Literatura

Proust e uma abordagem via consciência

Por Thiago Blumenthal

Talvez Proust tenha sido um dos primeiros autores da modernidade a pôr fim a uma antiga cisão entre arte e ciência. Em sua Recherche, Marcel perscruta caminhos sobre a mente humana que a ciência ao longo de mais de um século se pôs a estudar, em suas diferentes áreas. Em Proust ciência e arte se integram em uma crítica expansiva, em um diálogo vital para a compreensão dos espaços e dos amores, dos afetos, na obra.

Na poética proustiana, há um desprendimento entre visão e mente, como se estes estivessem em um constante jogo de aproximação e distanciamento. O que podemos chamar de “disparo emocional” é a faculdade inata do narrador de se deixar levar pelo espaço em que empreende, por exemplo, uma viagem, ilustrado perfeitamente na imagem do disparo do trem pelas terras. Ou quando observa pela primeira vez Gilberte, Albertine (ou mesmo antes, quando ouve falar delas pela primeira vez), cria-se um mecanismo mental que já o liga a esses eventos, a essas pessoas, que serão parte integrante, fundamental de sua vida e que vão definir e redefinir seus passos ao longo do romance.

Não se trata de um determinismo em que somos produtos de experiências químicas em nosso cérebro, mas antes de uma relação de prisão e fuga (realizada na figura de Albertine) com nossos próprios pensamentos e, ainda, com nossos próprios sentimentos. A liberdade e a razão estão desenhadas, em Proust, para adaptar-se às experiências e aos espaços (o espaço é uma experiência). Se o olfato e as papilas gustativas carregam uma grande carga de memória involuntária, não é por acaso que o Narrador reconhece, como um cientista – e daí sua linguagem ensaística –, esses sentidos como extremamente sentimentais, únicos que se ligam com o hipocampo, centro da memória de longo prazo.

A realidade para Proust parece não existir como algo objetivo, como impressões que demandam interpretação, para além do olho, para além do olhar. Em um ato de desconstrução, a Recherche afina seu próprio sentido no sentido de buscar, rechercher, distintas maneiras de descobrir a realidade, uma outra realidade, uma realidade mais sensível, não menos real.

O texto proustiano é analítico em seu tom e escrito em retrospectiva por alguém que de maneira alguma busca mimetizar o estado de consciência que está buscando recordar. Alusões das mais variadas, muitas delas ligadas ao espaço, são empregadas para elucidar a experiência através das associações culturais de cada leitor. Pelo uso do tempo imperfeito observamos como o Narrador descreve um perfeito exemplo do que para ele era um fenômeno habitual, e o leitor infere um apelo anterior a essa própria experiência. O espaço é um espaço que o precede, desse modo, como o amor é adiantado, anunciado, antes mesmo de se tornar um amor concreto. Apaixona-se por Gilberte de tanto ouvir-se falar nela.

De certo modo, o que a Recherche nos diz, em seu subtexto, é que todo romance é um romance sobre a mente, sobre disparos emocionais que motivam, influenciam, alteram, perturbam a vida de seus protagonistas, e de seus personagens. Para o crítico e teórico Jean-Louis Chrétien, o objetivo de todo romance desde sua concepção é transparecer a consciência de suas personagens, como uma cardiognosia [sabedoria do coração] grega, o atributo divino que faz com que os deuses conheçam o que se passa nos corações dos homens. Corações e mentes.

Todas as manhãs nos restitui a nosso primeiro amo, certo de que, do contrário, não o serviríamos bem. Apenas nosso espírito descerra os olhos, já os mais espertos dentre nós, ávidos de saber o que poderemos ter feito sob as ordens do senhor que deita seus escravos antes de os submeter a um trabalho apressado, procuram sub-repticiamente espiar a mal terminada tarefa. Mas o sono luta de velocidade com eles, a fim de apagar as pegadas do que queriam ver. E, após tantos séculos, ainda pouco sabemos a esse respeito. (TR, p. 22)

O espaço proustiano se constrói a partir desses disparos emocionais em que o homem busca descrever seus erros por essa geometria em paralelo com o tempo, como se representasse a natureza humana de dentro, de uma introspecção para testemunhar ao leitor suas vidas mais particulares e suas intimidades. No caso da narração em primeira pessoa, temos apenas as impressões, as suposições, mas, mais do que isso, uma recriação ficcional de personagens reais dentro de um universo criado em um mundo sensível feito de estética.

A Recherche explora e categoriza a atividade mental de seus personagens através de uma detalhada análise, antes de liberar ao leitor o que eles podem ressignificar, em uma terceira etapa dessa construção interpretativa, exegética.

Quando falamos em “disparo emocional”, “mente”, “consciência”, precisamos definir, ainda que de maneira sóbria, estes conceitos, para então estabelecermos de que modos eles se relacionam com os elementos narrativos da Recherche. O que, por exemplo, distingue mente de consciência? Seguindo as fontes mais renomadas deste assunto, como Antonio Damasio, podemos definir mente como a esfera privada da percepção, da cognição, da sensação e da emoção, além da linguagem e das imagens do pensamento consciente, memória, imaginação, sem contar toda a enorme atividade mental da qual não estamos conscientes (que em Proust são muito relevantes).

Já a consciência e o insconsciente são subcategorias a partir das quais nosso conceito primário é definido, ainda que a linha divisória entre este par esteja, mesmo com o avanço da neurociência, aberta a debate. A mente tem sido associada ao intelecto e à cognição, na oposição cartesiana ao corpo, considerado o assento das emoções (as “intermitências do coração”). Para Damasio, e para a neurociência moderna, contudo, a mente e a consciência se desenvolvem a partir de processos básicos pelos quais um organismo mantém a integridade e a funcionalidade de seu corpo em resposta a um meio tanto interno como externo. E não é exatamente isto o que acontece durante toda a Recherche?

Mesmo descontando o índice individual de ingenuidade, espantoso no memorialista, tinha muitos motivos para tranquilizar-me. Primeiro, no que me tocava pessoalmente, minha incapacidade de ver e ouvir, tão penosamente posta em evidência pelo diário citado, não era entretanto total. Havia em mim alguém que sabia mais ou menos olhar, mas era uma personagem intermitente, só animada pelo contato de alguma essência geral, manifestando-se em muitas coisas, da qual tirava alimento e alegria. Então via e ouvia, mas só a determinada profundidade, de nada valendo, assim, para observação. Como um geômetra que, despojando os corpos das qualidades sensíveis, só lhes visse o substrato linear, escapavam-me o que as criaturas contavam, pois não me interessava o que diziam, e sim o modo pelo qual o diziam, e tanto quanto lhes revelava o caráter ou os ridículos; ou, melhor, o objeto sempre visado particularmente por minhas pesquisas, o que me causava um prazer específico, era a descoberta dos pontos comuns a vários seres. (TR, p. 23)

Desta autorregulação vem a autoconsciência, enquanto impulsos autoprotetores geram a emoção. Os espaços em Proust surgem durante eventos em que seus protagonistas experimentam um longo arco de emoções, do amor ao desejo sexual, do sofrimento ao desespero. As descrições espaciais equivalem às descrições mentais, intrínsecas a uma atividade mental interna como processos puramente cognitivos.

A consciência em si é surpreendentemente difícil de definir, por causa dos dois sentidos mais comuns que costumamos associar a ela. De acordo com V. S. Ramachandran, pode tanto se referir às sensações e aos pensamentos que experimentamos, como ao self que tem essas experiências. Uma sensação de estar consciente de si mesmo parece ser um elemento essencial da consciência: se sou um ser consciente devo saber não apenas que há uma sensação de dor, mas também que eu sinto dor, como muitas das passagens ensaísticas da Recherche.

 . . . aos que fazem da vida interior a sua ambiência, pouco se lhes dá o vulto dos sucessos. O que lhes modifica sensivelmente a ordem dos pensamentos é antes algo que, sem parecer ter em si mesmo a menor importância, destrói para eles a sequência do tempo, tornando-os contemporâneos de outra fase de sua vida. Podemos perceber isso na prática pela beleza das páginas que inspira um pássaro a cantar no parque de Montboissier ou uma brisa a trazer um perfume de resedá são, evidentemente, fatos menos marcantes do que as grandes datas da Revolução e do Império. Inspiraram entretanto a Chateaubriand, nas Mémoires d’outre-tombe, páginas de valor infinitamente maior. (TR, p. 30)

Essa autoimagem tem uma função uniforme, tal qual o espaço, de ligar os processos mentais na percepção consciente de que sou eu que vejo e penso, de que sou eu que sinto e sofro, de que sou eu que ocupo Combray ou Balbec, ou ainda de que sou eu que me lembro de ter ocupado Combray ou Balbec. Serve também para estender essa unidade buscada via memória na persona estável que podemos chamar de “eu autobiográfico”.

Para alguns filósofos, como Daniel Dennett, a consciência se desenha sobre um modelo de rascunhos múltiplos e fragmentados, em que pensamentos, sentidos e impressões são constantemente revisados e atualizados em diversas partes do cérebro, mas nenhuma “versão final” pode ser apresentada como um único modelo de percepção como resultado, por mais que nossa introspecção nos faça muitas vezes a pensar assim. Steven Pinker destaca três aspectos de sua própria definição de consciência: ela é caracterizada (1) pelo “autoconhecimento”, (2) pelo “acesso ao informação” e (3) pela “sentiência”. Para Pinker, a importância do autoconhecimento, algo que Marcel busca constantemente em sua Recherche, faz com que a mente tenha acesso aos conteúdos mais mínimos da memória de longo prazo, que podem ser relembrados mais facilmente, com tempo e com esforço, ou nunca podem ser relembrados. Como na ideia que aqui tratamento de o espaço ser esvaziado por uma ideia de um espaço.

Hoje falamos sobre nossas decisões conscientes e sobre nossos hábitos inconscientes, sobre experiências conscientes a partir das quais sentimos algum prazer, mas não mais sabemos exatamente o que queremos dizer com expressões desse tipo. Enquanto há pensadores que afirmam categoricamente que a consciência é uma coisa preciosa e genuína (como o amor, como o ouro), uma coisa que é simplesmente “óbvia”, e muito, muito especial, a suspeita maior e cada vez mais crescente é a de que a consciência é uma ilusão. Talvez os múltiplos fenômenos que conspiram para criar o sentido de um único fenômeno misterioso não tenha mais uma unidade essencial do que os variados fenômenos que contribuem ao sentido de que o amor é uma coisa simples. (DENNETT, p. 23)

Muita informação sobre o self é inacessível à consciência, seja de maneira contingente, como um nome lembrado pela metade, seja de maneira obrigatória, como os músculos necessários para levantar um livro. Já a “sentiência” – um termo que lembra muito a cultura oriental zen budista –, que é a experiência de pensamentos e de impressões pelo self, é também o aspecto da consciência mais essencial e mais misterioso (o “hard problem”), acessível somente pela intuição, não por uma mensuração subjetiva. Seria a experiência da memória involuntária proustiana. Foi e ainda tem sido motivo de muita especulação filosófica – e deve continuar sendo por mais alguns anos – em que se enquadram nesse campo hipóteses como a aquisição da linguagem (a linguagem como pré-requisito da consciência) e uma ligação entre linguagem e até mesmo psicanálise.

Por fim a quintessência dos elementos literários mais contemporâneos na representação da mente é a descrição do que a filosofia chama de “qualia”, definida por Block como “propriedades experienciais de sensações, sentimentos, percepções, e, de maneira mais controversa, pensamentos e desejos”. Qualia significa o como é ter uma experiência, sentir uma dor ou ver uma cor, experimentar um estado mental puramente interno como confusão ou raiva. A característica primária da qualia é que ela é subjetiva: minha experiência de, digamos, apaixonar-me não pode ser objetivamente mensurada e caso alguém esteja apaixonado pela mesma pessoa não podemos dizer que esteja sentindo a mesma coisa – decerto não está.

Expressar a vida interna mais escondida é uma das tarefas mais fundamentais da literatura. Metáforas e outros meios de linguagem poética são utilizados para expressar a subjetividade individual a ser compartilhada com o leitor, convidado a experimentar como é estar apaixonado, como tal espaço se configura na vida do protagonista, como o tempo decorre no romance, como a tristeza invade os corações e as mentes de inúmeros personagens. A literatura, sua raison d’être, é viver sob a perspectiva de outrem. Se somos prisioneiros, tal qual Albertine, de nossa própria subjetividade, rodeados por outras pessoas com quem interagimos e compartilhamos nossa vida social, mas cujas vidas internas jamais poderemos invadir ou conhecer, então um convite para entrar em outra mente e experimentar outra vida através de um olhar diferente tem um poder incomparável. É disto também que trata a Recherche, quando o narrador percebe enfim o poder da arte – da Arte – e faz de sua vida um palco artístico, onde seus amigos e amores se tornam personagens. Onde o espaço real se torna um espaço recriado, a terra se desola e vira um uma ideia sensível, em uma tentativa de representá-la (não a real) ao leitor.

Consciência, mente, qualia, são termos relativamente novos em literatura, é verdade, e não coube a este artigo desdobrá-los em seus menores detalhes e em suas mais variadas vertentes, posto que o propósito maior aqui foi traçar horizontalmente, e dentro de um certo recorte, como os espaços em Proust definem e redefinem certos estados de espírito, por assim dizer, no narrador (e em seus diversos personagens também, mas principalmente no narrador). Contudo, quando falamos em “estado de espírito”, amores, afetos, quando falamos em Gilberte e em Albertine, quando falamos na sensação que se tem ao acordar dentro de um trem a caminho de Balbec, com a leiteira a despertar todos os passageiros, estamos também falando de estados mentais, daí a inevitabilidade de trazermos à tona algumas reflexões sobre o assunto e, de maneira introdutória, que serve de um posfácio quase, apresentar termos mais técnicos que podem ser retomados em futuros estudos, não somente do autor francês, mas de toda a literatura.

Thiago Blumenthal

Thiago Blumenthal é fundador da editora Lote 42, doutor em Literatura e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.