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Recordando Mário Soares e os bons velhos tempos

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Este ensaio, de autoria do Professor João Carlos Espada, OBE, foi publicado originalmente no Observador, aos treze de julho deste 2020. O Prof. João Carlos, parceiro do Estado da Arte, é diretor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa e presidente da International Churchill Society of Portugal.

Registramos aqui nossos profundos agradecimentos ao Prof. João Carlos e ao Observador — personificado por seu publisher, José Manuel Fernandes — que, gentilmente, possibilitaram sua reprodução no Estado da Arte ao leitor brasileiro.

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Recordando Mário Soares e os bons velhos tempos

por João Carlos Espada

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Nos bons velhos tempos, uma das mais estimulantes observações de Mário Soares era que, em democracia, o pêndulo tem de ter espaço para se mover tranquilamente — um pouco mais para a esquerda hoje, um pouco mais para a direita amanhã. Mário Soares gostava de acrescentar que tinha aprendido esta lição muito simples durante o exílio em Paris e no contacto com as democracias europeias — longe do tribalismo nativo entre salazaristas e anti-salazaristas (onde tinha nascido e sido educado). E tinha constituído uma lição de vida.

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Mário Soares

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Em finais da década de 1980, numa inesquecível conversa com os académicos do Instituto de Ciências Sociais (fundado pelo inesquecível Adérito Sedas Nunes), o então já Presidente Mário Soares voltou ao tema enfaticamente. Recordou a referida “lição de vida” na Europa e o robusto contraste com a cinzenta experiência ibérica do século XX — em que, na chamada I República, os jacobinos da esquerda tinham começado a perseguir todos os dissidentes (a que chamavam “direita”) e depois todos os dissidentes voltaram a ser perseguidos pelos jacobinos de sinal contrário em nome do chamado ‘estado novo’. [Uma designação bizarra de que o conservador-liberal Edmund Burke teria desconfiado: porquê novo?]

Estas recordações são hoje muito pertinentes para contrariar o clima de tensão tribal que vem crescendo em inúmeras democracias liberais, incluindo a nossa. Alimentado, à esquerda e à direita, pelo tom sectário das chamadas “redes sociais”, este tribalismo é também favorecido pela rendição de grande parte das Universidades à ditadura do “politicamente correcto”.

É contra este novo clima tribal que apresento aqui as minhas primeiras recomendações de leituras para férias. Começo enfaticamente pela carta aberta de 153 intelectuais (sobretudo situados ao centro e centro-esquerda) publicada a 7 de Julho na edição online da Harper’s Magazine. “A Letter on Justice and Open Debate” é uma vigorosa denúncia do clima de intolerância que cresce, à esquerda e à direita, nas nossas praças públicas:

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“A inclusão democrática que nós queremos só pode ser alcançada se denunciarmos o clima intolerante que está a crescer em todos os lados [do espectro político]. A livre troca de informação e de ideias, o sangue vital de uma sociedade liberal, está diariamente a ser mais ameaçada.”

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(Reprodução)

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Um alerta semelhante, com uma tonalidade de centro-direita, está contido no mais recente livro de Anne Applebaum (também ela subscritora da carta aberta acima referida), Twilight of Democracy: The Seductive Lure of Authoritarianism (Doubleday, 2020).

Antiga colaboradora da Spectator The Economist, casada com Radek Sikorski (um Oxford Alumnus que foi ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia), ambos foram frequentes participantes nas edições anuais do Estoril Political Forum. E ambos participaram activamente na vasta coligação anti-comunista em defesa da democracia liberal que derrubou o Muro de Berlim em 1989 e consolidou as democracias na Europa central e de leste depois disso. Neste livro, Applebaum descreve com tristeza e preocupação a erosão daquela vasta coligação liberal-democrática na última década — sobretudo, neste caso, à direita.

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Anne Applebaum

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Os tribalismos de sinal contrário, inspirados em Lenine e Mussolini, retorquirão que a democracia liberal é um logro para perpetuar o capitalismo — e o chamado “capitalismo” é, como sempre foi, o bode expiatório da esquerda e da direita tribais. Dois livros recentes desafiam eloquentemente a dissonância cognitiva que afecta aqueles tribalismos de sinal contrário.

Attlee and Churchill: Allies in War, Adversaries in Peace, de Leo McKinstry, (Atlantic Books, 2019) é uma obra incontornável sobre a robustez da cultura política demo-liberal britânica. Dois líderes dos dois partidos rivais cooperaram solidamente no Governo de coligação durante a II Guerra — para depois se enfrentarem nas eleições gerais de 1945. Churchill, tendo liderado a vitória na guerra, perdeu a seguir as eleições por larga margem para Attlee. Mantiveram sempre o respeito mútuo e a cortesia, bem como as cerradas controvérsias entre Conservadores e Trabalhistas.

Na mesma linha, acaba de ser publicado por Andrew Adonis um livro com um título algo bombástico: Ernest Bevin: Labour’s Churchill (Biteback, 2020). Bevin foi com efeito um herói do sindicalismo britânico e um líder incansável da oposição trabalhista ao comunismo. De origem humilde e sem formação universitária, integrou o governo de coligação como ministro do Trabalho e, a seguir, foi ministro dos Negócios Estrangeiros no governo trabalhista de Attlee. Aí criticou as iniciais hesitações norte-americanas face à URSS. E participou activamente na criação da NATO e na denúncia do expansionismo comunista soviético. Sempre como orgulhoso anti-comunista líder do Partido Trabalhista e orgulhoso defensor do sindicalismo livre.

Ernest Bevin

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Eis porque comecei esta crónica com a expressão “nos bons velhos tempos”. Termino com votos de boas leituras, na esperança de que melhores tempos virão — inspirados e enraízados nos bons velhos tempos. [Nesses bons velhos tempos, a propósito, era costume ser dito em Oxford: “Change? Change? Aren’t things bad enough already?”]

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Edmund Burke, em ilustração de Siegfried Woldhek

Nossos profundos agradecimentos ao Prof. João Carlos e a José Manuel Fernandes, do Observador.

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