Cinema

O estilo transcendental de Paul Schrader

por Miguel Forlin

Durante os créditos iniciais de Hardcore – No Mundo do Sexo, o público é apresentado a um cenário idílico. Ao som de uma canção agradável e nostálgica, seguem-se imagens de igrejas, ruas sob a neve, crianças brincando, enfeites natalinos, lares hospitaleiros etc. Não parece existir nada de errado nesse universo. É como se os moradores de Grand Rapids tivessem transformado a segunda maior cidade do estado de Michigan num paraíso terrestre. No entanto, quando a câmera se coloca dentro da casa de um dos familiares do protagonista, surgem tensões e olhares misteriosos.  Não sabemos qual é a origem desse desconforto, mas no exato momento em que Jake VanDorn (George C. Scott) descobre que a sua filha se tornou atriz pornográfica, a situação muda completamente.

É assim, de maneira repentina, que a perfeição vista no início desaparece. Por trás desse mundo ilusório, o elo entre pai e filha se rompeu. Como consequência, a garota fugiu de casa e escolheu uma profissão desprovida dos valores e costumes que lhe foram ensinados na infância e adolescência. O porquê disso ter acontecido é um mistério cuja solução será fornecida somente nos instantes finais, quando os dois personagens se reencontrarem. Porém, nos minutos derradeiros, percebe-se que a busca pelo paradeiro da filha escondia um conflito existencial profundo. Tanto a fé quanto a consciência de Jake estavam em crise. Salvar a confusa Kristen VanDorn (Ilah Davis) era salvar a si mesmo. E se essa batalha interior não é inteiramente notada nas cenas anteriores, é em razão da dialética presente na trajetória do protagonista.

Quando está em Los Angeles à procura de respostas, Jake se vê numa realidade completamente diferente daquela com a qual estava acostumado. Os ambientes acolhedores e os gestos graciosos permaneceram em Grand Rapids. Na cidade dos anjos caídos, longos travellings revelam bordéis, casas de striptease e locadoras de vídeos pornográficos. Os vícios e instintos mais animalescos são celebrados publicamente sem que haja o menor resquício de culpa ou arrependimento. Ao entrar numa casa de prostituição, Jake é banhado por uma forte luz vermelha. Não há dúvidas: é uma descida ao inferno (de certa maneira, esse choque já tinha sido antecipado na conversa entre o personagem e um detetive particular que reside na Califórnia, quando, ao falarem da investigação, quase transformaram as suas diferenças em confronto físico).

Curiosamente, esse universo moralmente corrompido é o espaço em que ocorrerá a salvação espiritual do protagonista. Momentos antes de viajar, após ouvir alguém próximo dizer que Deus o estava testando e que tinha de ter fé, Jake responde da seguinte maneira: “Você teria?” Essa pergunta tem quase um efeito retórico. Afinal de contas, é difícil pensar de uma maneira diferente quando, depois de anos sendo um homem e cidadão exemplares, é necessário ir atrás da filha desaparecida. Surpreendentemente, essa fé só é recuperada no momento em que o diálogo final entre ele e Kristen consolida-se como a luz no fim de um túnel longo e horripilante.

George C. Scott, em cena de Hardcore.

No entanto, nota-se uma aparente contradição entre esses dois movimentos narrativos. Como é possível que um sujeito seja tocado pela graça divina justamente ao mergulhar na situação cujas etapas iniciais o tornaram um descrente? Todavia, há uma resposta a essa pergunta e ela pode ser encontrada nos recursos da técnica cinematográfica. No seu livro de 1972, intitulado Transcendental Style In Film, Paul Schrader chega a uma conclusão reveladora. Analisando alguns filmes de Yasujiro Ozu, Robert Bresson e Carl Theodor Dreyer (a nova edição também contém reflexões sobre as obras de outros cineastas), ele afirma que, mesmo sendo diferentes sob muitos aspectos, esses três diretores compartilhavam um estilo, o qual é chamado de “transcendental”. De acordo com Schrader, o objetivo final é eliminar progressivamente os elementos empáticos característicos da arte cinematográfica e substituí-los por uma abstração, oferecendo o entendimento no lugar da emoção.

Para se obter esse efeito, são necessárias três etapas. A primeira é constituída de restrições no trabalho de câmera, nas performances e na montagem. Não só o superficial é eliminado como também componentes que podem indicar a presença de calor humano. A etapa inicial do “estilo transcendental” se caracteriza pela criação de um universo frio, triste e sem sentido. A segunda, por sua vez, é definida pelo surgimento de uma situação ou “paixão” (como Schrader diz) que resulta em ações decisivas (milagres, mortes, sacrifícios, choros etc.). Nesses momentos, se estabelece um confronto entre a dupla natureza do filme (graça divina e realidade concreta). A terceira, por fim, é a conciliação das duas anteriores. Retorna-se ao universo de antes, mas com a certeza de que existe uma realidade transcendente. O mundo continua sendo um lugar de trevas e dor, porém, há o alento do fundamento divino (como diz o padre moribundo no final de Diário de um Pároco de Aldeia: “Tudo é Graça”).

Ora, diante dessa conceituação, a estrutura de Hardcore – No Mundo do Sexose torna muito mais clara. Embora haja distinções nítidas entre Los Angeles e Grand Rapids, as duas cidades são essencialmente frias. Enquanto uma se afunda na libertinagem e devassidão, a outra está tão imersa em confortos e aparências que ninguém consegue enxergar o sofrimento dos seus moradores. A abordagem de Schrader não mente: movimentos precisos de câmera, trilha sonora ambígua e cortes abruptos revelam uma contenção sufocante. Em termos religiosos, o trabalho do diretor pode ser comparado ao papel de um padre no confessionário: à medida que o fiel lamenta dolorosamente os seus pecados, o sacerdote ouve tudo pacientemente e, ciente do que os humanos são capazes, não se surpreende com a lista de atos pecaminosos.

Contudo, na ocasião em que Jake revela toda a culpa que sente, surge uma leve brecha nessa construção estilizada e a ação decisiva (característica marcante da segunda etapa) se converte em lágrimas. Assim como no final de Era uma Vez em Tóquio, é um choro que purifica o mundo. Vendo que foi o seu próprio orgulho que levou a filha a buscar carinho em outros lugares, o protagonista compreende que ele foi o único culpado por aquele estado de coisas. Se tivesse demonstrado o amor que sempre nutriu, Kristin teria continuado em Grand Rapids. Não tinha porque culpar Deus se a frieza que originou tudo tinha vindo somente do seu comportamento gélido.

Paul Schrader.

Sendo assim, o que resta aos dois é abandonar Los Angeles e voltar à cidade natal. Aliás, logo depois de tentar salvar uma prostituta que tinha lhe ajudado, Jake escuta o detetive particular dizer: “Volte para casa, peregrino. Você não pode fazer nada. Você não pertence a este lugar”. Porém, o ato de ir para casa não significa que as coisas mudaram. Los Angeles continuaria sendo a cidade da perdição e a indústria pornográfica não pararia de crescer. Grand Rapids permaneceria abrigando famílias disfuncionais e jovens insatisfeitos. Mas para o protagonista e a sua filha, nada será como antes. Agora, há entendimento e compreensão. A fumaça que cobria a realidade se dissipou. Ao cometer o pecado que o leva à Queda, o Homem conhece o mundo e nele se perde. A redenção vem apenas com o reconhecimento da própria insignificância e da força que fundamenta todo o resto. É como um círculo que se fecha ou a síntese de uma dialética. Tudo é convergência e conciliação.

Miguel Forlin

Miguel Forlin é crítico de cinema e colaborador de diversas publicações na área.