Cinema

Sobre santuários e matadouros

por Lúcio Aguiar

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In Memoriam: para Chico Moreira e Clóvis Molinari 

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Quando, em 1977, proibiram a realização da Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) na cidade de Fortaleza, por uma brecha legal, o evento acabou ocorrendo no espaço privado da PUC-SP, graças a D. Paulo Evaristo Arns, resultando em centenas de apresentações da fina-flor do pensamento acadêmico da época, atraindo um volume muito maior de ouvintes e de produção de conhecimento, suficiente na prática para anular aquele ato censório. Mais que um evento, esse encontro tornou-se uma comunhão de conhecimentos, graças às centenas de associados paulistanos da SBPC que abriram suas casas para hospedar cientistas, estudantes e intelectuais de outros estados, algo inédito em nossa vida científica e cultural. A maior dificuldade, então, tornou-se saber em qual mesa ou comunicado ir, dada a quantidade de opções simultâneas. Em uma dessas circunstâncias acabei assistindo à intervenção de 15 minutos de Darcy Ribeiro sobre o Exercício do Óbvio, essa necessidade científica em verbalizar o que é evidente.

Talvez seja perene essa qualidade do óbvio, mas no atual estágio rude e primitivo de nossas relações sociais, buscar o óbvio significa desvelar o envoltório do senso comum. Vivemos um apartheid ideológico que anula o óbvio com um senso comum dogmático e superficial no qual a dissensão é fundamental para sustentar a fragilidade estrutural de cada lado em contenda. A principal vítima dessa disputa de intolerância mútua é a secular pluralidade da Cultura Brasileira, independente de raça, credo ou cor, independente de viés, narrativa ou ressignificação. Sempre fomos múltiplos e plurais e estamos em franco processo de extinção.

Este genocídio intelectual se traduz sobretudo na ausência de algum movimento artístico significativo e inovador e em gestores neófitos, pouco afeitos à área, processo recivilizatório agravado pela falta do diálogo imposto por um combate intestino estéril, pueril e militante, devido aos extremos em disputa, marcado pela ausência total da busca de um ponto de equilíbrio capaz de tocar a vida para frente e recolocar as ideias fora do lugar no eixo do caminho do meio.

Independentemente dessa correlação entre Genocídio Cultural e Apartheid Ideológico, a atividade produtiva em sociedade precisa, para sua reprodução, de permanência do acesso a fontes de financiamento e circulação de sua produção. A opção pelo capital financeiro nos atrofiou e afeta diretamente nossa continuidade pessoal ou nacional, sobretudo na produção cultural, pelas sucessivas crises articuladas com essa opção, porque qualquer nação só é um agregado societário em função de sua cultura e de sua memória histórica e social em comum transmitida entre os habitantes de seu território. Se a memória e a difusão do conteúdo produzido nacionalmente são apagadas, entra-se em um processo de deculturação, marco inicial do fracionamento nacional.

Seguindo na constatação do óbvio, fica evidente a resultante desse confronto a partir da paralisação da Cinemateca Brasileira e do engessamento de todo o sistema de produção audiovisual pela inação da Agência Nacional do Cinema (ANCINE). Essa espécie de morte anunciada tem sua origem em fatos ocorridos num passado recente, entre 2013 e 2014, ora agravadas pela ausência de uma política cultural no atual governo, sobretudo neste ano de pandemia, quando deveria ser maior a sensibilidade do setor público para uma atividade econômica como o Audiovisual, responsável por mais de 30 mil empresas em todo o Brasil e pela geração de 300 mil empregos diretos, capaz de retornar em impostos e tributos regionais muito do que recebe em subsídios, produzindo um efeito multiplicador na Economia, fora a geração de identidade nacional que nos mantém unidos enquanto povo brasileiro, para citar novamente Darcy Ribeiro.

Por trás de ambas as crises citadas, o mesmo denominador em comum gerado por excesso de zelo de agentes públicos levando a um efeito nocivo sobre a sua cadeia de subordinação, provocando, na prática, um dano econômico superior à eventual correção de dolo a qual objetiva suprimir. Vivenciamos por mais de 15 anos o resultado da ingerência imposta pelo Tribunal de Contas da União (TCU), sem instância recursal técnica específica, sobre avaliação e metodologia de prestações de contas, considerando toda forma de fomento indireto como convênio conjuntamente à ação pretérita da Controladoria Geral da União (CGU) sobre o convênio estabelecido entre Ministério da Cultura e Sociedade dos Amigos da Cinemateca (SAC), origem do atual sufocamento das funções da Cinemateca Brasileira.

Ninguém quer fugir à obrigação de prestar contas. Afinal, ela é intrínseca tanto à iniciativa privada como à economia doméstica, logo, natural de constituir parâmetro para uso de quaisquer formas de recursos obtidos. Entretanto, como reiteradamente é falado por todos os profissionais do audiovisual, desde o final do século passado, buscamos equilíbrio e instâncias recursais para excessos de análises e avaliações que não levam em consideração as especificidades de um sistema de produção prototípico e sazonal. Pela ausência de entendimento quanto a essas especificidades, igualando o Audiovisual a uma licitação de obra pública de compra de remédios ou construção de escola, o TCU tornou-se involuntariamente um dos piores obstáculos enfrentados em toda a história audiovisual brasileira, nos legando a atual paralisia do setor, agravada pela baixa ou nula compreensão da administração pública atual quanto à importância da Cultura na coesão de nossa sociedade.

Se agregarmos o processo de renovação de convênios com a Cinemateca Brasileira e mesmo a sua estruturação em Organização Social entenderemos como este quid pro quo determina o atual estado terminal de todo sistema audiovisual, com consequências nefastas em termos de cultura e soberania nacionais.

Se a atual crise sinaliza a possibilidade de um final deste ciclo audiovisual de financiamento normatizado desde os anos 1990, precisamos pautar a superação desse conflito, como em ciclos anteriores, abarcando uma espécie de Entente Cordiale entre todos os agentes envolvidos e buscar a estruturação de formas de financiamento e gestão blindados, capazes de tornar imorredouro o sistema de produção, circulação e preservação de conteúdo audiovisual.

Precisamos de mais Law and Economics e menos panóptico foucaultiano, ou seja, mais “Análise Econômica do Direito” e menos “Vigilância e Punição”.

A todas presentes obviedades somam-se fatores limitantes inalterados em nossa história audiovisual, sempre consoantes com a política econômica de Estado que determinaram ser mais um estranho em seu território, citando a máxima de Paulo Emílio Salles Gomes, Patriarca da Cinemateca Brasileira.

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Paulo Emílio Salles Gomes

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O primeiro fator limitante diz respeito à dependência tecnológica. Nunca houve qualquer projeto de desenvolvimento tecnológico brasileiro de bens de capital. Apesar do ciclo da substituição de importações da Era Vargas até o atual ciclo neoliberal da Nova República, em nenhum governo, seja de esquerda, direita ou centro, nunca se objetivou o financiamento de pesquisa e desenvolvimento de meios de produção local para a área audiovisual. Essa ausência de uma política de substituição e autonomia tecnológica nos coloca sempre como retroconsumidores de bens de produção desenvolvidos para o hemisfério norte. O avanço tecnológico impulsionado no exterior pelo investimento em pesquisa e desenvolvimento de câmeras, equipamentos de som, iluminação e maquinário, negativos, magnéticos e sistemas digitais nos levou sempre a uma constante reciclagem. Somos hoje o resultado direto de sucessivos ciclos de destruição criadora, cobaias tecnológicas obrigadas a nos adaptar às circunstâncias, sem qualquer ingerência no modelo de produção, exibição e conservação.

Tudo é dado, como se diz no economês. Sempre meço essa situação a partir do preço da lata de 300 metros de negativo 35mm Kodak 5231. Em 1979, quando fiz meu primeiro curta, gastei Cr$ 9.000,00 em 3 latas. Dois anos depois, com a crise da dívida, comprei uma lata do mesmo negativo por Cr$ 140.000,00. Essa espiral inflacionária, aliada ao fracasso da Lei do Curta,[1] levou parte da minha geração a enveredar pelo vídeo independente como forma alternativa de inserção no mercado. Sucessivamente, dos anos 1980 ao anos 2000, fora o aprendizado de tecnologia de vídeo e a estruturação orçamentária derivada desse padrão tecnológico, passamos por sucessivos padrões de captura de imagem, a saber: U-Matic, Betacam SP, Betacam digital, Mini DV, DV Cam, HD Cam até alcançar o digital do 2K, do 4K e em breve 8K. Assim como passamos todos sistema de finalização da Moviola para o Mídia 100, Avid, Final Cut, mudando a nomenclatura de montagem para edição. Nesse processo nem a fita sequer produzimos por aqui. A liberalidade do Estado brasileiro NUNCA se interessou em lidar como em outras economias com o potencial de nossas universidades para criação de tecnologia nacional. Por isto, as duas tentativas de substituição de importação na era do hibridismo entre meio físico e meio digital, entre os anos 1990 e 2000, feitas por Sérgio Arena no sistema de passagem de sinal eletrônico para película e pelos Estúdios Mega no sistema de projeção Rain, não permitiram a reprodução ampliada desses desenvolvedores. Para que criar se podemos importar?

Paradoxalmente, apesar dessa intensa e constante corrida de obstáculos em que a capacidade de adaptação era o único mecanismo capaz de manter o profissional na esfera da realização, houve uma volumosa produção magnética independente e extrabroadcasting ainda não mapeada totalmente e que obriga hoje a preservar também o equipamento original de leitura dessas matrizes para rodar a fita original, visando a restauração ou visionamento do conteúdo produzido. Algo semelhante ao que ocorre agora em relação à mal resolvida preservação de Games.

Um capítulo à parte diz respeito ao sistema híbrido de produção que transcendeu a passagem de vídeo para película (kinescopia), existente desde os anos 1960, através dos padrões Transform (laboratório 4MC) e pelo Transfer (Du Art e outros laboratórios), sobretudo após o êxito das Bruxas de Blair, e de toda a produção dinamarquesa do Dogma 95, incorporando toda uma discussão sobre resolução dinâmica de imagem em decorrência de defeitos da captação magnética ampliados no resultado final em película (moiré, batimentos e contrastes entre altas e baixas de vídeo), trazendo outros desafios de restauração e conservação.

Também temos um déficit de preservação em Super-8, bitola por Excelência para a produção alternativa nos anos 1970. À época dessa produção era comum ouvir, inclusive de cineclubistas, que o Super-8 era monopólio da Kodak, como se os negativos 16mm ou 35mm não o fossem em território brasileiro.

O problema central envolvido com essas matrizes é a sua durabilidade. A gravidade da conservação é o próprio limite da vida útil da matriz, sobretudo nos materiais produzidos dentro da era da obsolescência programada. Todo arquivo audiovisual corre contra o tempo. Por conta disto existe um volume de matrizes cuja deterioração obriga ao descarte e no qual o atual quadro da Cinemateca Brasileira (e do Centro Técnico Audiovisual) agrega fatores externos à má conservação que deveriam ser analisados dentro do prisma da incúria e gestão temerária.

Para reforçar a importância dessa ação técnica qualificada, cabe lembrar que, em todo o mundo, encontram-se preservadas somente dez por cento das matrizes de filmes da fase pré-sonora (final do século XIX até 1930). Isto só foi possível por conta de cinéfilos abnegados como Henri Langlois na França ou por aqui Saulo Pereira de Mello, Paulo Emílio, Cosme Alves Neto, Valêncio Xavier, Guido Araújo e outros tantos a quem peço desculpas pelo esquecimento eventual. Por isso dedico este artigo a Chico Moreira, que preferiu sair do seu cargo a fazer uma “escolha de Sofia” quando lhe formularam na Cinemateca do MAM: “Veja quais dessas latas velhas podemos jogar fora” – conforme me contou o próprio Chico, que optou por avisar aos produtores sobre a situação, virando uma espécie de Noé do Cinema Brasileiro. Por isso este artigo é dedicado a Clóvis Molinari, que acolheu uma parte desse material fadado à extinção no Arquivo Nacional. Porque somente o amor ao Cinema é capaz de fazê-lo sobreviver, como me disse Gustavo Dahl.

Ou seja, todo e qualquer centro de preservação audiovisual não é um repositório de material para cinéfilos, muito menos um museu, é um memorial holístico que guarda esse meio de arquivamento para todo e qualquer ser humano interessado em estudar algum aspecto da vida, civil ou militar, sem limite de área de conhecimento. Uma Cinemateca, assim como o audiovisual como um todo, é interdisciplinar e transversal a vários ministérios, quer dizer, é arte e é indústria, como assinalou Gustavo Dahl em seu texto inaugural da ANCINE.[2] Portanto, o conjunto de matrizes desde o negativo em nitrato passando pelo acetato, pelos padrões magnéticos e híbridos é a nossa memória do século XX, constituindo um patrimônio imaterial da sociedade brasileira, essencial para nossa continuidade enquanto sociedade e nação. Não pode ficar ao sabor de uma ocasional incúria ou irresponsabilidade administrativa. Torna-se obrigatória uma legislação de proteção específica para blindar medidas inapropriadas como as tomadas recentemente.

O segundo fator limitante é a usual dependência de fontes de financiamento. Um fantasma para além de qualquer zeitgeist desde que intelectuais gravitavam em torno de Pedro II para obter benesses do Estado, aquele padrão estudado por Wilson Martins e sintetizado no conceito de “Ideologia do Favor”, formulado por Roberto Schwarz no clássico artigo Ideias Fora do Lugar.[3] Sempre ocorreu uma tendência à cooptação ou à aproximação da esfera do Estado para sobreviver independentemente do mercado consumidor. O próprio liberalismo econômico favoreceu e mesmo agravou essa relação de dependência patrimonialista. A opção preferencial de Estado pelo capital financeiro aliado à subordinação tecnológica teve como consequência a tendência à busca por soluções exclusivamente na esfera do estado-investidor. As próprias entidades criadas na esfera audiovisual centraram o foco em discussões jurídicas e econômicas, deixando a estética de lado. Por isso, talvez, o feijão-com-arroz da televisão, com um modelo de negócios, embora tutelado, com uma produção centrada na decupagem acadêmica e primária, tenha encantado tanto o público. Tinham uma atração economicamente viabilizada por anunciantes que permitiu sua reprodução continuada por mais de 40 anos sem necessidade de financiamento público à produção, pelo menos, até as “Globochanchadas” e as “Fábricas de Casamento”…

A associação desses dois fatores limitantes resulta no terceiro fator: o Efeito-Demonstração. Copiamos o exitoso como garantia de financiamento. Os limites nos impõem a repetição e acaba redundando em subgêneros associado a um ciclo maior. Se um filme de cangaço é exitoso internacionalmente, dará margem a dopplegängers, uma sucessão de obras miméticas capaz de gerar o subgênero cangaço ou nordestern.

Analogamente, o mesmo efeito-demonstração é experimentado pela esfera pública. As  soluções importadas pela administração federal para o Cinema Brasileiro sempre corresponderam ao modelo econômico importado que adotam. A partir da nossa breve República Weimariana (1934–1937), seguida pelo Estado Novo (1937-1945), passando pela República Liberal (1945-1964), pela Era Militar (1964-1985) até a Nova República Liberal (a partir de 1985), tivemos soluções como o Instituto Nacional do Cinema Educativo (1936 – por sinal, calcado do modelo italiano) e a Lei do Complemento Nacional (em vigor a partir do Estado Novo); GEICINE (1961); Instituto Nacional do Cinema (1966), com funções de regulação e fomento reproduzido do modelo francês do CNC, EMBRAFILME (1969), absorvendo a função de fomento enquanto empresa de economia mista; CONCINE (1975), assumindo a função regulatória; Secretaria do Audiovisual (1992), repetindo o modelo do INC;  Leis de Incentivo de cunho neoliberal, a partir de 1991, principalmente a Lei Rouanet (Lei 8313/9) e a Lei do Audiovisual (Lei 8685/93) até chegarmos na  ANCINE (2002), atualizando o modelo EMBRAFILME X CONCINE no rastro das agências reguladoras, surgidas no contexto de extinção do modelo keynesiano de estado-multiplicador de investimento, por meio de privatizações.

Em suma, do INCE à ANCINE, somente na EMBRAFILME fomos observados enquanto entes econômicos. Por sinal, nesse mesmo intervalo temporal, o Cinema Brasileiro pleiteou sua incorporação à área econômica de estado. Por isso, mais de meio século de luta foi por terra quando a veiculação da agência reguladora ao Ministério da Indústria e Comércio foi desarticulada em favor da veiculação ao Ministério da Cultura, nos trazendo uma série de problemas adicionais que nos levaram por uma comédia de erros até a atual e surreal veiculação com o Ministério do Turismo, fato a ser mencionado no futuro com uma interrogação e uma exclamação.

Em todos padrões de solução acima reportados há um constante intervalo de tempo (?t) entre a promulgação e a consolidação da rotina no novo modelo. A famosa “lei que pega e lei que não pega”. No atual ciclo iniciado no Governo Collor,com a Lei Rouanet duramente criticada à época, seu uso regular levou entre dois a três anos para ocorrer, gerando um efeito-multiplicador secundário em relação às políticas culturais estaduais e municipais que passaram a substituir eventuais financiamentos públicos diretos pela isenção tributária mediada pelo poder público. Assim alcançamos um total superior a 50 leis federais, estaduais e municipais de fomento à Cultura, com o mesmo total de regulamentações e critérios de prestações de contas, posto não haver uma unidade destes parâmetros à mercê das ingerências dos Tribunais de Contas locais de cada alçada envolvida, sempre buscando uma aura de moralidade em suas práticas de vigilância e controle, mais vigorosas e restritivas conforme a esfera local de atuação. Por isso cunhei uma expressão meramente para fins didáticos: “o céu é federal, o purgatório é estadual e o inferno é municipal”.

O quarto fator limitante, contrapartida do Efeito-Demonstração, é o Estigma da Nacionalidade que se traduz em publicidade negativa. Nasce do embate entre o comediógrafo Martins Pena e o dublê de ator e empresário teatral João Caetano pelas fontes de financiamento por tômbolas ou pelo erário público no segundo império e pode ser verificada pela atitude de José de Alencar sempre atacando de forma direta ou indireta a João Caetano, segundo estudiosos, por conta do Empresário nunca ter montado qualquer uma peça do Senador. Talvez essa atitude guarde relação com uma constatação feita por Daniel Filho sobre seus tempos no Teatro de Revista: “se não agradássemos ao público, não teríamos o que comer no dia seguinte”.

João Caetano era criticado por não montar autores brasileiros.[4] Chamava de pachuchadas as comédias de Martins Pena. Como a alegria é a prova dos nove, tivemos um longo histórico de sucesso no gênero cômico, nos legando sucessivamente Arthur Azevedo ou Luiz Peixoto, passando pela geração de Max Nunes, Domingos de Oliveira ou Vianninha, até chegarmos aos grupos de humoristas como os “Cassetas” ou o “Porta dos Fundos”, uma multidão de autores que nunca precisaram de Manual de Roteiro para criar uma piada. Por isso Judas em Sábado de Aleluia sempre foi remontada no lugar de Beatriz Cenci. Estes são os nossos clássicos. Só que o público esqueceu de combinar com a crítica sobre a importância dessa representação. Com isto, o Estigma é uma constante. Se a tal teoria da recepção fosse lida exclusivamente pelo resultado da crítica teatral e cinematográfica, estaríamos mal na fita.

Desde a chanchada da Atlântida à pornochanchada do Beco e da Boca e à globochanchada., o Estigma surge sempre por um termo pejorativo para mascarar a importância desse diálogo entre produtores e público consumidor, capaz de gerar, pelo efeito-multiplicador da bilheteria, as demais produções nacionais em outros gêneros.

E o que isto se relaciona com o atual ciclo do financiamento neoliberal? Sistematicamente, o Cinema Brasileiro é alvo preferencial de retaliações. Todos conhecem a famosa questão do som do cinema nacional. Evitava-se mencionar o uso excessivo da lâmpada de leitura ótica dos projetores, sempre vencida, na maioria das salas, porque exibidores pagavam anúncios nos jornais. Depois, a banalização do mal alcançou, na fase atual, a questão de supostas benesses e irregularidades na aplicação de recursos de incentivo fiscal, traduzida na campanha da certa revista semanal contra o Cinema Brasileiro a partir dos filmes Chatô e O Guarany em 1998, quando a Lei do Audiovisual começava a ter seus primeiros investidores. Em ambos os filmes ocorreram excessos de zelo anteriormente mencionados e nos legaram mais carga punitiva como a Portaria MinC 500, nos rotulando e estigmatizando como irresponsáveis na execução de recursos incentivados. Afinal somos artistas, outro clichê estigmatizante e superficial. Essa Síndrome de Simão Bacamarte foi absorvida, ampliada e multiplicada pelas sucessivas auditorias do TCU junto à ANCINE e nos trouxeram várias mordaças como o Acórdão TCU 1630/2004 ou o Acórdão 721/2019. Apesar das leis de incentivo federais (Rouanet e Audiovisual) totalizarem aproximadamente um por cento do volume de subsídios estatais existentes para todos setores econômicos, somos auditados literalmente até o último centavo, sempre com a normativa presente retroagindo para punir o responsável pelo projeto por um fato econômico praticado em data anterior ao estabelecimento da nova regra. Isto porque as decisões sempre envolvem uma cadeia de delegação em que a consideração superior ratifica o parecer da instância inferior sem pestanejar. Esta característica nos remete ao último fator limitante.

O quinto fator limitante diz respeito a uma prática histórica generalizada entre governança e funcionalismo. A questão da gestão administrativa é sempre mediada pelas relações weberianas de prestígio e poder, nos trazendo o mesmo prussianismo burocrático com a variável nacional segundo o qual “a Lei é igual para todos, mas mais igual para alguns. Afinal, tudo para os aliados e o rigor da Lei para os adversários”

Existem gestores adeptos do divisionismo como método de produtividade, colocando servidores uns contra os outros. Existem aqueles partidários do questionamento, sobretudo neófitos leigos no cargo, dotados da pose de especialistas no assunto, cujo uso da ferramenta da contestação é a forma privilegiada para queimar etapas e aprender a solução do assunto pela resposta do servidor. Contudo, há uma forte tendência baseada em ampla tradição no uso da metodologia de gestão pelo terror centrada na espada de dâmocles sobre cada subordinado quanto à possibilidade de demissão sumária no caso dos terceirizados ou em inquérito administrativo sobre atos cometidos no exercício de sua função para concursados. Como contrapartida para essa sistemática de gestão, do dividir para conquistar, é natural a ação corporativa e reativa dos subordinados.

Aqui tomo emprestado um conceito a mim formulado por Zeca Barros enquanto trabalhávamos na SEC-RJ: o gestor é sempre testado pelo funcionalismo em seu primeiro ano no cargo. Caso consiga superar essa barreira, no segundo ano impõe sua metodologia de trabalho e em seu terceiro ano, tudo funciona em conformidade com o modelo por ele implantado.

Fica evidente dentro dessa correlação de forças a tendência usual do gestor leigo em se ancorar sobre funcionários mais antigos da repartição, alçando-os à condição de seus assessores na tentativa de aprender o javanês do serviço. Em tal condição, obviamente, o gestor torna-se joguete dos assessores, servindo inclusive de vidraça para tartufos palpites infelizes, feitos sob medida para sua destituição do cargo. Em igual medida, o convencimento dos assessores pode resultar em uma solução desastrosa comprada pelo gestor e apoiada pelo conjunto dos funcionários, nascida de um erro de avaliação eivado de lugares-comuns do pensamento corporativo. Esse impacto da má-gestão é infinitamente superior a qualquer forma de dolo, pois sua avaliação é imperceptível no presente, tendendo a tornar-se perene de acordo com a durabilidade do gestor leigo no cargo.

Neste ponto, retorno à questão sobre como essa união entre gestão, controle e  arcabouços de fundo jurídico resulta capaz de desmontar e inviabilizar atividades culturais essenciais, causando formas adicionais de barreira à entrada, isto é, territórios de exclusão de profissionais com expertise cultural acumulado em décadas de atividade como no caso de proponentes inabilitados nas leis de incentivo (assunto tabu pouco comentado) ou como no caso da Sociedade dos Amigos da Cinemateca (SAC), criada em 1962, transformada em março de 2008 numa OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público).

Para transpor uma série de problemas burocráticos a SAC capacitou-se a assumir a gestão do Programa de Preservação e Difusão de Acervos Audiovisuais, a Programadora Brasil e o Cine Mais Cultura no âmbito do Ministério da Cultura (MinC). Esse arranjo duraria até 2012, quando a Controladoria Geral da União questionou o repasse de R$ 2 milhões da Secretária do Audiovisual (SAv-MinC) para a SAC, considerando infringência de norma firmada pela então Presidente Dilma Rousseff, contrária à destinação de verbas para ONGs e organizações civis. Com este questionamento iniciava-se o desmonte de um patrimônio da sociedade brasileira, como sempre ocasionando interrupção de seu ciclo virtuoso até a solução de transformar a Cinemateca Brasileira em uma Organização Social.

A Organização Social é outra construção recente da Era Neoliberal que passou o pano sobre uma série de obrigações do Estado para com a Sociedade. Esperava-se eficácia e autossuficiência através dessa manobra jurídica, gerando maior autonomia e poder de manobra para execução de despesas, entretanto, essa estrutura não obteve capacidade de receita própria superior a 10 por cento de suas despesas e, graças ao primado da Lei 8212/91, tornou-se refém dos convênios com o setor público.

Testemunhei a desigualdade de relação na fixação de termos de convênio, em minha passagem pela Cinemateca Brasileira, ao me deparar com uma condicionante de renovação atrelando verbas à demissão de nove servidores ao qual me neguei veementemente e que contribuiu e muito para o encurtamento da minha gestão. Os assessores ministeriais entendiam que “Auxiliares Administrativos” eram desnecessários, donde, descartáveis. Em sentido contrário argumentei que não poderia demitir o único funcionário capaz de transportar latas de nitrato (de potencial altamente inflamável) ou uma restauradora com mais de 15 anos de atividade ou ainda uma arquivista cuja competência era necessária à recuperação de documentos, apenas pelo fato de estarem registrados, por força da legislação existente, enquanto “DAS-2”.

Essa visão generalista sobre a operação administrativa alheia permanece como um dos maiores equívocos no caso da Cinemateca e dos demais órgãos da Cultura. Não se forma em um estalar de dedos, da noite para o dia, restauradores, coloristas, laboratorista, arquivistas ou motoristas capazes de transportar latas de nitrato. Somente anos de prática continuada são capazes de trazer destreza e expertise. Essa prática acabou levando ao encolhimento pela metade dos funcionários especializados. Em lugar de incrementar o serviço de recuperação e o laboratório interno, reduziu-se a operação pela metade.

Adicionalmente é outro equívoco dos processos licitatórios de Organizações Sociais e OSCIPs permitir que administrem entidades fora de sua área geográfica. Foi o problema com a Cinemateca em relação ao programa CinemaisCultura executado no Rio de Janeiro ou da ACERP (RJ) em relação à Cinemateca Brasileira (SP).[5] Acabam existindo muitos caciques para poucos índios, dadas as competências envolvidas nesse tipo de administração por delegação..

Por sinal, muito se fala dos convênios MinC/MEC e pouco se comenta sobre o convênio ANCINE para visionamento de conteúdos incentivados depositados por força da MP 2228-01. Tal exame compreende duas etapas. A primeira observa as características essências que foram aprovadas ao projeto e a segunda examina todos os demais aspectos da cópia em termos de preservação. Porém, o intervalo de tempo entre o depósito efetuado pela produtora e a solicitação de exame completo do material pela ANCINE acaba acarretando um elevado índice de reprovação de matrizes. Para piorar a situação, as cópias agora são devolvidas por ausência de funcionários para o exame inicial das matrizes. Tentei contribuir com a discussão trazendo a Comissão Técnica do SICAV (Sindicato Interestadual da Indústria Audiovisual) para discutir a questão do Codec de áudio para depósito, responsável por uma parte das reprovações de conteúdo depositado, visto ocorrer um para projeção e outro para preservação. Pretendia chamar ANCINE, TCU e entidades do Cinema para ampliar a discussão em torno da questão da conservação, mas não pude concluir este objetivo.

Da mesma forma, com base nos meus 45 anos de serviços prestados ao Cinema Brasileiro, como cineclubista, como técnico, como gestor e, sobretudo, como militante e participante da regulamentação da profissão e da Campanha do Curta, dentre outras, por iniciativa pessoal e exclusiva minha, procurei as entidades do setor para estabelecer uma pauta de discussão com a Cinemateca Brasileira, oferecendo inclusive um espaço na Sala BNDES para screening-test ou para exibição de conteúdos dos associados de cada entidade. Achava que esse seria um caminho de interlocução requerendo avanços e recuos, convencimento de modificação de mentalidades e outras condicionantes não resolvíveis da noite para o dia. Peço desculpas a quem não me fiz entender por agir de coração e não de ouvido. Aqui devo ressaltar a importância pouco divulgada da ABC (Associação Brasileira de Cinematografia) como parceira inestimável dentro da Cinemateca, auxiliando com sua logística em diversas iniciativas dentro desse conjunto holístico de Vila Clementino.

A Cinemateca Brasileira possui um potencial econômico subestimado por hierarcas e burocratas de plantão ou concursados. Se recuperada sua atividade de restauração em todos os sistemas de preservação de negativos e matrizes, poderia originar uma incubadora em moldes análogos ao do laboratório L’Immagine Ritrovata, surgido a partir da Cinemateca de Bolonha, principal centro de restauração atual. Essa operação permitiria autossuficiência em quatro ou cinco anos de atividade, atendendo ao Brasil e à América Latina, porque o meio fotoquímico é uma tecnologia madura e cujo ciclo de produto é dominado e conhecido, não estando sujeito às incógnitas que cercam a atual tecnologia digital. Torno a sugerir isso que não passou sequer ao papel porque as relações desiguais estabelecidas nos convênios e na busca da sobrevivência mínima estrangularam toda e qualquer possibilidade de projetos envolvendo inovação e sustentabilidade econômica.

A resultante da soma destes cinco fatores é a recorrente descontinuidade de políticas públicas e a consequente subutilização do potencial econômico latente de cada instituição promovendo uma diáspora da inteligência criada nesses ambientes públicos, como é transparente no caso da Cinemateca e do CTAV, cuja complexidade é ainda maior e merece um aprofundamento à parte.

Pelo exposto, dada a redundância entre dezenas de artigos locais e internacionais apontando essa xanadu agrilhoada com um acervo superior a um milhão de itens, cuja deterioração decorre de uma ação, no mínimo, precipitada ou equivocada contra um dos  maiores patrimônios imateriais brasileiros, precisamos ciclicamente fazer coro ao óbvio e redundante diagnóstico sobre a premência de recontratação de todos os profissionais envolvidos nos diferentes setores da Cinemateca Brasileira, tão importantes quanto o acervo que zelam com afinco e dedicação dos quais sou testemunha, desde a brigada aos coordenadores de áreas sem hora para sair, capazes de contaminar o amor pelo Cinema a qualquer pessoa que ingresse naquele Santuário.

Levei a vida inteira para entender o Homem Cordial dentro de um livro centrado na Ética do Aventureiro. Na verdade em entender mais a proposta formulada por Ribeiro Couto.[6] Somente a cordialidade supera diferenças. Possuímos um denominador em comum chamado Brasil. Somos consequência direta de todas as situações conflitivas ou conciliadoras formadoras de nossa nacionalidade, somos o somatório de diversidades regionais coesas em um espaço geográfico comum, com uma história pessoal e social a um só tempo. Apagar ou agir de forma equivocada ou leviana resulta na incúria com o patrimônio público que conserva nossa identidade como monumento vivo e dinâmico para compreensão do passado, entendimento do presente e construção do futuro. A secessão nunca representou solução alguma em nenhum contexto histórico nacional ou mundial. Precisamos transcender o assembleísmo em que fomos mergulhados, retornando às nossas tradições de diálogo que sempre permitiram ao Cinema Brasileiro renascer apesar de todas obviedades e fatores limitantes.

Sempre vivemos uma corrida de cachorro atrás do próprio rabo. Legislações retardatárias e anacrônicas que a evolução tecnológica torna letra morta, principalmente porque nossa tradição ibérica sempre coloca o repressivo antes do propositivo.

Existe um projeto adormecido no Congresso relativo ao Instituto Nacional do Audiovisual. Devido aos interesses saciados com a criação do Fundo Setorial do Audiovisual, esse projeto foi abandonado. Agora é hora de destravá-lo com o apoio da bancada parlamentar que nos defende e nos restituiu a Lei do Audiovisual.

Resta afirmar o denominador em comum através dessas crises de crescimento do Cinema Brasileiro. Sempre a solução do impasse passou por encontros setoriais e pela ação junto ao legislativo. Precisamos, mais do que nunca, imediatamente, de Congressos e do Congresso.

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Notas:

[1] A Lei de exibição compulsória do curta-metragem brasileiro antes do longa-metragem estrangeiro iniciar-se-ia em janeiro de 1978, mas foi suspensa em decorrência de liminares concedidas a 28 Mandados de Segurança contra a medida impetrados por exibidores brasileiros aliados aos distribuidores estrangeiros em todo território nacional. Isto levou 20 entidades capitaneadas pela Associação Brasileira de Cineastas (ABRACI), Associação Brasileira de Documentaristas (ABD) e Federação dos Cineclubes do Estado do Rio de Janeiro a realizarem uma campanha pública de defesa do curta-metragem que redundou na cassação dos mandados de segurança e início da operação de exibição dos Curtas, o que levou aos exibidores criarem formas adicionais de sabotagem da Lei. Ante a inoperância do Conselho Nacional de Cinema (CONCINE) em intervir na situação, a Lei somente durou até 1983, quando passou a ser flexibilizada e finalmente tornada letra-morta na prática.

[2] DAHL, Gustavo. 2002. Arte ou Indústria? In Cultura e Mercado – https://www.culturaemercado.com.br/site/arte-ou-industria/. Acessado em 20/09/2020

[3] SCHWARZ, Robert. 1977. Ao Vencedor as Batatas: Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades.

[4] Cf . Cartas Marcadas – Roteiro de Lúcio Aguiar. 1991.

[5] Vivenciei esse problema quando fui contratado pela Cinemateca Brasileira para a Coordenação Pedagógica do Programa CinemaisCultura. Em Vila Clementino (SP) ouvi do Superintendente: “Você está sendo contratado para pensar e não para atividade braçal”. Quando cheguei no CTAV (RJ) onde o programa era executado, ouvi do Coordenador: “Você aqui não vai pensar, você é mais um aqui dentro”.. Fica aqui o comentário para exemplificar a questão geográfica como impeditivo de eficácia programática.

[6] DE HOLLANDA, Sérgio Buarque. 1976. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio. 10ª. Ed

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Lúcio Aguiar

Lúcio Aguiar é Graduado em Economia (UFRJ) e Mestre em Comunicação (UFF) . Vice-Presidente da Federação dos Cineclubes do Estado do Rio de Janeiro (FCRJ - 1977-1978), Secretário da Campanha “O Curta é Nosso” (1978) e da Comissão pela Liberdade de Expressão (1978), ambas presididas por Leon Hirszman. Fundador e Liquidante da Cooperativa dos Realizadores Cinematográficos Autônomos Ltda. (CORCINA-RJ – 1978 – 1984). Analista e Coordenador de Aprovação de Projetos da Agência Nacional do Cinema (2003 – 2007). Secretário Executivo da Comissão de Projetos Culturais Incentivados (CPCI – SEC/RJ – 2007-2008) Coordenador de Produção Financeira da Diretores Brasileiros do Cinema e do Audiovisual (DBCA – 2017) Superintendente da Cinemateca Brasileira (maio – junho 2019). Dirigiu, roteirizou e produziu 15 curtas e 1 longa independentes, sem quaisquer recursos públicos. Presta assessoria em leis de incentivo para empresas produtoras brasileiras.