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Polônia: laboratório das Democraturas

por Rodrigo de Lemos

Trocar a Europa Ocidental pelos países do Leste não é trocar de idioma, mas é como adquirir um sotaque que o torna quase irreconhecível. A relação com os edifícios religiosos talvez seja o traço mais distintivo dessa outra dicção em países como a Polônia – e não o menos  simpático esteticamente. Estão lá todas as referências a que estamos acostumados no catolicismo ocidental: os símbolos bíblicos nos vitrais; as ogivas e as florestas de pináculos góticas; a retórica do espaço característica do Barroco. E, no entanto, como uma outra inflexão na voz, uma diferença se faz sentir. As igrejas de Roma ou de Paris mantêm seu significado religioso não necessariamente contra a espetacularização do sagrado estimulada pela indústria do turismo, mas passando por ela, com o risco de seu esvaziamento. Já vimos imagens das missas em Notre-Dame em que a Paixão de Cristo é rememorada em toda a solenidade enquanto turistas de shorts tiram fotos ou tomam refrigerante. Não se trataria de uma daquelas numerosas conciliações que a religião nos países laicos teve de compor com o mundo, de maneira a sobreviver na sociedade do lazer – e, no caminho, de se valer dos meios desta para conquistar corações?

Não é esse o clima nas igrejas na Cracóvia. A regra nelas é o rigor. As proibições não se resumem às fotos durante as missas. Vedam-se mesmo as visitas nessas horas. Na Europa ocidental, paga-se entrada no mais das vezes somente nos tesouros e nos campanários. Nas igrejas polonesas, não é incomum que o simples acesso à nave seja cobrado – com uma taxa a mais pelas fotos. Qualquer infração é repreendida num tom que não é dos mais sorridentes. Se o catolicismo no Ocidente europeu passa a imagem de um padre bonachão tolerante às incivilidades das crianças, conquanto elas ouçam a homilia, o tom da Igreja no Leste é ainda o daquele cura ranzinza da literatura do século XIX, esbravejando contra o mundo moderno. Há comicidade e algum charme nessa opção pelo tradição contra tudo e contra todos. Salvo que essa reação pelo rechaço não se limita à religião; ela abarca qualquer imagem atribuída mais ou menos fantasiosamente à Europa ocidental.

Essa resposta, política, ficou clara em 2015. A eleição surpreendente do conservador católico Andrzej Duda, do Partido Direito e Justiça (PiS), marcou o caminho da Polônia em direção às democraturas. O roteiro na Polônia é semelhante ao que transcorre em países como a Hungria ou a Turquia. As eleições são em aparência normais; partidos de oposição não são imediatamente relegados à ilegalidade; os poderes continuam, a um primeiro olhar, separados – mas o pluralismo, substância da vida democrática, é atacado com uma constância sem falhas.

Trocar Londres ou Paris pela Polônia é também deixar um empório caótico de tipos físicos e de culturas em favor de uma multidão etnicamente homogênea

A deriva autoritária se dá a partir de dentro do sistema também na Polônia. O quadro pintado pelo ensaísta Piotr Porayski-Pomsta, em um brilhante artigo de 2018 na revista Le Débat (n. 198), lembra o de outros regimes que forçam a ambiguidade entre democracia e autoritarismo. Nenhum órgão deve ser fechado porque todo órgão pode ser pervertido. Os primeiros, fundamentais, a sofrerem são os da Justiça. O PiS se esforça por docilizar a Corte Constitucional pela cooptação ou pela nomeação legalmente contestável de juízes, e o Ministério da Justiça polonês tentou fazer o mesmo com relação aos juízes de direito comum. O Ministério da Defesa ataca o Estado-Maior do Exército por meio de demissões não menos discutíveis. O sistema educacional é aparelhado, de maneira a veicular um ensino patriótico, de exaltação à identidade nacional. O Ministro do Meio-Ambiente autoriza a indústrias a exploração sem freios de uma das mais antigas florestas do continente. Os serviços de informação, sob o controle do partido, gozam de um poder crescente, e, prescindindo de censura formal, o Executivo tenta a todo custo controlar os jornalistas, expostos a uma rotina de intimidações. Com o controle do Judiciário, os mecanismos tradicionais de censura são coisa do passado, e a lei de imprensa mais liberal sempre pode dizer seu contrário, bastando seu manejo habilidoso.

Essa onda conservadora rebentou aos olhos do mundo no Dia da Independência, em 11 de novembro de 2017, quando 60.000 pessoas reuniram-se numa marcha organizada pela extrema-direita onde foram comuns slogans racistas e antilaicistas. O presidente Duda condenou as expressões mais inflamadas, mas Pomsta lembra em seu ensaio que lideranças do partido governante elogiaram a parada como uma demonstração de verdadeiros patriotas. O recente assassinato do prefeito de Gdansk, o liberal Pawel Adamowicz, sem ser diretamente associado à extrema-direita, não contribuiu a reconfortar os sentimentos dos opositores.

Esses estão muito longe da inação. Em 2017, as tentativas de tutela do Judiciário pelo PiS provocaram protestos em todo o país; cerca de 50.000 opuseram-se nas ruas a projetos de lei que, entre outros, alteravam a composição das principais cortes; recitaram-se o Preâmbulo da Constituição e poemas de Milosz contra a tirania. Em outubro do mesmo ano, o químico Piotr Szczesny se autoimolou em protesto às derivas autoritárias do PiS. Nesse gesto dramático, Szczesny juntava-se às figuras de Jan Palach – o estudante tcheco que pôs fogo nas próprias roupas em 1969, com o fracasso da Primavera de Praga -, ou de Mohamed Bouhazizi, o desempregado tunisiano cujo suicídio político desencadeou tanto a queda do ditador Ben Ali quanto as Revoltas Árabes de 2010.

O caminho dos poloneses à democratura é longo e acidentado. Para Pomsta, ele remonta aos primeiros anos de democracia pós-soviética e à desilusão cruel quanto ao liberalismo. A entrada, em 2004, na União Europeia simbolizou esse ciclo de euforia e de depressão. Os pequenos comerciantes conquistaram a liberdade econômica recusada pelo comunismo para depois verem suas lojas fecharem com a entrada de grandes redes ocidentais. O mesmo ocorreu com os pequenos artesãos. Com a queda do regime, os empregados das fazendas do Estado foram dispensados sumariamente – mesmo destino das estatais privatizadas, “otimizadas” às custas de “reestruturações”, ou seja, de demissões em massa. Frequentemente, investidores estrangeiros compravam essas empresas apenas para fechá-las. Como nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, o impacto do liberalismo globalizado foi duro nas zonas periurbanas e rurais. Não é por nada que um dos sustentáculos do poder do PiS, resolutamente anti-comunista, consiste precisamente em um programa social (defendido pelo homem forte do partido, Jaroslaw Kaczy?ski), que prevê o pagamento de bolsa para famílias com mais de dois filhos. Desde 1989, trata-se de uma das únicas iniciativas de distribuição de renda importantes visando aos deserdados do progresso econômico do país.

Pomsta assinala ainda fatores de longa duração que entraram igualmente no caldo de cultura que resultou no domínio do PiS. A relação dos poloneses com a Europa Ocidental é frequentemente de admiração e de rancor – uma ambiguidade que não é desconhecida aos povos do Leste (tchecos, húngaros, romenos) e mesmo a outras áreas periféricas ao Ocidente como a América Latina. Mais pobres do que ingleses ou do que alemães, poloneses pensam frequentemente no próprio país como o “Cristo das Nações”, martirizado desde as repartições do século XVIII até os massacres da Segunda Guerra e os horrores do comunismo; o caldo do ressentimento está sempre pronto a entornar.

A metáfora da Polônia crucificada pelas nações poderosas comporta outro elemento mitológico essencial à ascensão do PiS: o tradicionalismo católico. Este se nutre do ressentimento quanto a um Ocidente visto como decadente e secular. O presidente Duda se reivindica de um catolicismo extremo, mas é a figura do padre Tadeusz Rydzyk que contribui decisivamente ao fenômeno. Carismático, ele difunde, pelas ondas da Rádio Maryia, mensagens que repercutem no velho fundo antissemita renitente no país e que já foram objeto de reprimendas oficiais. Rydzyky, dono de mídias e de fundações culturais, influente na cúpula do PiS, criticado pelo Vaticano e por Lech Walesa, vocifera contra a “invasão” dos imigrantes e da difusão da “ideologia de gênero” nas escolas, meios do que ele chamada de uma guerra civilizacional contra o cristianismo, com o apoio da grande finança.

Ao mesmo tempo, sua retórica mobiliza o compreensível anticomunismo dos poloneses. Pomsta observa que esses, tanto na linguagem popular quanto no discurso degradado dos populistas, tendem a usar frequentemente o termo “esquerdista” como sinônimo de “corrupto”, de “incompetente” ou de “ladrão”. Não foram tanto a esquerda quanto as “elites liberais” que venderam o país às potências a Leste e a Oeste, que desdenham do povo e dos seus ídolos mais queridos, como o Papa João II?

Carismáticos religiosos de influência tentacular profundamente imbricados na política; brutalização do discurso político; profundo mal-estar identitário com o atraso civilizacional do país; retórica opondo o povo e as elites; constrangimentos do poder político aos corpos intermediários – o cenário não deixa de lembrar o Brasil de 2019 sob o impacto do populismo conservador. Salvo que as ruas da Cracóvia e dos vilarejos do interior na Polônia revelam outro problema, articulado diferentemente do que é o caso no Brasil: a preocupação com a pureza étnica. Se, por profundas razões históricas, o “embranquecimento da raça” permanece uma obscuro objeto de desejo em parte da sociedade brasileira, sua fantasia mais ou menos indizível, a preservação neurótica da branquitude como uma espécie de tesouro é o desígnio explícito da extrema-direita polonesa, tanto por razões passadas quanto pela recente crise migratória.

Trocar Londres ou Paris pela Polônia é também deixar um empório caótico de tipos físicos e de culturas em favor de uma multidão etnicamente homogênea como talvez fosse o caso nas metrópoles ocidentais antes da Segunda Guerra, com sua conversão em cidades-mundo. Apesar da truculência anti-imigração de Viktor Orbán, mesmo Budapeste apresenta maior variedade de tipos humanos do que a Cracóvia, talvez porque a capital húngara fosse um dos centros de um império multicultural como o dos Habsburgo. A Polônia pouco se expandiu para além da Europa Central; pelo contrário, foram as potências que se expandiram sobre seus limites, e por muito tempo seu lugar no império austro-húngaro foi periférico. Daí a “pureza racial” decorrente do seu relativo provincianismo. É sobre o medo de uma sociedade frágil, temerosa quanto à perda de sua homogeneidade na branquitude (sempre uma vantagem simbólica em um mundo onde se globalizou a cisão entre brancos ricos e não-brancos pobres), assim como na religião, que a extrema-direita polonesa colhe muitos dos seus sucessos políticos. Na marcha de novembro de 2017, faixas e cantos clamavam por “Polônia branca”, por “sangue puro” ou por, simplesmente, Deus: “Queremos Deus”, dizia um dos seus hinos.

Essa fórmula não deixa de ser perplexificante. Se uma coletividade quer Deus, o natural seria interpelá-Lo diretamente, chamá-Lo à epifania. Ora, não se constrange assim o Grande Ausente. Como todo pedido impossível, ele articula mais a angústia de quem pede do que uma expectativa sobre o real. No caso de países como a Polônia, que trilham o caminho das democraturas conservadoras, a angústia quanto à perda de uma ordem e de uma hierarquia largamente fantasiadas, bem como uma vontade de revanche sobre quem embaralhou as cartas.

Rodrigo de Lemos

Rodrigo de Lemos é doutor em Literatura pela UFRGS-RS e professor de Língua e Cultura Francesa na UFCSPA-RS. Escreve sobre Cinema e Literatura no Estado da Arte.