em A Dance of the Forests. Já a floresta… bem, vimos um Dante na metade de sua vida assustado diante da selva selvagem que o levaria à porta do Inferno. O Pai dos Deuses que Pode Fazer Tudo no Mundo de Amos Tutuola mais de uma vez se aventurou nela em sua jornada atrás de seu vinhateiro morto, para depois de lá sempre retornar (se tivesse vivido mais alguns anos, talvez Lawrence o tivesse visto de sua clareira; o privilégio tocou a Dylan Thomas). No entanto, só podemos ter um entendimento do real poder metafórico, metafísico e metamórfico dos deuses verdes desse mundo em si mesmo se nos afastarmos da clareira das letras indo-europeias (sim, pois que Soyinka e Tutuola, iorubás que eram, escreveram suas obras em inglês). Refiro-me ao engenhoso caçador Akara-ogun, do clássico primeiro romance em língua iorubá Ògbójú ?d? nínú Igbó Irúnm?l??, do escritor, linguista e educador Daniel Orowole Olorunf?mi Fagunwa (1903-1963), publicado pela primeira vez, com grande sucesso e imediata consagração entre os leitores de língua iorubá, em 1938. Não faremos isso, no entanto, sem a luz do inglês de Soyinka, que traduziu essa obra com o nome de The Forest of a Thousand Daemons (A floresta dos mil daemons).

Em primeiro lugar, um pouco de linguística. A palavra “Irúnm?l??” é particularmente desafiadora. Em geral é traduzida como “divindade”. O Dictionnary of Modern Yoruba, do linguista R. C. Abraham — obra que contou com a contribuição do autor do romance aqui estudado —, sob a grafia “im?nl??” a define como “espírito da terra” (ABRAHAM, 1958), deduzindo esse significado da palavra “il??” (terra). O teólogo Bolaji Idowu, em seu Olódùmarè – God in Yoruba Belief, oferece a grafia “imal??”, traduzindo por “divindade” (IDOWU, 1994) (não confundir com “ìmàle”, nome com que os iorubás designavam os muçulmanos e que, no Brasil, veio a dar origem ao denominativo “malê”, aplicado aos indivíduos da etnia hauçá, majoritariamente muçulmana). No âmbito das religiões de matriz africana, a palavra é ora entendida como sinônimo de “orixá”, ora como termo genérico englobando todas as divindades. Nesse sentido, é instrutivo consultar a obra Os nagô e a morte, da antropóloga candomblecista Juana Elbein dos Santos, segundo a qual os “Irúnm?l??” se dividem entre os da direita (orixás, ou forças produtivas) e os da esquerda (ajogun, ou forças destrutivas), tendo a divindade Exu como intermediário pertencente a ambos os grupos e garante do equilíbrio cósmico entre as duas forças (SANTOS, 2008).

Os seres que encontramos no romance de Fagunwa, no entanto, não se parecem com quaisquer divindades, muito menos com os orixás que cultuamos nos terreiros, que só são rapidamente referidos uma vez nas orações do caçador. Segundo o linguista Félix Ayoh’OMIDIRE (2003), o romance de Fagunwa se baseia, em grande parte, no gênero de contos chamado Àló? àpagbè, onde os orixás não costumam figurar. Na tradução inglesa, Soyinka utiliza a palavra “ghommid” (gomide) para se referir aos habitantes da floresta que não são nem humanos nem animais. E com que farândula de seres estranhos Fagunwa nos presenteia! Logo no início, em sua primeira expedição à floresta dos Irúnm?l??, o caçador encontra um gomide de baixa estatura, ululando em sofrimento com lágrimas fluindo dos olhos e muco fluindo das narinas; sob seu braço, carregava uma esteira. A figura grotesca atrai a manifestação de desprezo de Akara-Ogun, que precisa ouvir, humilhado, o seguinte lamento vindo do gomide:

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Eis como vocês, crianças da terra, se portam. Vocês que fizeram a bondade azeda aos caridosos. Nós os observamos, a vocês cujos olhos não se demoram em um lugar, vocês que perseguem o vazio por todas suas vidas. Os que já dispõem de um estômago inteiro seguem buscando posições de glória, buscam viver como reis, esquecendo que os dedos da mão são desiguais. E é também de sua natureza que suas mentes nunca estão em paz; os que encontram a felicidade hoje garantem que seus próximos não encontrem paz no dia seguinte; hoje morte, amanhã doença; hoje guerra, amanhã confusão; hoje lágrimas, amanhã tristeza — tal é a empresa comum de vocês, crianças da terra. E quando pensamos em seu sofrimento, temos pena de vocês, lamentamos por vocês e nossas narinas pingam, mas ao invés de receber seu afeto, ao invés de dançarem para nos saudar e nos alardearem, vocês veem até nossas esteiras como causa para desprezar-nos, nossas narinas correndo se tornam seu alvo favorito, falam de nossa solicitude como punição, nossa existência como abaixo do desprezo — ao ponto até de terem cunhado a expressão “lágrimas nos olhos de um gnomo”. (FAGUNWA, 2013)

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A seguir, a postura apologética do caçador ganha a simpatia da criatura, que o presenteia com pimentas mágicas. O próximo gomide que ele encontra espanta, com seus barulhos, os animais que Akara-ogun deseja caçar. Novamente com desprezo, o caçador acusa sua raça de, tendo animais em abundância, jamais caçarem, ao que o gomide, dessa vez um altivo príncipe da floresta, responde que é de sua natureza buscar apenas os recursos de que precisa, sendo da natureza das “crianças da terra” buscar o que é supérfluo. É interessante ver que, em se dirigindo à mais perigosa das florestas, o que o caçador encontra por primeiro não é brutalidade, mas rostos grotescos cujos discursos lhe jogam na cara a miséria e arrogância humana. Não é à toa que o primeiro animal que ele caça e come, com extremo prazer, é um macaco, lembrando-nos o ditado iorubá “O caçador crê que o macaco não é sábio; o macaco é sábio, mas tem sua própria lógica” (OWOMOYELA, 2005, p. 103). É a lógica da floresta, que Akara-Ogun agora metaforicamente começa a incorporar.

A primeira jornada termina de modo não menos estranho. Enfrentando Agbako, um monstro conhecido entre caçadores, Akara-Ogun usa seus poderes mágicos e comanda a natureza, repetidamente, ora que o afaste do monstro ora que imobilize o mesmo. Mas tudo que ocorre com um contendor ocorre com outro: se a natureza leva, segundo as ordens, o caçador à segurança de uma estrada, o monstro surge junto; os cipós da floresta imobilizam o monstro, mas o fazem também com o caçador. A batalha é especular, com engraçados momentos como aquele em que Agbako, vendo o cansaço na cara de seu inimigo, o convida a beber um pouco de vinho de palmeira, para depois polidamente exigir o retorno à luta, que só termina quando Agbako, com uma forte pisada, faz com que a terra se abra e engula os dois lutadores. O que se segue é surpreendente.

No subterrâneo, Akara-Ogun não mais encontra Agbako, mas o mercado de uma cidade com pilhas de crianças mortas ao relento e pessoas cujas bocas só conseguem tartamudear, nunca falar algo compreensível. Uma mulher se aproxima e diz ser seu nome Iwapele (expressão que, em iorubá, designa o ideal de caráter equilibrado, sereno e comedido, como vemos em Abimbola (1975)). Ela conta que essa fora uma cidade cujos moradores se desviaram do caminho correto e foram punidos por isso. Ela, então, o chama para viverem juntos em sua casa, nessa cidade onde as coisas não seguiam uma lógica reconhecível. Na casa de Iwapele, havia um quarto fechado que, a mulher disse, só poderia ser aberto quando ela morresse, o que de fato ocorre após uma vida de grande felicidade a dois. Após o pranto pela perda da amada, Akara-Ogun se aventura no quarto proibido. Entrando, encontra-se novamente em seu próprio quarto, na casa onde morava na cidade. Sobre o chão repousam todos os objetos que ele perdera em sua jornada na floresta dos Irúnm?l??, juntamente com uma sacola de dinheiro que ele rapidamente gasta em prazeres fúteis.

É impossível não pensar aqui em outro mito indiano envolvendo um sábio e a divindade Vishnu, também coletado por Zimmer. O sábio, diante de uma lagoa, pede a Vishnu para conhecer o segredo de seu Maya (ilusão, poder criativo). Vishnu sai da lagoa e diz que, se ele quer conhecer o segredo de seu Maya, precisa mergulhar. O sábio mergulha e volta de lá transformado em uma mulher muito bela, uma princesa que se casa com um rei muito poderoso e tem muitos filhos. Foi muito feliz durante anos até haver uma revolução e seu marido ser deposto. Foragida, ela corre até uma lagoa e se joga para a morte. Logo depois, reemerge transformada novamente no sábio, no mesmo lugar de antes. Vishnu está a seu lado e diz ser impossível conhecer o segredo de seu Maya.

Tanto no mito hindu quanto no que ocorre com o caçador, há um deslocamento sobrenatural onde, após um período em um local diferente da morada da personagem, esta volta rapidamente. Há grandes diferenças, no entanto: no mito hindu, o sábio sofre uma metamorfose completa, tornando-se outra pessoa, com outra consciência, sem conhecimento de sua existência origina e outra vida, que é, para seu novo eu, perfeitamente natural e conhecida. No caso de Akara-Ogun, seu eu segue constante nessa existência provisória que ele assume, algo que reflete o papel organizador que tem, no pensamento tradicional iorubá a consciência pessoal, simbolizada pela cabeça, chamada Ori, que é em si uma divindade (mais neste artigo). A floresta que vemos é profusa e imprevisível, mutável e perigosa. A tarefa central do caçador é manter-se no eixo dessa realidade móvel. Nesse ponto, entendemos o que Abiola Irele chama de “o humanismo de Fagunwa”, que ele encontra na seguinte passagem do segundo romance de Fagunwa, Igbo Olodumare:

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Cuidado, seus daemons, para que nenhum se mostre hostil a mim para não passar seus dias perambulando sem repouso pelas esferas. Daemons da floresta de Olodumare, ouçam isso hoje de um homem, que, quando o criador criou tudo no universo, Ele colocou o homem como senhor sobre tudo. (FAGUNWA, apud IRELE, 1990)

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(Reprodução)

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O personagem que enuncia tais palavras é o pai de Akara-Ogun. Embora não tenhamos, por ora, acesso ao romance em que elas surgem, temos a certeza de que o sentido de centralidade no mundo do filho desse personagem é constantemente desafiado e de diversas maneiras. Na segunda expedição à floresta dos mil daemons, o protagonista é inteiramente dominado por uma figura monstruosa, que, após montá-lo como a um cavalo, o encarcera em sua caverna. A saída se apresenta quando, após rezar a Deus pelo insight de uma solução, Akara-Ogun convence a criatura de que sua arma era um brinquedo inocente e, tendo o aceite do monstro, dispara contra ele. A terceira empreitada é mais ambiciosa: tendo adquirido fama por suas expedições, o rei convoca Akara-Ogun para liderar uma expedição à cidade sagrada de Monte Langbodo, não sem antes passar mais uma vez pela floresta. Nessa passagem, encontramos um episódio que pode oferecer um entendimento da filosofia que rege o tão polêmico sacrifício de animais nas religiões de orixá. Os caçadores encontram uma cidade dentro da floresta, em cujos portões havia gravada a seguinte mensagem:

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Pai das aves é a Avestruz,

………………este é de fato o Rei das aves.

O Criador não põe objeção

………………a alguém que mate uma ave por comida.

O Criador não se importa

………………que se matem aves por um bom propósito.

Mas qualquer um que em qualquer momento

………………matou uma ave por crueldade,

A ele esta cidade é proibida.

(FAGUNWA, 2013, p. 93)

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Não havia no grupo um único que não tivesse um dia matado um pássaro sem um bom motivo e, presumivelmente, todos são julgados e sofrem castigos pesados. É curioso ver logo no início da obra Terreiros de Egúngún – Um culto ancestral afro-brasileiro, do saudoso sacerdote, educador e escritor José Sant’anna Sobrinho, o dito tradicional: “É proibido matar qualquer animal sem a permissão dos antepassados ou dos Orixás” (SOBRINHO, 2013, p. 35). Mais do que um local de sofrimento e perigos, a floresta dos Irúnm?l? ensina ao ser humano que, mesmo com sua situação de centralidade na criação, há uma organização do mundo e do cosmo na qual ele precisa se inserir, respeitando a dinâmica da criação e o local que têm nela as outras criaturas. Aqui, algo interessante deve ser lembrado: logo no início da primeira expedição, Akara-Ogun inadvertidamente sobe até a copa de uma árvore que ele descobre ser a cabeça de Olori Igbo (Cabeça da Floresta), a entidade suprema da floresta. Com um de seus implementos mágicos, o caçador é teleportado até sua casa e, envergonhado pela fuga, volta à floresta. O primeiro momento das aventuras é, então, de grande intensidade intelectual e emocional: é dado ao caçador ver a floresta inteira a partir de seu centro irradiador; é só depois que ele se aventuraria em suas particularidades.

O Monte Langbodo, que é atingido depois da última expedição, se mostra, por sua vez, o local apical e centro irradiador da comunidade humana. Lá, os aventureiros são apresentados ao maior dos reis da Terra, ouvem uma versão da história da criação que conjuga a mitologia iorubá com a bíblica história de Adão e Eva e passam sete dias com o imortal sábio Iragbeje, cuja casa tem sete alas. Nesse momento, o romance assume mais totalmente seu caráter educativo: a cada dia, Iragbeje conta uma história que ensina todos a evitarem os excessos, a arrogância e viverem com sabedoria no mundo criado por Deus. Finda a jornada na cidade sagrada, o Rei entrega presentes suntuosos, todos em número de seis, que incluem seis bíblias em seis idiomas diferentes. No retorno, perdem-se ou perecem na floresta aqueles que não seguem os ensinamentos de Iragbeje. De volta ao rei que encomendara a expedição, descobrem que os sete dias em Monte Langbodo haviam correspondido a uma vida inteira na comunidade humana. O rei, já muito velho, regozija-se com o retorno e os presentes.

A presença determinante de elementos cristãos na narrativa espanta apenas o leitor apressado e incauto; o mundo de Fagunwa é inegavelmente iorubá. É improvável que o autor tenha sequer pisado no Brasil, mas os seguidores das religiões afro-brasileiras se sentiriam em casa na moldura cosmológica de sua obra. “A floresta de Fagunwa”, diz Abiola Irele, “representa o universo” (IRELE, 1990, p. 180). O olhar aquilino do crítico nigeriano aponta para a convivência contínua e dinâmica do natural com o sobrenatural nesse universo. A floresta (em iorubá, igbó) é também metáfora central de um dos rituais iniciáticos mais importantes da religiosidade iorubá: o Itefa, a iniciação no culto de Ifá, divindade da sabedoria e da prática oracular. Central a esse ritual é o igbodu, ou “igbó odu”, a floresta do odu (para noções mais expandidas de Ifá e “odu”, ver este artigo: https://estadodaarte.estadao.com.br/o-ifa-uma-tradicao-oral/). É ali que o iniciando faz a viagem que funciona como sinédoque da viagem que sua alma fez até a terra e da viagem que compreende a totalidade do tempo que um ser humano passa na terra. No livro Yoruba Ritual, a antropóloga Margaret Drewal apresenta a teorização oferecida pelo babalawo Kolawole Ositola, reconhecida autoridade religiosa. Segundo ele, o igbodu deve ser visto apenas pelo iniciando, pois só ele poderá experimentar as potencialidades espirituais de certos símbolos que seriam apenas misteriosos ou mesmo inócuos para o leigo (DREWAL, 1992).

Irele também aponta para a importância, correlativa com a da floresta, da figura do caçador. Mais que coragem, destreza e força, o caçador é um modelo de astúcia e conhecimentos técnicos. O próprio nome do personagem nos dá essa ideia. Soyinka traduz “Akara-ogun” por “Compound of Spells” (Combinado de feitiços). Na verdade, a palavra “oògún” (Não confundir com a divindade Ogum, cujo nome em iorubá é grafado “Ògún”) tende a ser traduzida modernamente como “remédio” (como vemos no Yoruba Modern Practical Dictionnary (2003), de Kayode J. Fakinlede); tradicionalmente, poderia ser usado para se referir a preparados medicinais ou mágicos.

O caçador é também o herdeiro e praticante do ijala, algo que Soyinka chamou “a suprema forma lírica da arte poética iorubá”, que “celebra não apenas a deidade, mas a vida animal e vegetal, busca capturar a essência e as relações das coisas que crescem e os insights do homem nos segredos do universo” (SOYINKA, 2005, p. 28). Esse caráter artístico do caçador nos aponta para a dimensão formal e técnica do romance. O crítico Ayo Bamgbose, estudando a presença da tradição do conto popular oral na obra de Fagunwa, mostra que, mais que os próprios contos populares iorubás (não muito comuns no romance), é a estrutura do relato oral que é incorporada na novelística de Fagunwa. Sua obra pode ser facilmente celebrada como o momento em que uma tradição inteiramente oral passa a ser escrita, já que seu Ògbójú Ode é o primeiro romance escrito em iorubá, mas sua importância nesse aspecto vai muito além disso.

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(Reprodução)

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Há dois narradores em Ògbójú Ode: um, não nomeado, é o escritor, que anota tudo o que é narrado pela boca do caçador, o qual um dia procurou o autor para ter sua história registrada no papel. No entanto, Akara-Ogun conta sua história – e o primeiro narrador a escreve – diante de um grande público que se junta para ouvir. Ou seja, Fagunwa metanarrativamente encena a escrita de um romance, uma performance oral tradicional e a própria história que está sendo performada e escrita ao mesmo tempo. Sabiamente, nos oferece um romance que é, ao mesmo tempo, a história de um caçador e a história de uma tradição oral no momento em que esta começa a ser escrita. Sabiamente, faz cair do bolso do velho caçador, quando esse se despede de seu público, um papel que diz “Akara-Ogun, Pai dos Perdedores Natos” (Akara-ogun, Father of Born Losers). Seria a vida gloriosa narrada apenas imaginação de um velho senhor sedento por atenção? Se assim o for, é significativo o fato de que, ao ter sua história hipoteticamente imaginária eternizada no papel, o Pai dos Perdedores Natos perca de seu bolso o papel que lhe dá essa mesma identidade de perdedor. Imaginária ou não, sua glória torna-se literatura.

Ao aproximar a escrita de Fagunwa da tradição da narrativa oral, Bamgbose lembra que o escritor conhecia bem seu público. Fagunwa era educador em escolas iorubás e, escrevendo seu romance nesse idioma, sabia que seu público ficaria restrito ao reduzido grupo local de leitores do iorubá, certo? Errado. A floresta-mundo de Fagunwa é o mundo inteiro; sua floresta iorubá engloba tanto os deuses estranhos de Lawrence quanto o Deus providente de Franklin, que são tão mais misteriosos quanto mais conhecíveis pelo intelecto. Bamgbose estava certo; Fagunwa conhecia bem seu público: a humanidade.

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Fagunwa

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Referências

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ABRAHAM, R. C. Dictionary of Modern Yoruba. London: University of London Press Ltd. 1958.

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DREWAL, M. T. Yoruba Ritual: Performers, Play, Agency. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press. 1992.

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FAKINLEDE, K.J. Yoruba Modern Practical Dictionary. New York: Hippocrene Books, Inc. 2003.

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IRELE, F. A. Tradition and the Yoruba Writer. In: IRELE, F. A. The African Experience in Literature and Ideology. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press. 1990. p. 174-197.

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SANTOS, J. E. dos. Os Nagô e a morte. Petrópolis: Editora Vozes. 1975.

SOBRINHO, J. S. Terreiros Egúngún: Um culto ancestral afro-brasileiro. Salvador: EDUFBA. 2005.

SOYINKA, W. Morality and Aesthetics in the Ritual Archetype. In: SOYINKA, W. Myth, Literature and the African World. Cambridge: Cambridge University Press. 2005. p. 1-36.

ZIMMER, H. Myths and Symbols in Indian Art and Civilization. Princeton: Princeton University Press. 1992.

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Adriano Moraes Migliavacca

Adriano Moraes Migliavacca é tradutor e doutor em letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul