Artes

Lançamento: “Quando a arte encontra a moda”, de Laura Ferrazza

Quando a arte encontra a moda: a obra de Antoine Watteau na França do Século XVIII

Introdução

Por que todo este mundo de imagens perfeitamente visíveis até hoje não foi devidamente estudado? O que, na História da Arte, como disciplina e como ‘ordem de discurso’, pode manter tal condição de cegueira, tal ‘vontade de não ver’ e de não saber? Quais são as razões epistemológicas de tal negação?

(Georges Didi-Hubermann, Ante el tempo. Historia del arte y anacronismo de las imágenes)[1]

A moda é certamente um dos temas de maior interesse na contemporaneidade. Mesmo no universo acadêmico assistimos a um crescimento sem igual de publicações e pesquisas nas mais variadas áreas que tentam compreender o fenômeno da moda. É a frivolidade levada à sério, incitando o pensamento em campos do conhecimento como a comunicação, a arte, a antropologia, a sociologia e a história.

O conteúdo da presente obra nasceu do desejo de unir meus conhecimentos acerca da história da moda[2]com a história da arte. É o resultado de minha tese de doutorado, que tem como ponto de partida o debate teórico sobre a questão da história das imagens. Com o desenrolar de minhas pesquisas, decidi me concentrar na relação entre a moda e a arte do século XVIII francês; por fim, veio a decisão de centrar os estudos na produção artística de Antoine Watteau (1684 – 1721), que despertou meu interesse quando pesquisava sobre figurinos de cinema. O tema central desse livro é a relação entre a obra de Antoine Watteau com o universo da moda. Cabe, aqui, esclarecer a seguinte questão: por que, dentre os artistas do século XVIII, escolhi especificamente Watteau?

Após a célebre retrospectiva de 1984, em comemoração ao tricentenário do nascimento desse artista, as pesquisas acerca de sua obra tomaram novas direções. Antes, predominava o estudo iconográfico, com ênfase na significação e na recepção de seus trabalhos tanto na França como no exterior. A partir de 1984, algumas análises passaram a se concentrar no meio no qual o artista viveu: os amigos, os comerciantes e os colecionadores que o cercavam. Além disso, surgiram reflexões ligadas à filosofia estética e às implicações psicológicas, sociológicas e políticas de sua arte – além de outros temas[3]. Contudo, embora tenha havido uma gradual e incipiente aproximação entre a produção artística de Watteau e a moda, o tema ainda não havia sido objeto de uma pesquisa específica.

O conteúdo apresentado nesse livro é, portanto, um trabalho inédito tanto no Brasil como no exterior, com o potencial de despertar reflexões novas em uma área já bastante estudada. No final do século XX, Watteau parecia um objeto historiográfico saturado de discursos e de representações. Analisar sua obra pelo viés da moda pareceu-me um modo de abrir caminhos frescos em um terreno já muito repisado.

Quem quer que estude a obra de Watteau deve haver-se, necessariamente, com alguns problemas referentes à confiabilidade, ao rigor e à coerência das informações disponíveis. Existem controvérsias quanto à atribuição de autoria e alguns dados biográficos; no primeiro capítulo, abordo essas e outras polêmicas. Para alguns estudiosos, tais incertezas perturbam a leitura de sua produção[4]; por minha vez, considero que podem enriquecer a análise. Além disso, uma abordagem multidisciplinar é de grande pertinência para pensar a respeito de um pintor complexo, cuja obra estabelece múltiplas relações.

A realização desse livro começou a tomar corpo após uma temporada de estudos e pesquisas na Universidade de Paris I, no setor de História da Arte da Sorbonne, sob a tutela do professor Etienne Jollet, especialista em pintura francesa do século XVIII. Assim, foi possível acessar uma ampla bibliografia e fontes inéditas de pesquisa. A partir dessa experiência, definiu-se um questionamento: de que maneira a obra de Watteau se relaciona com a moda não apenas da França de seu tempo, mas com a história da moda como um todo? Essa questão está intrinsecamente ligada a uma outra:  as imagens de Watteau criam a moda ou elas representam modelos que já estão em moda? Essa questão será explorada ao longo do livro e respondida na conclusão.

A construção da pesquisa se deu através da análise de dois tipos de imagem. A principal fonte foram um conjunto de gravuras realizadas por outros artistas a partir de desenhos de Watteau; tais gravuras, feitas segundo a técnica da água-forte, receberam o nome de Figures de Différents Caractères[5]. O conjunto dessas figuras encontra-se nos dois primeiros tomos do chamado Recueil Julienne, um compêndio que pretendia abarcar a obra completa de Watteau – os dois últimos tomos reúnem suas pinturas. Além disso, analisei também – em menor medida – pinturas à óleo do mesmo artista. Todas essas imagens foram produzidas na França do século XVIII, mas levei em consideração algumas relações entre elas e imagens de outras temporalidades. Escolhi esse tema ao observar a atenção dedicada pelo artista à representação das vestimentas; existe, inclusive, um traje do século XVIII que foi batizado com seu nome, “o vestido de Watteau” ou “pregas Watteau”[6]. Tal traje mereceu uma retrospectiva que se encontra no primeiro capítulo.

Entre os objetivos dessa obra está a reflexão sobre a maneira com que o traje e/ou a moda participam na constituição da visualidade de um artista. Foi necessário analisar a construção da memória em torno dos trajes presentes nas obras de Watteau. A ideia é, percorrer, através das imagens selecionadas, o território que os trajes e a moda ocuparam na obra do artista. Por fim, é preciso, destacar o papel desempenhado pela roupa na construção da gestualidade e do movimento das figuras desenhadas pelo artista e reproduzidas em gravura.

Ao escolher pinturas e gravuras para análise, tinha em mente a importância da reflexão sobre a historicidade das imagens. Nesse sentido, foi pertinente ponderar sobre quais relações as imagens selecionadas estabelecem com as sociabilidades e as formas de vestir da época em que foram produzidas. Além disso, analisei a estrutura do traje, que atribui uma forma específica ao corpo e modela seus movimentos. Ao longo desse processo de análise, surgiu mais um questionamento: como as imagens selecionadas apresentam as formas vestimentares e colaboram na construção do fenômeno da moda?

Evoquemos a epígrafe que abre a introdução do livro. Nela, Didi-Hubermann denuncia os silêncios acerca de formas artísticas que estão ali, mas sobre as quais parece haver uma cegueira proposital. A partir da reflexão trazida por esse autor, voltei-me para meu objeto de pesquisa e pensei: afinal, por que a latente relação entre a obra de Antoine Watteau e a moda não havia ganho ainda a devida atenção?

[1]DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo. Historia del arte y anacronismo de las imágenes. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2011, p. 33. OBS: As notas pode ficar no final de cada capítulo ou no final do livro e devem obedecer a numeração aqui colocada.

[2]Refiro-me especialmente à minha dissertação de mestrado: LIMA, Laura Ferrazza de. Vestida de frivolidades: a moda feminina em suas visões estrangeira e nacional na revista O Cruzeiro de 1929 a 1948. Dissertação de mestrado apresentada no programa de pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2009. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/21562/000729453.pdf?sequence=1

[3]GLORIEUX, Guillaume. Watteau. Citadelles & Mazenod: Paris, 2011.

[4]Como por exemplo: GLORIEUX, Guillaume. Watteau. Citadelles & Mazenod: Paris, 2011. DACIER, Émile; VUFLART, Albert. Jean de Jullienne et les graveurs de Watteau au XVIIIe siècle. Paris: Publication de la société pour l’étude de la gravure française, 1921. 4 v.

[5]Na presente obra, utiliza-se, também, a expressão traduzida para o português: “Figuras de Diferentes Caracteres”.

[6]BOUCHER, François.  Historia del traje en occidente. Barcelona, Espanha: Editora Gustavo Gili, 2009. p. 262. LAVER, James. A roupa e a moda:uma história concisa. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 127 – 148.