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Massimo Cacciari: O Ressureto de Sansepolcro

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A Ressurreição por Piero della Francesca

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No auge de sua maturidade intelectual e artística, por volta dos anos em que conclui o ciclo de Arezzo, Piero, com esse texto fundamental, rende a homenagem mais elevada e dramática a seu Borgo, ou melhor, ao símbolo mesmo de sua cidade, o Santo Sepulcro.

Imagem de vitória sobre a morte? Franca expressão de alegria por tal vitória (R. Lightbown)? Creio que ninguém capaz de enxergar, mesmo antes de entender, possa não concordar, diante dessa imagem, com as palavras de um grande poeta, Yves Bonnefoy: “Basta um olhar a este afresco para sentir todo o desconforto…”. Mas estamos nos precipitando; precisamos ‘tirar os sapatos’ e nos aproximar com método e paciência de tal ‘revelação’.

Procuremos acompanhar, antes de mais nada, a extraordinária ‘ordem’ dessa composição, por mais vezes que tenha sido analisada e interpretada. Toda ela se destina, em sua simplicidade, a exaltar a figura do Ressurreto. A perspectiva de baixo para cima (a qual, na obra que deveria ser lida junto com a Ressurreição de Sansepolcro, a Trindade de Masaccio, tem em seu centro o Crucifixo: a figura do Logos, coração da vida intradivina, é figura de morte!) se articula duplamente, para enfatizar a separação entre Cristo e o ‘mundo cá de baixo’. O espaço dos soldados está encerrado entre as linhas que convergem para a mão de Cristo segurando o manto; Cristo se ergue sobre ‘o eixo inabalável’ de sua própria figura, que se reflete irrevogavelmente no mastro do estandarte e encontra seu ‘ponto’ ali onde se dividem os cabelos, no alto da fronte. A leira das árvores à sua esquerda e os dois robustos troncos à direita (aquelas reflorindo, reverdecendo? estes desolados?) enquadram-no poderosamente. É verdade — nada nesta paisagem se a figura como sinal de morte. Nem, certamente, nada que aluda a ressurreições triunfais e sequer primaveris. É uma terra dura, terra áspera, terra de trabalho, de cansaço, de sofrimento. Nenhum “jardim”, nenhuma flor delicada, nenhum traço de ‘paraíso’. Paisagem absolutamente terrena — mas que permite, sim, que o homem lance sólidas raízes nela. É uma terra que permite ao homem um correto estar, sobre o qual o homem pode insistir. E tal insistir é tema não só desta pintura de Piero, mas de toda a sua obra. O fillho do Homem está ereto, bem armado, tronco irremovível, correto em todas as bras do corpo, construído em proporções perfeitas e números áureos. Nenhuma desordem pode corresponder a seu ícone — pois seu Nome é, justamente, Logos, isto é, proporção e relação, perfeição no dizer, comunicação inequívoca. O Filho é Verbum, é Logos, e por isso é proferido com simplicidade e firmeza, com tectônica sobriedade, sem fumus retórico. Mais que tudo, o Logos detesta qualquer ornamento, qualquer emocionalismo, qualquer jogo alegórico, qualquer divagação e distração.

É essa a obra-prima pictórica de toda aquela corrente do Humanismo italiano que definirei como ‘trágica’, que tem seus máximos intérpretes em Alberti e Valla, mas que reaflora, às vezes inesperadamente, nas elegantiae dos eruditos, nas declamações dos retóricos, assim como no âmbito daquela pia filosofia ficiniana que, do ponto de vista teórico, representa seu exato oposto. Podemos dizer que o problema do ‘Humanismo trágico’ pode ser retomado precisamente nestes termos: exprimir com sobriedade elocucional a verdade do Logos, corresponder à força do brevilóquioevangélico com a clareza do desenho e o olhar dirigido à coisa. Nesse Humanismo, a língua não está em contradição com o coração («peccant qui dissidium cordis et linguae faciunt», escreve Pico della Mirandola a Ermolao Barbaro), pois a pureza das formas do dizer (que somente o pleno domínio do ‘clássico’ é capaz de produzir) é função integrante de um programa geral de reforma social, civil e religiosa. Nesse Humanismo, renovatio e reformatiosão indissociáveis: as formas do dizer são chamadas a se renovar para poder exprimir a busca da verdade e o retorno da alma à pureza do Verbum. Conseguir dizer o conflito, o dissídio, a busca, na ordem do Logos, sem emocionalismos; poder impor às nostalgias e aos dramas da alma a medida do Verbum — esta, para além de qualquer diferença formal, é a linha que se desdobra entre Masaccio e Piero e que contrasta metafisicamente com aquela que se afirmará em autores como Botticelli, Signorelli, Pollaiuolo.

Renovatio: eis, então, o sarcófago romano de onde Cristo emerge e o qual domina apoiando o pé sobre ele, calcando-o (pose que transmite num único traço toda a profundidade da figura do Ressurreto), sarcófago que não vem ‘decorado’ por nenhuma ‘cena’, por nenhum ornamento (compare-se-o, por exemplo, à Natividade de Ghirlandaio na Santa Trindade); romano, também, é seu manto: transformação do sudário, como se disse, em ‘manto de vitória’ rosa intenso (talvez a partir de Isaías, 63, 1: “Quem é este que vem de Edom, de Bosra com trajes vermelhos, de vestes magníficas, e avança mostrando a plenitude de sua força?”), uma toga que a mão recolhe e deixa recair em pregas esculpidas em mármore indestrutível.

Reformatio: este, que se revela como Palavra simples e é direto como seu olhar, é o Logos, ‘liberado’ de todas as suas escolásticas e glosas, no qual se crê, ao qual se é devoto em formas que renovam a fé originária em sua mensagem.

E esse Verbum, que é Cristo, não contrasta com o Logos clássico, pelo contrário, representa sua comprovação, sua encarnação.

Mas, se assim for, não terão talvez razão aqueles que veem no Ressurreto de Sansepolcro uma imagem de vitória? As feridas do Crucificado, dizem eles, ainda são bem visíveis, sem dúvida, mas nada mais podem, são apenas lembranças, agora, de uma batalha vencida. Ademais, pode-se chegar a reconhecer que o corpo eucarístico não pode se subtrair ao drama de atravessar o mundo do pecado até tocar seu fundo, pecado cujo ‘prêmio’ é a morte, e por isso as feridas conservarão atualidade permanente. E no entanto aqui o Cristo, segundo as palavras de Paulo, aparece finalmente “colocado acima de todo princípio e autoridade, de todo poder e dominação e de todo outro nome que se possa enunciar no século presente e no futuro”. Pronto para se sentar à direita do Pai, “todas as coisas sujeitou a seus pés” (Efésios, 1, 22), a ele pertencem as chaves da morte e do inferno. Que tudo isso se possa ler na imagem de Piero é incontestável. Mas apenas isso? Por que sentimos quase instintivamente a absoluta angústia de tal leitura? Não porque seja falsa, mas porque não rende justiça ao problema, à pergunta que brota da imagem. À força da composição de Piero corresponde a força de sua indagação. Quanto mais se ‘crê’ nessa imagem, mais ela se transforma para nós em questão, mais nos dá a pensar. E é sempre assim, para uma fé não negligente — exigentíssima, na verdade, como devia ser a de Piero.

Para captar todos os contraditos em relação ao conteúdo em si evidente da ‘história’ revelada por Piero, tentemos por um momento ‘esquecer’ o corpo na aparência plenamente restaurada de Cristo, tentemos não admirar sua solidez, sua quase monumentalidade; detenhamo-nos, em vez disso, em seu rosto, que ocupa o centro daquela rude e áspera paisagem, ou melhor, em seu olhar, cujo ‘sentido’ se dirige a nós, como se quisesse nos atravessar. E observemos a relação entre esses olhos e as únicas outras figuras, as dos soldados a seus pés (eles também ‘bem’ dispostos, com ordem e medida: imagem do Sono da qual emerge a imagem do Despertar, da noite que se vai aprofundando no passado para dar lugar à nova luz, mas despida de qualquer teatralidade, sem agitações emotivas — e veremos a razão disso).

Cristo está sozinho, sozinho como no deserto, sozinho como no Getsêmani, onde adormecidos a seus pés estavam os discípulos, que deveriam tê-lo apoiado. Sua solidão é ‘acompanhada’ aqui por esses soldados extenuados, lá pelos discípulos incapazes de velar apenas uma hora que fosse. No horto do Getsêmani, o Filho estava diante do cálice, chamado a se decidir a ele, e a angústia o entristecera como a morte, curvado com a face por terra, em lágrimas. Mas aqui terá talvez o rosto ‘jubiloso’, no sentido em que nos cânticos bizantinos se diz ‘jubilosa’ a luz da Trindade? Terá seu rosto talvez ‘superado’ toda tristeza e triunfado sobre todo abandono?

Nenhum ‘sacrifício’ o aguarda mais? Nesse rosto, sem dúvida, podemos ler lucidez e desencanto. Em seus traços exprime-se a mais completa medida de liberdade jamais posta em imagens. De nenhum destino pode tal figura ser escrava; sponte respondeu à Voz que a chama; face a face enfrentou sua paixão. Mas igualmente eloquentes são seus lábios cerrados; igualmente profundo em seu olhar é o traço de uma ‘espiritual’ melancolia. A ressurreição não lhe vale como ‘cumprimento’, de forma alguma. Ereto, ele parece prestes a enfrentar outro caminho, a suportar outros jugos.

Sou a verdade, diz ele mostrando-se. Este corpo, seu drama, seu sofrimento e agora sua ressurreição: essa é a verdade. Quid est veritas? Vir qui adest. Sim — mas essa verdade não é compreendida. “Nele era a vida, e a vida era a luz dos homens, e a luz aparece nas trevas.”

Como traduzir? As trevas não conseguem acolher essa luz? Não conseguem compreendê-la? Não conseguem capturá-la, apoderar-se dela? O comprehendere da Vulgata pode assumir todos esses sentidos (à diferença, talvez, do katalambánein grego) —e de fato ouvem-se todos eles em conjunto. A luz se manifesta nas trevas. As trevas não podem vencer sua revelação, não têm poder sobre seu princípio. Nem podem impedi-la. Mas tampouco se iluminam à sua vinda, tampouco a acolhem em si e entendem sua vida. As trevas nunca poderão apagar essa figura que ressurge; mas nunca conseguirão corresponder à medida de sua liberdade. Nunca poderão anular a verdade de seu Evento; mas nunca poderão compreendê-la em si.

Primeiro, estava sozinho o Cristo sofredor, aguardando com angústia sua paixão; agora, sozinho está o Ressurreto, e em torno dele as figuras dos soldados como que simbolizam a ignorância e a impotência das trevas, que não ‘compreendem’ sua luz. Um deles não quer ver, cobre os olhos com as mãos. No lado oposto, no canto contrário ao primeiro, outro parece, de fato, quase se virar para a aparição, mas ainda de olhos fechados, com expressão atônita e paralisada: tem olhos e não vê, tem ouvidos e não ouve. Os outros dois, no centro, estão mergulhados num sono profundo. Sonham, talvez? Chegam talvez a sonhar aquela luz, não mais. Essa é a cena que se desenrola aos pés de Cristo, sobre esta terra: adormecidos diante das lágrimas do Getsêmani, adormecidos diante do Ressurreto — herdeiros, talvez, mas radicalmente népioi, infantes, isto é, incapazes de proferir verbum, de guardá-lo em si, de compreendê-lo, de imitá-lo. O novo drama, então, dispõe-se no seguinte movimento: o Filho apareceu e agora reaparece, reforça a absoluta verdade de sua vinda. Reaparece após a morte, como testemunho de que se pode vencer o Inimigo. Mas não encontra ninguém a esperá-lo e a ‘compreendê-lo’. É certo que tampouco há alguém que possa capturá-lo e mantê-lo prisioneiro dentro do sepulcro. Mas quem ‘compreende’ o sentido de sua libertação? E no entanto ele veio para que ocorresse tal ‘compreensão’. É essa solidão a resposta à mais dramática pergunta do Evangelho: “Quando voltar, o Filho do Homem encontrará fé na terra?”, isto é, encontrará aquela vida mesma, aquela luz mesma que Ele é, ou apenas cegos, mudos, adormecidos? Para que seu cansaço, o tormento que lhe custou sua aparição, para que ter atravessado pecado e inferno, ter despedaçado para sempre, no momento supremo do abandono e do grande grito na Cruz, todo ‘belo’ pleroma divino, para que tudo isso se agora apenas cegueira e sono acolhem sua parousía?

Essa pergunta ressoa no olhar do Ressurreto; mas ele parece se dirigir também a algo que a supera. Por mais repleto de desencanto e amargo conhecimento, aquele olhar ainda se mostra à espera. A quem se dirige? Para além de nós, a quem é capaz dele, capax dei. E quando aparecerá esse filho? O Ressurreto ignora. Em toda a sua figura exprime-se apenas a força de uma sobre-humana paciência, que exclui qualquer desespero demasiado fácil, qualquer pessimismo retórico. O que ele sabe é que conseguirá se manter em vigília, sentinela até o fim da noite.

E ele sabe, porém, que não sabe se a noite está destinada a findar. É exatamente essa sua última e mais elevada mensagem. Ele sabia que ainda não seria acolhido, e mesmo assim retornou. Não só decidiu esvaziar o cálice, mas decidiu também essa nova vinda, de maneira totalmente livre e gratuita. Não aguardava nada em troca. Não esperava ser por fim reconhecido. No entanto apareceu e reapareceu — nas trevas e para as trevas. O termo ‘sacrifício’ é absolutamente enganoso; aqui se trata do puro doar-se, em sua medida mais consciente e livre — livre, pois aqui a doação não corresponde a nenhum cálculo, não tem nenhum efeito em vista. O ato desse doar é o impossível para a alma humana, para sua invencível philopsychía.

E no entanto o Verbo nunca foi pregado com mais força do que nessa figura silenciosa e sozinha. Ela abre, por meio de sua pura presença, à ideia do im-possívelpara nós, isto é, da possibilidade extrema de que ocorra, de que haja a capacidade de corresponder à medida de liberdade, de conhecimento e de doação que nele, por uma única vez, se encarnou. Somos como que irreversivelmente atraídos para aquele ‘mais além’, procurando seguir a direção de seu olhar. Assim, exprime-se nesse ícone da Ressurreição uma autêntica teologia crucis. Não só Cruz e Ressurreição não podem ser dissociadas, como acontece quando são concebidas como momentos ‘em progressão’, em que o segundo momento ‘supera’ o primeiro ou constitui seu ressarcimento desde sempre assegurado, como também a Ressurreição cumpre o sentido da Cruz, torna ‘perfeito’ aquele perdoar que a Cruz representa.

Por isso Maurizio Ciampa teve plena razão em ‘intitular’ seu livro sobre as imagens da Paixão segundo o Ressurreto de Sansepolcro (Nove croci, Morcelliana, Brescia, 1997)! É aqui em Sansepolcro que a Paixão recebe sua verdadeira imagem! Ela não poderia se realizar sem Seu retorno. Ele deve ressurgir do fundo do sepulcro para provar todo o peso de não ser acolhido, de não poder ser compreendido. Esse outro itinerário faltava à via que leva à Cruz: ser testemunha, mártir para ninguém. E mostrar que consegue suportá-lo, consegue insistir, apesar disso, no ato de doar, revelando seu perfeito sentido de liberdade e gratuidade. Esse é o sentido de seu estar. Seu sacrifício e suas feridas estão; mas são verdadeira tragédia, não desespero. A tragédia está além do esperar e desesperar. Naquele olhar, no mesmo instante, exprime-se a mais alta exigência — chamar todos os homens ao impossível de que Ele é capaz — e, ao mesmo tempo, exprime-se a força da mais paciente espera pelo evento desse mesmo impossível. Essa figura decidiu livremente manter aberto o espaço de tal interrogação e, portanto, decidiu ser-para-o-outro mesmo que o outro nunca chegue a vir. Imitai-a (imitativo Christi), parece Piero dizer — “ne simus homines”, acrescentaremos com Agostinho. Imitai, vós népioi, aquilo que aqui compreendeis não conseguir ‘compreender’. Este último skándalon é o que nos impõe a imensa obra de Piero.

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Massimo Cacciari (Foto: Armando Rotoletti/Editora Âyiné)

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Traducão: Denise Bottmann 

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