Literatura

Uma era pós-literária?

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Uma era pós-literária?

A ficção contra a literatura

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Evert Collier, Vanitas, 1663

por Rodrigo de Lemos

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A ideia de morte da literatura tem algo de vago, e de potencialmente enganoso. A metáfora biológica pode levar a crer na existência de um momento específico em que a literatura, logo ela, deixe ou tenha deixado de existir, como aquele em que uma besta ferida mortalmente enfim fecha os olhos para entrar na inexistência.

Talvez por causa dessa imprecisão, as fórmulas para falar da situação atual tendem a refinar-se. Alain Finkielkraut tem falado em uma era pós-literária — uma forma de dizer não que a literatura morreu, mas que o momento da literatura está atrás de nós. Na época de após a literatura, os livros não faltam. Com o digital, as publicações conhecem um crescimento exponencial. Tampouco é um mundo em que a ficção se faz rara em favor de conteúdos não literários, como os de ciência ou de política. Ao contrário. A ficção está por tudo e segue dando o tom às conversas e dominando os lazeres. O que permanece precária é a inscrição desses livros em profusão e dessa ficção onipresente no tempo longo da literatura, e também a importância mesma da literatura no panorama da cultura.

O nome da categoria americana para a “literatura difícil”, literary fiction, oferece uma chave à compreensão do problema. Ficção literária: a depender de como se usa a expressão literatura, o termo pode soar redundante — basta lembrar que Sidney Sheldon, Barbara Cartland, Dan Brown ou 50 Tons de Cinza aparecem frequentemente nas prateleiras de Literatura Estrangeira. Mas a expressão “ficção literária” nos lembra que há também uma distância entre as duas palavras, que uma não se traduz de imediato na outra. Primeiro, porque nem toda ficção é literatura, nem pretende ser literatura, nem pode estar no registro da literatura. Segundo, porque é evidente que o contrário também é verdadeiro: nem toda literatura é ficção; os ensaios de Montaigne e de Voltaire integram a literatura francesa; a eloquência de Vieira é um dos auges da literatura em português, e uma parte importante da literatura latina é composta de diálogos, de tratados ou de epístolas (pense-se em Cícero).

Ficção e literatura correspondem cada uma a uma esfera distinta. A própria ideia de literatura deriva das litterae humaniores dos humanistas: um conjunto de textos de autores profanos ditos clássicos que portam uma memória e, quem sabe, uma sabedoria nada além de humana, em contraposição à sapiência divina contida nas litterae sacrae reveladas dos teólogos. Daí, a literatura ser uma instância social, de debate e de seleção de textos que uma certa comunidade estima dignos, por seu valor estético e ético, de serem conservados e transmitidos entre gerações, definindo daí um horizonte segundo o qual um novo texto pode pretender a ser chamado ou não de literatura, pela sua relação com uma família de outros textos literários ou, às vezes, pela recusa peremptória a qualquer das existentes. Também a literatura delimita um senso de pertencimento do leitor a uma comunidade. Essas comunidades podem ser nacionais, mas também supranacionais (no limite, a ideia de literatura mundial, recobrindo grandes textos em diferentes línguas de cultura) ou mesmo infranacionais (é nesse sentido que se fala de uma literatura médica ou de uma literatura científica — também elas servem à definição do pertencimento dos membros a uma comunidade; basta que se pense num médico ou num cientista que não conheceria a literatura de sua área e julgue-se de seu mérito).

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Alain Finkielkraut

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A rigor, nenhum texto precisaria ser ficcional para entrar no escopo da literatura. Uma das formas literárias que mais encontra leitores na atualidade envolve o testemunho e a recuperação do vivido, seja nas narrativas pessoais de Annie Ernaux (O Lugar) e de Didier Eribon (Retorno a Reims), seja nos apanhados de depoimentos sobre a história russa da nobelizada Svetlana Alexeyevich. Discursos como a teoria, sobretudo em ciências sociais, invadem permanentemente o campo literário, donde a presença de Michel Foucault ou do historiador Georges Duby na Bibliothèque de la Pléiade.

Já a ficção (fictio: ação de fazer e de fingir) refere um modo de discurso, baseado no pacto implícito de que tudo que vai ser contado ou mostrado nas páginas (ou nas cenas) subsequentes é fingimento, faz-de-conta; em suma, é coisa feita, e não pretende documentar estritamente o real. Pode estar — e, em nosso tempo, frequentemente está — fora da literatura. Há sempre casos-limite — Georges Simenon? Agatha Christie? —, mas grande parte da ficção de aeroporto não nutre as aspirações de sobreviver no tempo para além dos ganhos que pode render a autores, livreiros e editores. A profusão da técnica – que beneficiou a própria literatura, quando da invenção da imprensa —, sobretudo nos séculos XX e XXI, também nos habituou a um mundo em que o reino do fingimento que é a ficção encontra expressão através do som e da imagem — em realidade, as técnicas do audiovisual acabaram por ser sua principal forma de difusão do discurso ficcional.

O cinema é a mais evidente e quem sabe a primeira dessas invenções técnicas que deslocaram a ficção da palavra para a imagem e depois para o som, e quem sabe esteja nele a primeira ruptura de um processo duradouro. As novidades introduzidas pela televisão, pela publicidade e pelas séries — não é o que acontece também em parte com formas de tecnoentretenimento, como jogos? — apenas prolongam essa ruptura entre a ficção e a literatura, sedimentando-a: as necessidades de ficção, que seguem vivíssimas, são fartamente supridas por essas técnicas da imagem e do som altamente eficazes do ponto de vista de sua difusão em sociedades massivas, porque se beneficiam de uma facilidade cognitiva. Apresentam um mundo ficcional por assim dizer pronto, ou no mínimo menos mediado por convenções de toda ordem — em primeiro lugar, as linguísticas — do que uma epopeia, um conto e um romance, nos quais esse mundo feito e fingido deve emergir pouco a pouco e de forma atraente a partir de puros sinais de preto sobre a brancura intimidante do papel.

Essa declaração de independência da ficção quanto à literatura e sua invasão do espaço público por meio das técnicas do audiovisual é um dos elementos que marcam nossa entrada numa era pós-literária. Ato contínuo, ela colocou em questão a própria centralidade da literatura como instância sociocultural e como marcador identitário. Seres de papel, como Brás Cubas, Oliver Twist ou Jean Valjean, podem ter o mesmo apelo massivo como referências da comunidade nacional do que suas versões no tecnoentretenimento ou do que outros tantos tipos e personagens criados e popularizados pelos mundos das séries, dos filmes e das novelas?

Se é assim, podemos nos perguntar por que, então, chorar a ficção literária — se não sua morte, a perda da centralidade que era a sua até o século XIX. Nossa necessidade de ficção não segue sendo suprida de todo modo, com meios menos artesanais e mais grosseiros, embora eficientes e quem sabe mesmo mais democráticos do que os da velha literatura? Lamentamos que compramos móveis industrializados ao invés de mandá-los fazer em artesãos? Nossas roupas adquiridas de grandes cadeias internacionais nos fazem nostálgicos dos bons tempos da alfaiataria manual? Acaso poderíamos esperar que o mesmo processo de industrialização que deu em uma Ikea ou em uma Zara pouparia os produtos do imaginário, sobretudo a ficção?… E, entanto, a despeito dos abismos de qualidade e de densidade cultural que separam um do outro, um terno de um mestre-alfaiate e um outro comprado de um grande rede realizam a mesma função, a de vestir o corpo, segundo um certo código social. Será o mesmo entre a ficção pela palavra e a ficção pela imagem?

Podemos suspeitar que não; a avalanche de ficção pela imagem proporcionada pela sua facilidade de produção e de reprodução não esmagou de todo a ficção literária, e a necessidade de fábula — fabula: ação de falar, de contar uma história, ou seja, de fazer ficção pela palavra — parece ser algo de muito próprio, resistente aos seus sucedâneos, não sendo absolutamente suprida pela ficção imagética. Há como uma intimidade, uma vivência de dentro do mundo fictício, que a palavra parece propiciar, pela sua própria independência do complexo suporte físico requerido pelo tecnoentretenimento e pela sua igual capacidade de explorar desde as realidades mais interiores dos seres sencientes até os maiores quadros dos eventos sociais e físicos do mundo.

Mas é uma situação especial: a fábula literária — o romance, o conto, o teatro, a poesia que têm o tempo longo da literatura como horizonte — parece designada, em nossas sociedades, a subsistir nos interstícios da cultura. Às vezes, apela-se à fabulação com fins não literários ou estéticos, como puro ato terapêutico ou sociológico ou político. Às vezes, a fábula é chamada como desencadeador ou como suplemento das outras formas de ficção imagética em abundância que as indústrias do entretenimento não cessam de produzir; o livro que vira filme — ou jogo ou série —; o filme — ou o jogo ou a série — que leva à descoberta do livro e às virtudes irreprodutíveis da fábula. Por isso mesmo, porque sua subsistência é intersticial, a fábula de pretensões literárias nos transmite a impressão de algo infinitamente frágil, mas também, na mesma proporção, de infinitamente valioso, como uma paisagem natural nos parece infinitamente frágil e valiosa depois que nossas vidas foram tomadas pelo asfalto e pelo concreto. Há paraíso que não seja perdido?

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Jean Huber, ‘Voltaire à son lever dictant à son secrétaire Collini’, c. 1772

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Rodrigo de Lemos

Rodrigo de Lemos é doutor em Literatura pela UFRGS-RS e professor de Língua e Cultura Francesa na UFCSPA-RS. Escreve sobre Cinema e Literatura no Estado da Arte.