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Poesia em Casa – Entre Ítacas

“O retorno de Odisseus”, de Claude Lorrain

por Pedro Gonzaga

Haverá dois tipos de leitores, não mais, e desta máxima não escapam os de poesia. De um lado, os que voltam sempre a um par de obras, a um par de autores, crendo cedo ou tarde chegar, por esgotamento, à fonte única de todas as totalidades; do outro, estão os leitores que buscam a cada dia uma nova voz, um novo texto, supondo residir no ignorado a peça que ainda revelará a plenitude apenas intuída. Não creio que sejam posições estanques, nem que somos esses mesmos leitores todo o tempo ou a vida toda. Mas que há uma inclinação, isso me parece inegável.

Penso pertencer ao segundo grupo. Durante anos, suportei calado a chacota, a mofa cruel de amigos (assim ditos) diante da minha busca por poetas chineses, persas, por líricos clássicos e modernos, atrás de um poema que revelasse em definitivo o que está para além dos umbrais da realidade.

Acessório dizer que nenhum leitor terá encontrado o que procurava, o que não deixa de ser uma figuração da vida: o espaço entre dois pontos inacessíveis, a irrecuperável partida, a inalcançável chegada, duas Ítacas diversas e iguais. Daí a figura de Ulisses e seu perene fascínio. Talvez mais que o próprio Homero, o alexandrino Kaváfis tenha entendido o destino do herói grego, que é também o dos leitores:

Ítaca

Assim que rumares para Ítaca
roga para que seja longo o caminho
cheio de peripécias e descobrimentos.
Aos lestrigões e aos cíclopes
ou ao iracundo Possêidon não temas,
não encontrarás tais coisas em teu caminho
se alto é teu pensamento e refinada
a emoção que a teu espírito e corpo toca.
Aos lestrigões e aos cíclopes
ou o fero Possêidon não haverás de encotrá-los
a não ser que os leve em tua alma,
a não ser que tua alma os coloque frente a ti.
Roga para que seja longo o caminho.
Que muitas sejam as manhãs de verão
ao chegares — com que prazer e alegria —
a portos nunca vistos.
Detém-te nos empórios da Fenícia
e compra ali belos artigos,
madrepérola e coral, âmbar e ébano,
e toda sorte de perfumes sensuais,
tantos perfumes sensuais quanto possas.
Visita muitas cidades egípcias
e lá aprenda e reaprenda com seus sábios.
Mantém sempre Ítaca em tua mente.
Lá chegar é teu destino.
Mas de nenhum modo apressa a viagem.
Melhor deixar que dure muitos anos,
para que chegue já velho à ilha,
rico com tudo que ganhaste no caminho,
sem esperar que Ítaca te dê riquezas.
Ítaca te deu uma graciosa viagem
se não fosse por ela não terias empreendido o caminho
mas agora ela já não tem nada para te oferecer.
E se a achares pobre, Ítaca não te terá decepcionado.
Sábio que te tornaste, com tanta experiência acumulada,
entenderás então tais Ítacas, o que elas significavam.

De minha parte, seguirei buscando a busca da terra poética que seja a derradeira Ítaca. Até lá prometo ir aqui na coluna à Escandinávia, ao México, à Índia ou ao arrabalde mais fundo de um Brasil qualquer, onde quer que esteja o fragmento de um lar.

Pedro Gonzaga

Pedro Gonzaga é poeta, tradutor, músico e professor. Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é autor de A Última Temporada, Falso Começo e O Livro das Coisas Verdadeiras (Arquipélago Editorial), sua estreia na crônica. Seu livro mais recente é Em outros tantos quartos da Terra.