Poesia

De Mandelstam a Tsvetáieva, com amor

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De Ossip Mandelstam para Marina Tsvetáieva, com amor

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Leningrado

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por Astier Basílio..

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Aos 24 anos de idade, Óssip Mandelstam (1891-1938) conheceu alguém que iria lhe causar a sua primeira desilusão amorosa: a poeta Marina Tsvetáieva (1892-1941). Foi algo passageiro, mas deixou um rastro de poesia em ambos autores. Antes de se desiludir, o poeta se encantou.

E tudo teve início no verão de 1915. Mandelstam foi acolhido como hóspede na casa do poeta Maksimilian Voloshin (1877-1932). Ele próprio não passava muito tempo na residência, vivendo longas temporadas em Paris. O local era ponto de encontro da intelectualidade. Situava-se em uma região da Crimeia chamada Koktebel.

Foi lá que Mandelstam escreveu um de seus mais conhecidos poemas: “Insônia. Homero. Velas apertadas…”. Além do fato de que, naquela época, o jovem poeta estava completamente envolvido com o estudo da literatura clássica antiga, conta-se que avistou um navio medieval, o que lhe causou grande impressão. É sabido que Marina Tsvetáieva gostava imensamente do poema. Não é forçoso imaginar que ela o leu tão logo o poema tenha sido escrito.

Eis a minha tradução:

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Insônia. Homero. Velas apertadas…

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Insônia. Homero. Apertadas velas.

A lista dos navios, eu li até o meio:

Comboios de grous, tantos filhotes, ei-los

Ergueram-se alguma vez por  sobre a Hélade.

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Como grous em pinça na fronteira alheia —

É divina a espuma nas reais cabeças

Onde vão? Não fosse Helena, pra vocês

O que seria Troia sozinha, aqueus?

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Move-se tudo no amor: o mar e Homero.

Alguém me ouve? Homero então se cala,

Ruge o mar negro, enfeitando, com pesada

Pancada a se aproximar da cabeceira

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1915

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1915

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Mandelstam

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Mas quem era Óssip Mandelstam naquele ano? Filho de uma próspera família de comerciantes, que atuava no ramo de curtição de peles e confecção de luvas. Nos dois anos seguintes, a situação financeira iria periclitar. Mas nos anos de prosperidade foi possível permitir ao jovem poeta uma viagem à Europa. Isto aconteceu no final de 1907, quando a família se deu conta de que Mandelstam estava envolvido com o Partido Revolucionário Socialista, facção conhecida pela sigla “SRs”. Chegara ao ponto de pedir para ser recrutado como combatente, mas não foi aceito devido a pouca idade. Contava com 16 anos.

Pertencia aos “SRs” Fanni Kaplan (1890-1918), autora do atentado contra Lenin, em 1918. Por considerá-lo um traidor da revolução, desferiu-lhe três tiros, dos quais acertou dois. O líder bolchevique escapou com vida, mas ficou com sequelas profundas, vindo a se afastar do poder três anos depois da tentativa de assassinato. A solução encontrada em casa foi afastar o adolescente das más influências. Enviaram-no para estudar literatura na Sorbonne. O verão do ano seguinte, o de 1908, Óssip passou viajando. A família também o acompanhou. Além da França, foram para Suíça, mas a viagem para a Itália Óssip a fez sozinho.

Naquele verão, em 1915, na Crimeia, o jovem poeta já havia, inclusive, publicado seu primeiro livro, Pedra. Na obra, que já estava em segunda edição, era visível seu fervor ao credo estético que abraçava, o Acmeísmo, escola literária que procurava devolver objetividade à poesia russa após anos de Simbolismo, com sua preconização ao transcendente e ao místico.

Ao encontrar com Marina Tsvetáieva, que era um ano mais nova do que ele, borboletas não voaram na barriga, nem foi ouvida música de sino nenhum. Mas no comecinho do ano seguinte, em 1916, houve um novo encontro. Daquela vez, em São Petersburgo. E, seguramente, algo mexeu nas estruturas do magro poeta, maldosamente apelidado pelo colega Velimir Khlebnikov (1885-1922) de “mosquito de mármore”.

É importante lembrar que Óssip Mandelstam nasceu em Varsóvia, na Polônia. O pai, Emily Veniaminovich Mandelstam (1851-1938), era um judeu alemão que havia emigrado, inicialmente, para Letônia, onde encontrou-se com Flora Osipovna Verblovskaya (1866-1916), com quem veio se casar. Ela colocou o nome do pai no futuro poeta, o primeiro dos três filhos que iria ter.

Quando Óssip contava  três anos de idade, Emily decidiu mudar com a família para o Império Russo e optou por viver em um distrito próximo à capital: Pavlosk, a 35 quilômetros de São Petersburgo. Três anos depois, nova mudança. Óssip Mandelstam foi viver na cidade que adotou como sua e a que foi cenário de muitos poemas tocantes, como o antológico “Leningrado”.

Em 20 de janeiro de 1916, Óssip Mandelstam viajaria pela primeira vez a Moscou,  à antiga capital do Império.  Com prazer, Marina foi uma espécie de guia para Óssip e passou a mostrar-lhe os encantos da cidade velha. O encontro inspirou a ambos. Ela o chamou de “estranho irmão”, em um dos poemas. Da parte de Mandelstam é visível um duplo alumbramento: pela mulher maravilhosa que está conhecendo e a pela fantástica cidade que está descobrindo.

Apaixonado pela cultura ocidental, Mandelstam, que havia pouco se convertera ao protestantismo, iria aprender italiano, duas décadas depois,  com o objetivo de ler Dante Alighieri no original, poeta por quem tinha devoção e a quem se dedicou, inclusive, um alentado ensaio. Com Marina Tsvetáieva, Mandelstam repetia Dante, em sua travessia pelos círculos do inferno e do purgatório. Porém, era guiado por alguém que era, ao mesmo tempo, Virgílio e Beatriz.

 O fluxo intenso de Mandelstam de uma cidade a outra ensejava piadas como a que fez M. R. Segalova em carta ao amigo dela Sergei Kablukov. “Se ele tão frequentemente viaja de Moscou para São Petersburgo e de volta, por que ele não arruma um lugar lá e aqui? Ou ele já está atendendo na  ferrovia Nikolayevskaya? (via entre as duas cidades) Nem pessoa é mais; é avião”. O destinatário da missiva, um matemático, pedagogo, mais velho e com mais pruridos religiosos que o jovem poeta judeu, com quem nutria amizade, manifestou preocupação e a deixou registrada em seu diário.

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“Está claro que uma mulher qualquer entrou na vida dele […] Religião e erotismo engendram na alma dele um certo tipo de ligação, algo que me parece uma blasfêmia. Esta ligação ele próprio reconheceu e chegou a falar que aquilo era um terreno perigoso para ele, que é alguém que deixou o judaísmo, ele mesmo sabe que se encontra num caminho perigoso, que sua situação é horrível, mas não possui forças para se afastar deste caminho e ao mesmo tempo não pode parar de criar poemas desse erotismo insano”.

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Além dos poemas de parte a parte, é sabido que Óssip ganhou um regalo de Marina. Um anel no qual estavam inseridos Adão e Eva sob a Árvore do Bem e do Mal. As viagens e os encontros se sucederam por seis meses. Ficaram a amizade e a admiração mútuas. Nada além disso.  Apesar de um ano mais nova, Marina Tsvetáieva também já havia viajado para Europa. O pai era professor. Vivia de finanças. Não havia preocupações materiais. Às próprias custas, a moça já publicara dois livros de poemas. Optou por não ter nenhuma formação universitária.   Quando apresentou Moscou a Ossip, era casada com Sergei Efron (1893-1941) havia quatro anos. Mas não era só isso.  Mantinha ainda um relacionamento amoroso com a poeta Sophia Parnok (1885-1933), que a faria largar o marido, com quem viria a reatar pouco tempo depois.

Traduzi ainda um dos poemas de que mais gosto deste período de encantamento por Marina Tsvetáieva. Não teria como afirmar, mas talvez seja o que inaugura a série. Ao menos dos que foram recolhidos no livro Tristia é o primeiro com motivo moscovita.  A Catedral da Dormição, que é descrita no poema, situa-se na Praça Vermelha. Natural que seja este o primeiro destino para o qual se leve um turista em Moscou. É o óbvio infalível.

Ao narrar seu espanto ante a beleza arquitetônica da velha capital, Mandelstam me fez lembrar o magistral verso de Camões:  “transforma-se o amador na cousa amada”. Ao falar dos arcos de pedra da Catedral, o poeta tem a impressão de que suas sobrancelhas se arqueiam e ficam altas – desenhando, literalmente, uma perfeita expressão de espanto.

Por fim, o toque de gênio de Mandelstam ao esconder o nome da amada no poema ao escrever: “em Moscou, Florença”. No primeiro plano, o da descrição, faz-se alusão ao trabalho dos arquitetos italianos que compuseram o projeto das igrejas da Praça Vermelha. Em russo, o nome “Tsvetáieva” tem como raiz a palavra “flor” (“tsvetok”), da mesma forma como o nome da cidade “Florença” também traz em sua raiz a palavra flor (“Firenze” – “fiori”).

Tsvetáieva manteve também um romance epistolar com outro gigante da Era de Prata, o poeta Boris Pasternak.

Mas este talvez seja assunto para outro artigo. E outra tradução…

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Marina e Osip

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E no meio da discórdia de um coro virginal…  

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E no meio da discórdia de um coro virginal

Todas as doces igrejas na própria voz delas cantam

E nos arcos empedrados do Templo da Dormição

As sobrancelhas, parecem, maiores e arqueadas.

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E daqui do elevado que arcanjos fortaleceram

A cidade eu remirei — é um milagre esta altura.

Nas paredes da Acrópole a tristeza me atormenta

Por causa dos nomes russos e pela beleza russa.

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Não é uma maravilha com um vinhedo nós sonharmos

Onde estão planando pombos no azul da cor mais quente,

Partituras ortodoxas é aquilo o que a monja canta

Como é doce a dormição — e aqui em Moscou, Florença.

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E os templos moscovitas dotados de cinco torres

Com uma Itália e uma Rússia a existir na alma deles

Vêm me trazer à lembrança a aparição da Aurora,

Porém com um nome russo e em um casaco de peles...

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Fevereiro de 1916

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Astier Basílio

Astier Basílio é poeta e dramaturgo. Vencedor do Prêmio Funarte de Dramaturgia, em 2014, com a peça Maquinista. É mestre em ensino de literatura russa para estrangeiros pelo Instituto Estatal Pushkin e doutorando pelo Instituto de Literatura Maksim Górki, ambos de Moscou, onde atualmente mora.