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Visões africanas do indivíduo

por Adriano Moraes Migliavacca

No romance The Joys of Motherhood, da nigeriana Buchi Emecheta, a protagonista Nnu Ego, ao avaliar sua vida de provações e dificuldades, observa que seu chi era uma mulher, pois “só uma mulher seria tão minuciosa em punir outra mulher”. Outra citação: no documentário Na rota dos orixás, em que as religiões de matriz africana praticadas no Brasil são examinadas da forma em que ocorrem na Nigéria e no Benin, ouve-se o comentário “A religião dos voduns (religião análoga à dos orixás) diz respeito à coletividade, não ao indivíduo”, ecoando uma crença bastante estabelecida sobre as religiões africanas. Um poema litúrgico ioruba diz que “devo lembrar-me de meu ori antes de lembrar-me de qualquer orixá”. Os leitores não familiarizados com noções da metafísica africana ficarão confusos diante da primeira e da terceira citação; a segunda é compreensível a todos, e talvez familiar a muitos. Veremos como, entendidas as duas das pontas, a do meio deve ser repensada.

Já se tem dito que não é algo preciso classificar as religiões nativas da África negra como politeístas – assunto para outro artigo. No entanto, é fato que, se tais sistemas postulam uma só instância criadora, postulam também a existência de uma pluralidade de hipóstases que regem tanto o cosmos quanto o mundo humano. Mais, tais hipóstases não se resumem a uma única classe de seres espirituais – como os orixás dos iorubas ou os voduns dos jejes, algo próximo aos deuses das religiões politeístas europeias –, mas incluem outras tantas como ancestrais desencarnados e forças destrutivas. Dentre essas, há uma classe bastante especial e complexa: a das divindades individuais. É nesta que encontraremos as duas hipóstases apresentadas no primeiro parágrafo deste artigo: o chi e o ori, pertencentes, respectivamente, à teologia igbo e à ioruba.

A palavra ioruba “ori” tem uma tradução literal: significa “cabeça”. A amplitude de seu sentido, no entanto, extrapola em muito a fisicalidade do recipiente do cérebro. A teologia ioruba diz que, antes de encarnar, cada ser humano escolhe um destino, sancionado por Deus. Esse destino será encapsulado no que é conhecido como ori inu (literalmente, “cabeça interna”) e deslocado da consciência durante os nove meses em que a alma viaja para habitar o corpo em gestação no ventre materno. Ao longo da vida de um indivíduo, este deve trazer à consciência – “lembrar” – e realizar aquilo que está involucrado na cabeça interna. Se diversas instâncias definidoras da vida humana são coletivas – odus, orixás –, o ori é inteiramente individual. Não há dois oris semelhantes em toda a existência. Não há destino que se viva por dois; não há vida que se repita.

O ori – sede da individualidade na cultura ioruba – recebe uma representação icônica em uma pequena escultura cônica cravejada de búzios; chama-se o ile ori, a casa de ori. Os igbos, por sua vez, dão à sua individualidade hipostasiada um caráter mais abstrato. Não há, que se saiba, representações esculturais do chi, nem há a associação deste com alguma parte do corpo. Em seu ensaio fundamental “Chi in Igbo Cosmology”, o romancista igbo Chinua Achebe aponta uma associação entre o chi e a luz do sol – associação que ele acreditava inicialmente ser uma fortuita homonímia, mas descobriu, em seus estudos, que o chi de fato é entendido como um fragmento da luz do sol que vem fornecer o estofo da individualidade de cada ser humano. O nome de Deus entre os igbos – Chukwu – significa, exatamente, “O grande Chi”, sendo Deus a fonte do entendimento, assim como o sol é a fonte da luz. Tal ideia não está longe das teorias do teólogo igbo Emmanuel Anizoba, que entende a cosmogonia igbo como uma particularização de fragmentos de luz a partir de uma escuridão ubíqua inicial, o qual ele identifica com o espaço em estado bruto. Achebe lembra mitos em que personagens humanos ou animais desafiam seu próprio chi e acabam sendo totalmente destruídos. A ideia por trás do chi, segundo Achebe, é a de que “se algo há, algo há ao seu lado”, sendo que, na relação entre o ser humano e seu chi, o ser humano existente na Terra corresponde à parte mais fraca. De fato, tão poderoso é o chi que os igbos dizem: “Não importa quantas divindades se reúnam para tramar a ruína de uma pessoa; não dará em nada se o chi dessa pessoa não estiver entre elas”.

Achebe lembra que a ideia de individualismo é rastreada até o Cristianismo e a noção de que Deus criou todos os seres humanos, que seriam, então, dignos de sua luz. Bem-humorado, ele aponta que “os igbos fazem ainda melhor. Eles postulam o conceito de que cada ser humano é uma criação singular e obra de um criador singular. Que é o mais longe que o individualismo e a singularidade podem ir!” Essa observação talvez possa ser aplicada ao conceito de chi tanto quanto ao de ori. Ambos sugerem que nossa individualidade supera mesmo nossa existência terrena, tendo sua sede na própria fonte da criação. A noção expressa no provérbio igbo de que “não importa quantas divindades se reúnam para tramar a ruína de uma pessoa; não dará em nada se o chi dessa pessoa não estiver entre elas” se encontra com um mito iorubá em que um grupo de orixás tenta causar dano a uma mulher, mas são sublevados por seu ori, que os joga, com força, de volta ao local de onde vieram. Por sua vez, esse mito tem eco em ainda outro, no qual os orixás têm testada sua capacidade de acompanhar um devoto em uma viagem de ida e volta sem parar no caminho. Todos os orixás se mostram incapazes, pois acabam parando em suas cidades-natais para reencontrar seu povo. Apenas Ori é capaz de fazer isso, já que Ori não tem pátria senão seu próprio devoto, está assentado na subjetividade da pessoa que o cultua. No entanto, é bom lembrar que se chi e ori são centros organizadores da existência do sujeito na Terra, sua caminhada não é possível sem o concurso de outras divindades, sem uma cultura que dê forma às suas intuições e sem uma comunidade com a qual essa individualidade possa se relacionar.

Esses conceitos nos apresentam noções radicais de individualidade, muito longe do coletivismo sem rosto que frequentemente é atribuído às culturas africanas. Durante muito tempo, acreditou-se que os seres humanos considerados “primitivos” (entre eles, é claro, os africanos), não tinham qualquer noção de individualidade, não conseguindo muitas vezes se diferenciarem uns dos outros. Como vemos, a individualidade, nesses dois exemplos que vimos, não só existe como se constitui no ponto focal da vida espiritual e social de cada ser humano sobre a Terra.

Adriano Moraes Migliavacca

Adriano Moraes Migliavacca é tradutor e doutor em letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul