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As lições emocionais da COVID-19

por Flavio Williges

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Na edição de 27 de março, o Jornal Nacional da Rede Globo fez uma bela matéria com depoimentos de familiares e amigos de pacientes que morreram por complicações de coronavírus, como a maestrina e regente do Coro da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), Naomi Munakata, e o motorista de aplicativo Antônio Brito dos Santos. Também foi apresentado um relato de uma jovem de Minas que sobreviveu à doença e pedia, de forma emocionada, para as pessoas ficarem em casa. No Programa Fantástico, do último domingo, novamente foram apresentados vários depoimentos de médicos, enfermeiros e um pequeno filme de um enterro, uma despedida sem velório, solitária, num caixão lacrado, quase como se não fossemos corpo, o corpo mesmo do qual se alimenta o vírus.

A Globo fez bem ao criar esses cenários de comoção e forte estímulo emocional em relação à epidemia do coronavírus. Estimular emoções altruístas como a compaixão e piedade pelo sofrimento, bem como sentimentos de reverência pela vida e reconhecimento de nossa fragilidade é útil nesse estágio inicial da crise da Covid-19. Vários estudos no campo das ciências afetivas e da filosofia das emoções têm mostrado que emoções não são sensações brutas ou meras reações fisiológicas. Elas ajudam a perceber e avaliar escolhas e ações que precisamos fazer, bem como as pessoas que encontramos diariamente.

As emoções da compaixão, piedade e empatia são importantes para notar, por exemplo, a dor de famílias que tiveram perdas, ajudar com doações e serviços às vítimas e cooperar (ficando em casa, seguindo orientações de saúde) na redução do drama pessoal de médicos e enfermeiros obrigados a trabalhar com recursos escassos e expostos ao risco constante de contaminação no exercício de suas profissões. Um certo grau de medo, um certo grau de ansiedade e preocupação (care) também tem um papel importante aqui, servindo para ativar nosso sistema de alerta diante dos riscos que a epidemia coloca para a preservação de nossas próprias vidas e de nossos familiares. Todas essas emoções (compaixão, piedade, empatia, medo, preocupação) cumprem uma tarefa importante, nesse sentido, pois capacitam as pessoas a perceberem a ameaças, precauções e os contornos morais da crise da Covid-19, aspectos que, sem elas, não seriamos capazes de enxergar e avaliar.

António Damásio, no ‘Fronteiras do Pensamento’

A valorização das emoções e, especialmente, das nossas respostas emocionais mais introspectivas, de recolhimento e tristeza, não tem atraído muitos adeptos na cultura contemporânea. Somos frequentemente instados a reproduzir comportamentos ativos, agressivos, próximos do orgulho e da exibição de poder e superioridade. Na fala coloquial, emoções são também mais lembradas como fontes de distorção da realidade, como ocorre quando, tomados de raiva e desprezo, não conseguimos notar qualidades evidentes de nossos adversários, ou nos entregando a escolhas erradas, como decorre da ilusão do falso amor. Admite-se geralmente que somente processos racionais independentes podem revelar aquilo que devemos observar, cultivar e valorizar. Esse é um erro bastante comum, derivado, em grande medida, da longa tradição de pensamento ocidental e oriental que colocou emoção e racionalidade em lados opostos. Sabemos hoje, graças ao estudo de neurocientistas como António Damásio e Joseph Ledoux, que danos em setores do cérebro que respondem por funções emocionais afetam o raciocínio, podendo levar a dificuldades intransponíveis para execução de tarefas rotineiras (como decidir quando visitar um médico). A razão sozinha pode ser excelente para levantar argumentos a favor ou contra os custos pessoais de salvar uma vida, por exemplo, mas não saberíamos decidir se é melhor salvar alguém ou ficar em casa e deixá-lo morrer se confiássemos somente em nosso raciocínio. Pesa fortemente nesse tipo de decisão a seleção de alternativas promovidos pela memória emocional de longo-prazo e memórias operativas que nos ajudam a coordenar ações com valores diversos e o significado que damos às nossas vidas. Nesse sentido, pode-se dizer que são as emoções que, em momentos cruciais, nos ajudam a perceber o que tem valor e importa para nós. Como disse Daniel Goleman, o psicólogo que popularizou a relevância do estudo emoções, “são as nossas emoções que nos orientam quando diante de um impasse e quando temos de tomar providências importantes demais para que sejam deixadas a cargo unicamente do intelecto- em situações de perigo, na experimentação da dor causada por um perda, na necessidade de não perder a perspectiva apesar dos percalços” (Goleman, 2012, p. 30).

Daniel Goleman

A exploração da comoção e vulnerabilidade, relevante nesse momento e que tem sido levada a cabo por canais de televisão e outras mídias, tem, contudo, um prazo de duração. Ela não deve se estender por muito tempo. Emoções podem salvar, literalmente, nossas vidas, mas também podem nos prender numa espiral afetiva dolorosa e incapacitante. As emoções não só direcionam nossa atenção a objetos e eventos com significado potencial ou importância para nós, mas também podem consumir nossa atenção, mantendo controle sobre nós, de uma maneira que torna difícil mudar o foco. O medo, a culpa, a tristeza, que funcionam como interrupções de curto prazo de nossa vida mental, em virtude das quais notamos certas coisas, podem, quando alimentadas desmesuradamente, persistir e dominar nossas vidas: nós continuamos focados e atentos ao perigo, às perdas, ao sofrimento, sem enxergar saídas. Isso vem já acontecendo com muitas pessoas que relatam dificuldades para trabalhar, dormir tranquilamente, mesmo estando em casa, próximos daqueles que amam. O medo, principalmente, ampliado pelas notícias constantes da escalada de mortes e de cenários econômicos catastróficos tem dificultado a formulação de juízos ponderados acerca dos riscos reais colocados pela crise do coronavírus.  Como um sistema de alerta modelado pela evolução e cultura, que atua em consórcio com a memória, vontade, imaginação e pensamento, a persistência de emoções fortes, sem mecanismos intermediários de avaliação racional, pode levar ao bloqueio de capacidades avaliativas e reconstrutivas. Se emoções, como lembrei antes, nos ajudam a navegar pelo mundo, em situações de estresse extremo, quando estados emocionais persistentes tomam conta de nós, elas podem embaralhar nossas cartas, deixando-nos sem saber o que jogar. Nessas situações, não conseguimos recuperar memórias de longo-prazo sobre ameaças e criar memórias operativas, que nos ajudem a lidar com os riscos e traçar caminhos. As emoções que normalmente envolvem mobilização e direção de mecanismos atencionais a fim de provocar uma análise mais detalhada dos estímulos e aperfeiçoar a sua representação, passam a ser então obstáculos para avaliações e outros processos reflexivos necessários para sobrevivência.

É isso que mostram diversas psicopatologias de fundo afetivo como formas severas de depressão, formas doentias de culpa ou de ansiedade; elas costumam mostrar que emoções podem levar a formas de despersonalização, perda de foco, falta de direção e apatia, distanciando muitas pessoas de suas identidades e projetos fundantes. Como morador de Santa Maria, a cidade do RS que ficou conhecida mundialmente pela tragédia da boate Kiss, onde morreram 242 pessoas, muitas delas sufocadas por gases envenenados, sei bem como é passar por uma experiência devastadora e traumática. É um processo longo, que a maioria das pessoas consegue superar, embora algumas precisem de acompanhamento emocional e psicológico por vários anos, e um pequeno número nunca consiga se libertar do trauma vivido. O turbilhão de emoções que está agora aflorando e que tende a se intensificar no futuro próximo carrega esses riscos.

O segundo momento de enfrentamento da crise da Covid-19 tem sido tratado na imprensa como um momento de reconstrução econômica. De fato, teremos desafios imensos pela frente no campo do emprego e reconstrução da economia. Certamente sairemos da crise mais pobres e enfrentaremos um cenário de muito sofrimento e pessimismo. Nesse segundo momento a exploração excessiva das emoções altruístas, do medo e comoção se tornará perigosa, devendo os meios de comunicação centrarem sua atenção em perspectivas reconstrutivas, menos dramáticas, que gerem confiança e foco.

Se agora é a hora de viver a dor do outro, mostrar solidariedade e identificar riscos à vida, em breve precisaremos estimular as emoções e sentimentos psíquicos que nos ajudarão a lidar com o medo, a desilusão, oferecendo esperança e o senso de propósito necessário à reconstrução pessoal e dos nossos laços comunitários tão desgastados.

Voluntário no combate aos efeitos da crise no estado de Iowa, nos EUA. Fotografia de Charlie Neibergall/AP.

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Referências:

DAMASIO, António. O erro de Descartes. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

GOLEMAN, Daniel. Inteligência emocional. Rio de Janeiro: objetiva, 2012.

LEDOUX, Joseph. The emotional brain. New York: Simon & Schuster Paperbacks, 2015.

Flavio Williges

Flávio Williges é professor de ética e epistemologia no Departamento de Filosofia da UFSM e especialista em Filosofia das Emoções.