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Hegel: “Certamente você me vê”

por Maurício Vieira Martins, em parceria com a ANPOF

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Os biógrafos de Hegel relatam que em 1819, persuadido por seus alunos, ele resolve fazer um passeio de barco à meia noite, com um intento não usual: visitar um de seus seguidores, Leopold von Henning, preso pelas autoridades prussianas sob a acusação de dissidência.[1] Mas não se tratava de uma visita consentida pela direção do presídio. Na verdade, o barco passaria em frente à cela do prisioneiro – às margens do Rio Spree -, e Hegel poderia manifestar sua solidariedade a ele. Quando o barco se avizinhou da cela, Hegel começa a proferir para von Henning, num tom ao mesmo tempo sério e jocoso, algumas palavras em latim, dentre elas “num me vides” (“certamente você me vê”, em tradução livre). A presença de um guarda armado evidenciava o perigo da empreitada, e Rosenkranz — o primeiro biógrafo de Hegel — acrescenta também que uma bala das forças de segurança facilmente atingiria o filósofo.

Este pequeno episódio condensa alguns aspectos relevantes da vida e do pensamento de Hegel. Sua afirmação da possibilidade de consciências distintas se comunicarem, seu apreço pela solidariedade intersubjetiva, seu distanciamento do solipsismo (que supunha a existência de consciências isoladas). “Num me vides”, certamente você me vê: reconhecimento de duas consciências, tema caro ao filósofo, ainda que em circunstâncias adversas. Hegel reconhece von Henning, mesmo estando preso, e reciprocamente sabe também que von Henning o reconhece. Incidentalmente, superar o medo da morte, nós lemos na Fenomenologia do Espírito, é condição necessária no itinerário da consciência em direção às suas formas mais elevadas. Se hoje, no nosso século XXI, a ausência de reconhecimento recíproco chega às raias do grotesco, cabe prestar aqui esta brevíssima homenagem ao grande filósofo, cujo nascimento foi em 1770, há exatos 250 anos atrás.

Mas Hegel tinha interesses tão amplos e escreveu sobre temas tão diversos que é uma tarefa árdua escolher um deles para, mesmo que brevemente, homenageá-lo. Como deixar de fora precisamente as diferentes fases do itinerário da consciência, analisadas com vagar na Fenomenologia do Espírito, esta obra-prima intimidadora (intimidating masterpiece), nas palavras de Robert Brandom? Como não mencionar a importância seminal de suas Lições de Estética — texto publicado postumamente —, onde o filósofo não se satisfaz apenas com uma análise formalista da obra de arte e nos mostra que ela é pervadida por pensamento (donde a necessidade de ultrapassar sua forma sensível, rumo à dimensão pensante da obra). Aqui, sabendo que deixaremos de fora a imensa riqueza destas e outras contribuições,[2] mencionaremos apenas um aporte de Hegel particularmente instigante, as chamadas essencialidades, ou determinações de reflexão (die Reflexionsbestimmungen).

Tratam-se de pares categoriais, como essência e aparência, identidade e diferença, forma e conteúdo, etc, que Hegel desenvolve no Segundo Livro da Ciência da Lógica, a Doutrina da Essência. É lá que o filósofo toma a si a tarefa de superar o tratamento antinômico recebido por estas categorias ao longo de toda uma tradição de pensamento. Com este intuito, Hegel nos mostra, por exemplo, que a aparência de um fenômeno não é algo separável de sua essência. Em suas palavras:

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. . . o que se contrapõe a ela [a essência] é apenas aparência. Só que a aparência é o pôr próprio da essência.  [ . . . ] [E]ssa aparência não é um externo, um  outro  com  respeito  à  essência, mas sua aparência própria. O aparecer da essência dentro dela mesma é a reflexão.[3]

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A elaboração hegeliana sobre as determinações de reflexão alcança uma visualização muito singular do reviramento (Umschlagen) das categorias filosóficas umas sobre as outras. Distanciando-se de uma milenar tradição que supunha que o avanço de uma investigação consistia em estabelecer limites bem definidos entre os objetos que estuda, Hegel nos oferece um antídoto vigoroso contra percepções antinômicas da realidade, que ainda hoje proliferam em vários setores acadêmicos. Pensemos nas intermináveis polêmicas que visam estabelecer uma linha demarcatória entre a filosofia e a ciência, formulando-as como atividades qualitativamente distintas do  pensamento;  pensemos nos rios de tinta que já foram vertidos por aqueles que pretendem essencializar tal suposta diferença entre filosofia e ciência. Pois bastaria meditar sobre o título de a Ciência da Lógica hegeliana (Wissenschaft der Logik) para constatar que já ali — e mais ainda no corpo do texto — o filósofo nos indica um caminho todo outro a ser trilhado, que não essencializa uma divisão seja entre ciência e lógica, seja entre ciência e filosofia. Tal ocorre devido a uma percepção muito aguda por parte de nosso autor do caráter reflexionante da razão (Vernunft), que ao invés de buscar isolar seus objetos — como faz o entendimento (Verstand) — consegue formulá-los em sua interpenetração.

Mas Hegel vai mais longe ainda em sua abordagem das determinações de reflexão, e nos mostra que o movimento das categorias lógicas é também um movimento do próprio real. Dentre os vários estudiosos do filósofo que tornaram mais evidente este aspecto de seu pensamento, recordemos as palavras de Stephen Houlgate: “a Ciência da Lógica é simultaneamente uma lógica e uma ontologia — fornece uma narrativa tanto das categorias básicas do pensamento como das determinações constitutivas do próprio ser”.[4] Dito de outro modo, ao invés de Hegel endossar aqueles que promovem uma cisão entre pensamento e realidade (sob o argumento de que se tratariam de dimensões distintas do ser), ele nos mostra que mesmo as categorias abstratas possuem um substrato ontológico. É por isso que o conhecido interesse de Hegel pela história, longe de ser um aspecto apenas acessório de sua filosofia, expressa seu modo próprio de compreender o mundo vivo da experiência humana.

Por fim, recordemos que há quem diga que a importância de um autor pode ser aferida não só pela consistência de sua contribuição à área onde ele se situa, como ainda pela repercussão de sua obra no âmbito mais geral da cultura humana. Também por este critério, o pensamento de Hegel é particularmente fecundo. Pois se nos permitirmos, numa leitura um pouco mais livre de seus textos, perquirir o impacto de suas formulações na posteridade, veremos que são bem conhecidas, por exemplo, certas marcas dialéticas presentes na obra de Marx. Pensemos na formulação marxiana sobre a relação entre capital e trabalho; ela é formulada de tal forma que cada um destes polos simplesmente não pode ser definido sem uma referência (reflexionante, se se quiser) ao seu outro. Mesmo num texto de divulgação, como no Manifesto Comunista, Marx e Engels ironizam aqueles que “querem a burguesia sem o proletariado” — recorrente utopia empresarial —, desconhecendo o nexo interno entre estas duas categorias. Não existe capital que prescinda do trabalho humano, e isso ocorre mesmo no nosso século XXI, quando um segmento (minoritário) da economia usa robôs em sua produção. Este sonho empresarial — do capital absoluto… — não resiste à análise objetiva (que o diga a violenta reação do poder constituído diante do mero anúncio de uma greve): ele é apenas um exemplo da fragilidade das suposições que acreditam poder isolar categorias que na verdade constituem um todo.

Concluindo esta menção extremamente sumária do impacto de Hegel sobre outros saberes, poderíamos trazer um exemplo do que se convencionou chamar, de alguns anos para cá, dos estudos da subjetividade. Sobre isso, uma nota pessoal: nos idos dos anos 90, quando fazia a leitura de alguns textos hegelianos, tomei contato com uma excelente categoria do filósofo, Sichanderswerden, habitualmente traduzida para o português como “tornar-se-outro”. Pois bem, por uma dessas injunções felizes, foi também nesta época que conheci o interesse do psicanalista francês J. Lacan pela obra de Hegel[5]. À medida que os estudos avançavam, fui me dando conta, na teoria e na prática, de como pela via da palavra e da enunciação um sujeito pode tornar-se outro daquele que originalmente era. Este caráter reflexivo, retornado, da consciência sobre si mesma tornou-se particularmente transparente. Foi impossível não lembrar de Hegel.

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Retrato de Hegel por Jakob Schlesinger, 1831

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Notas:

[1] Além da clássica biografia de K. Rosenkranz, o episódio é relatado com maior detalhamento no trabalho de Terry Pinkard, Hegel: A Biography. Cambridge University Press, 2001, pp. 449-450.

[2] Examinei a importância de outras contribuições de Hegel — como a abordagem inovadora da contradição em seu pensamento — em meu artigo Hegel, Espinosa e o marxismo: para além de dicotomias. Revista Novos Rumos, Marília, v. 57, n. 1, p. 29-46, Jan.-Jun., 2020.

[3] HEGEL, G.W.F. Ciência da lógica: 2 A doutrina da essência. Petrópolis: Vozes, Bragança Paulista: Edusf, 2017, pp. 35-37.

[4] Houlgate, S. “Substance, Causality, and the Question of Method in Hegel’s Science of Logic”. In: Sally Sedgwick (ed.). The Reception of Kant’s Critical Philosophy. Cambridge (USA): Cambridge University Press, 2000, p. 234.

[5] E aqui, sequer discutimos a pertinência da leitura lacaniana de Hegel, fortemente influenciada por A. Kojève.

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Maurício Vieira Martins

Maurício Vieira Martins é Professor do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense e Doutor em Filosofia pela PUC-Rio.