ArtesCultura

Imaginar o futuro

por Luísa Kiefer

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Machado de Assis e Joaquim Nabuco

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Outro dia, me deparei com um anúncio pago, no Instagram, que dizia “invista em cultura”. Na hora, pensei: será mesmo? É possível que as empresas estejam finalmente dispostas a investir em cultura? E, mais do que isso, fazer propaganda sobre isso nas redes sociais? Curiosa, cliquei. Mas, claro, não era bem assim. Tratava-se de cultura empresarial.

Cultura, conforme o dicionário ou o Google, é o conjunto de padrões de comportamentos, crenças, conhecimentos, costumes, hábitos, capacidades e também artes, que distinguem um grupo social. É, portanto, um termo guarda-chuva, que abriga muitas definições e pode ser usado de muitas formas, inclusive para falar da gestão de uma empresa.

No anúncio que encontrei, a mensagem era sobre a importância de organizações criarem e cultivarem uma identidade forte, ou seja, uma cultura forte, porque, com isso — e esse era o argumento central —, ela passará aos seus funcionários os valores, hábitos, costumes e visões de mundo que a marca defende, criando um senso de pertencimento entre seus funcionários, uma ideia de identidade. Isso será fundamental para o crescimento desse ambiente, gerando melhores resultados e, consequentemente, um maior lucro. Nesse dia descobri uma nova estratégia do marketing e fiquei um pouco pasma, como trabalhadora da cultura que sou, pensando no lugar que ocupo e na precariedade com que trabalhamos o tempo inteiro, sempre correndo atrás de investimentos, incentivos públicos, ou fazendo as coisas de graça mesmo, sem receber um tostão.

Isso me mostrou que os marqueteiros, e empresas, entendem o conceito de cultura muito bem, e sabem da sua importância, desde que isso esteja restrito ao seu círculo de interesses pessoais e institucionais. O setor de marketing da empresa anunciante provavelmente concordaria em gastar a verba que for em um evento para seus funcionários, para incutir na cabeça deles a visão e a missão defendidas pela marca. Mas, por experiência própria, dificilmente concordaria em apoiar um projeto de artes — mesmo que o valor solicitado fosse muito menor do que o gasto com camisetas, mochilas, adesivos, garrafas térmicas e mimos de todas as espécies, distribuídos para os seus funcionários fazerem publicidade gratuita. O Linkedin não me deixa mentir. Está cheio de posts desse tipo: “Sonho realizado! Obrigado equipe da XYZ por me receber tão bem”, e junto uma foto com o pacote de recebidos de boas vindas. Difusão de cultura.

Parte importante da cultura, formadora de identidades e, mais do que isso, de pensamento e reflexão crítica, as artes — as plásticas e as visuais, a literatura, o cinema, o teatro, a dança, o circo — são, de forma geral, desdenhadas em nosso país. E isso é, ao meu ver, um problema estrutural. É uma adversidade da própria cultura — agora falando dos costumes, hábitos e comportamentos. Há uma dificuldade em entender o papel das artes dentro da sociedade e de compreender porque é tão importante não apenas ter, mas usar, valorizar, manter, incentivar, investir, melhorar — e os verbos seriam muitos —, museus, espaços culturais, cinemas, espetáculos, exposições e outras atividades artísticas.

Durante os piores períodos da pandemia de Covid-19, quando não era possível sair de casa, foram as diferentes formas de arte que ajudaram muita gente a manter a sanidade enquanto vivíamos o isolamento social. Foram filmes, shows intimistas, espetáculos online, lives com autores, projetos virtuais de arte que fizeram o tempo passar, que contribuíram para que as pessoas pudessem espairecer ou se conectar com universos diferentes e distantes das atrocidades do noticiário. Esses mesmos projetos não eram apenas fruição, mas também reflexão sobre tudo o que estava acontecendo.

E por que isso foi assim? Porque a arte é tudo aquilo que nos provoca internamente. É da ordem do subjetivo. É algo que nos movimenta, nos toca, emociona, provoca reações das mais variadas ordens. Defendo que não é preciso ser nenhum entendido, em nenhuma das áreas das artes, para poder desfrutá-las. A grande mágica de viver em um cotidiano com arte é que uma obra, um livro, uma música, quando nos pega, nos ensina. A gente aprende lendo literatura. A gente aprende vendo uma exposição. As artes são também construção de pensamento. São uma outra forma de dar notícias, por que não? Uma outra forma de falar de política. Um outro jeito de colocar em pauta temas importantes. E faz isso através do sensível, por meio daquilo que as vezes a gente não consegue nomear mas consegue sentir, e, se sentimos, já não seremos os mesmos.

Mas, no Brasil atual, desumano e cruel, sob o comando de um presidente genocida, assistimos as artes serem desmanteladas em um nível jamais visto. E isso acontece ao mesmo tempo em que a defesa do empreendedorismo — e falo aqui sem julgar, porque obviamente ele tem a sua importância —, apropria-se inclusive do termo cultura. Nasce e cresce a valorização da cultura, mas não daquela cultura que é tão essencial para que cresçamos enquanto coletivo, enquanto país.

Imaginar o futuro das artes, dessa forma, passa, para mim, por desejar um Brasil e uma sociedade — especialmente os empresários que movimentam a economia — que compreendam que para um país crescer e prosperar é a mesma lógica que funciona dentro das empresas. A valorização das artes, daquilo que um povo faz e produz nesse campo, cria pertencimento, forja e consolida a nossa identidade enquanto brasileiros.

Precisamos de políticas públicas fortes, precisamos de investimentos privados, precisamos de parcerias público-privadas. Precisamos de postos de trabalho, de instituições fortes e de lugares que possam absorver profissionais que se formam anualmente em cursos como artes visuais, história da arte, museologia, letras, artes dramáticas, dança, e que se qualificam, passando por cursos de especialização, mestrado e doutorado, anos de estudo e pesquisa, e uma vez graduados não têm onde atuar. Somos muitos, capacitados para exercer a cultura e não temos para onde ir.

Acostumados a trabalhar de graça ou por muito pouco, retroalimentamos esse sistema que tem dificuldades em entender a importância da arte na sociedade. O trabalho daqueles que produzem obras, textos, pesquisas é difícil de ser compreendido e valorizado. É difícil mensurar quanto valem palavras em uma folha ou horas de um ensaio. É difícil colocar em cifras o tempo que uma pessoa dedicou para criar algo que não é apenas um produto, mas sim uma contribuição e um bem cultural.

Precisamos de marqueteiros trabalhando para a cultura do país.

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J.M.W. Turner, ‘Seascape: Folkestone’, c. 1845

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Luísa Kiefer

Luísa Kiefer é jornalista, pesquisadora e curadora independente, doutora pelo PPGAV/UFRGS.