Sociedade

Os perigos da minoria intolerante: uma análise a partir da obra de Taleb

por Ariel Bozza

Uma parceria de conteúdo com o Instituto de Formação de Líderes – São Paulo.

Faz mais de 20 anos desde que Nassim Nicholas Taleb começou a escrever sua obra, Incerto – Uma investigação sobre sorte, incerteza, probabilidade, opacidade, erro humano e tomada de decisão. Ao longo de cinco livros, cada um nascendo das costelas do anterior, desenvolveu sua obra como espirais concêntricas, cobrindo temas gradualmente mais abrangentes. Seu ponto de partida é a predominante estatística de Fooled by Randomness, chegando até uma série de diretrizes éticas de seu livro mais recente, Skin In The Game.

Vermelho – Fooled by Randomness, Verde = Skin In The Game

Sua obra é complexa e marcada por essa interdependência, de modo que, neste artigo, vou tratar apenas de uma teoria modular, a teoria da minoria intolerante. Que se trata de tema relevante é evidente, uma vez que estamos em ano eleitoral e testemunhamos todos clara tendência polarizante nas redes sociais, e mesmo além delas. Meu objetivo é simples: explicar o que é uma minoria intolerante, quais são os perigos que ela traz consigo e como, frequentemente, ela consegue se impor, convertendo a maioria que a tolera.

Taleb propõe, em primeiro lugar, a noção de sistemas complexos, isto é, sistemas com muitos componentes com interações que não podem ser explicadas ou modeladas com base nas características de componentes individuais. Não é possível, por exemplo, entender uma colônia de formigas ao analisar uma formiga separadamente. E é exatamente aí, no âmbito das interações entre os agentes, que entra a teoria da minoria para tentar ajudar a explicar o coletivo.

Antes de tudo, existem condições para que a teoria da minoria intolerante seja aplicável: a escolha alternativa da minoria intolerante não pode ter um custo substancialmente maior (uma pessoa que só jante em restaurantes que tem estrela Michelin, por exemplo, não conseguirá impor sua vontade em um grupo com restrições orçamentárias). Além disso, a minoria precisa estar espalhada geograficamente de uma forma homogênea e precisa ser absolutamente intransigente em suas vontades.

O mecanismo é, em parte, auto-evidente, ao observarmos um piquenique, por exemplo. Se em um grupo de quatro, uma pessoa é, digamos, alérgica a amendoim, a comida e a bebida do grupo inteiro não conterá nenhum vestígio da vagem. A mesma lógica se aplica no consumo de bebidas no Estados Unidos, exemplo usado pelo autor. Menos de 0.3% da população americana é Kosher, mas grande parte das bebidas industrializadas observam as restrições e costumes religiosos envolvidos em sua manufatura. Abaixo, a representação visual de como essa mecânica funciona.

Gráfico 2: Mecânica de Renormalização

Assim como essa dinâmica funciona ao se explicar temas relativamente inofensivos, como hábitos alimentares, também podemos observar como as minorias intolerantes conseguem forçar seu modus operandi no funcionamento das maiorias. Por exemplo, o autor descreve um caso de como essa dinâmica se aplica à religião: de acordo com a fé Muçulmana, a apostasia – o abandono da fé – é o pior crime para a religião, punível por morte. Naturalmente, pessoas que se converterem abandonarão a religião muito menos do que em outras fés, devido à intolerância à dissidência, o que só ajuda a religião a se espalhar mais. Ademais, existem mais assimetrias. Uma outra é a da condição de conversão para poder casar com alguém dessa fé. Um exemplo famoso citado por Taleb é o do ator Omar Sharif, que se converteu para se casar e reteve a fé após o seu divórcio. De fato, essa dinâmica é comprovável na realidade, em países como Líbano, Síria, entre outros do oriente médio, que outrora foram países mais diversos, hoje são majoritariamente muçulmanos. Até em Israel, país majoritariamente judeu, já é possível ver um crescimento expressivo da população muçulmana em pouco mais de uma geração, de 8% em 1950 para 18% em 2016.

Essa dinâmica é aplicável ao fenômeno de polarização política. Os extremos políticos, tanto a extrema direita quanto a extrema esquerda, tendem a ser mais intolerantes que o centro. Seguindo a lógica da minoria intolerante, os extremos aos poucos convertem a maioria tolerante, e a polarização se agrava. O partido Democrata, por exemplo, quase nomeou Bernie Sanders, um socialista declarado, como seu candidato nas primárias. Vale lembrar que estamos falando do partido de John Kennedy que em um de seus discursos mais famosos, pronunciou a seguinte frase: “Ask not what your country can do for you, ask what you can do for your country” // “Não pergunte o que seu país pode fazer por você, se pergunte o que você pode fazer pelo seu país”.

Para entender a dinâmica do crescimento da minoria intolerante no tempo, executei uma simulação simples, que almeja emular a dinâmica de renormalização, que é o processo de conversão da população à opinião ou prática da minoria intolerante  (exposta no gráfico 2). Para tal, foram usados somente três parâmetros: tempo (medido em iterações), porcentagem de minoria intolerante na população em “t0” (ou seja, quando a simulação começa), e tamanho do grupo (o gráfico 2 tem um desenho fractal de grupos de tamanho 4: ou seja, cada indivíduo faz parte de um grupo de quatro, que por sua vez fazem parte de um outro grupo de 4, e assim por diante, compondo toda população). O modelo usa essas 3 variáveis de input para calcular o output: a porcentagem de população convertida à opinião ou às práticas da minoria intolerante, denominado “% de Renormalização”.

Gráfico 3: % de Renormalização no tempo em duas populações: minoria intolerante 0.1% da população (esquerda) e minoria intolerante 1% da população (direita)

Acima, notam-se duas características importantes de como o coletivo se comporta. Em primeiro lugar, o crescimento exponencial, o que faz sentido devido à dinâmica do gráfico 2 de conversão de cada vez mais grupos e indivíduos contidos neles. A natureza exponencial do gráfico é importante pois reforça como essa dinâmica da minoria intolerante se move devagar a princípio e rapidamente acelera, de modo a converter toda a população. Além disso, existe uma clara tendência assintótica, ou seja, de tender a 100%, que trabalha na contramão e suaviza a curva. Isso significa que, se por um lado a velocidade de normalização, ao seguir sua natureza exponencial, aumenta no começo, por outro lado só é possível converter a população uma vez, logo o máximo é 100%. Talvez essa seja uma das limitações do modelo, que não represente bem a realidade. É possível argumentar que ao chegar perto de 90% de conversão, em vez da velocidade diminuir, o que corresponderia a natureza assintótica a qual me referia, a conversão daria um pulo para 100% de uma vez. Logo esse efeito assintótico de chegar perto dos 100% é algo a ser levado em consideração. Dito isso, para todos efeitos práticos, o importante é observar a velocidade com a qual a minoria intolerante ganha extrema relevância na população. Se estamos falando de refrescos e refrigerantes, não há mal algum. Mas, dependendo de quais são as crenças dessa minoria intolerante, o cenário já se torna perigoso.

Gráfico 4: % de Renormalização vs. Tamanho do Grupo, em dois instantes no tempo: T + 4 (ou seja, após quatro interações, esquerda) e T + 10 (ou seja, após dez interações, direita)

Há outros estudos interessantes que seguem a mesma linha proposta aqui. Um artigo recém publicado na Nature por Damon Centola, Joshua Becker, Devon Brackbill e Andrea Baronchelli chegou a conclusões similares em relação a minorias intolerantes, apesar de adotar uma nomenclatura e método distinto ao usado por Taleb e por este artigo. Em resumo, o estudo chega à conclusão de que minorias conseguem consistentemente alterar um comportamento já estabelecido, assim mudando convenções sociais. O estudo analisa como é o comportamento do grupo variando qual a porcentagem da minoria perante a população, e concluem que o ponto de inflexão está entre 20% e 25%. Em outras palavras, é necessário apenas 20-25% da população para alterar o comportamento de todos, e não 50%. Dito isso, esse estudo foca mais em normas e costumes sociais, enquanto o modelo descrito aqui, assim como a teoria da minoria intolerante, se preocupa mais com a ação. É possível argumentar que a primeira leva à segunda, mas é importante fazer essa distinção.

Por fim, fica a questão se, dada a natureza do comportamento de coletivos sobre a qual discorri acima,  do potencial perigo, no campo das ideias, das minorias intolerantes. Existe uma obrigação moral de se opor a minoria intolerante cujas ideias são claramente ameaças à liberdade alheia. Em primeiro lugar, por uma questão de princípio: pelo simples fato de uma eventual minoria intolerante só poder exercer sua opressão em sistemas que permitem a liberdade e a deem voz a todos, usar essa liberdade pra prejudicar o próprio sistema que permite essa liberdade é errado, e por isso merece ser combatido. Um exemplo prático é que devemos ser contra qualquer ativismo pró-censura, não importa o quão intolerante ele seja, pois esses ativistas só tem direito de protestar em um sistema de liberdade de expressão.

Em segundo lugar, porque devemos levar em consideração as consequências: não importa o quão pequena a minoria, dada a velocidade de conversão e sua natureza exponencial, é necessário ter muita cautela com minorias intolerantes, especialmente se o que elas acreditam ferem o que nos torna livres e prósperos. No começo os intolerantes podem parecer pequenos, insignificantes e sem representatividade. Mas, como procurei mostrar, a partir da análise de Taleb, podem se tornar rapidamente uma maioria.

Como diz o famoso bordão, frequentemente atribuído a Thomas Jefferson, “o preço da liberdade é eterna vigilância”. Devemos, para todos os fins, ser intolerantes aos intolerantes.

Fontes e sugestões de leitura.

https://medium.com/incerto/the-most-intolerant-wins-the-dictatorship-of-the-small-minority-3f1f83ce4e15

https://www.kashrut.com/consumer/soda/

https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/28607070

https://warrencenter.upenn.edu/wp-content/uploads/2018/05/Centola-et-al.-2018-Science.-Tipping-Point.pdf

https://www.asc.upenn.edu/news-events/news/research-finds-tipping-point-large-scale-social-change

https://www.sciencedaily.com/releases/2018/06/180607141009.htm