FOCO: Morrer e viver em Las Vegas – Showgirls, de Paul Verhoeven
por Matheus Cartaxo, em uma parceria com a Foco – Revista de Cinema
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Na estrada para Las Vegas, até o homem que dá carona tem o penteado de Elvis Presley. Será inevitável aos que pisam na cidade acabarem assumindo seus traços, tornando-se parecidos com ela? Em Showgirls (1995), testemunhamos tal processo de metamorfose acontecer com a protagonista. Desprovida de quaisquer raízes, sem amigos nem família, sempre evasiva quando lhe perguntam de onde vem, a aspirante a dançarina Nomi Malone aterrissa em Las Vegas como uma tela em branco à espera de ser utilizada.
Nomi é matéria-prima ideal a ser processada por uma máquina em pleno funcionamento, da qual o diretor Paul Verhoeven se esmera em fazer a descrição. Uma máquina muito bem oleada: são recorrentes os movimentos de steadicam filmando com fluidez e precisão os deslocamentos dos atores pelos cenários, como cassinos, camarins, boates, shoppings. Dentro e fora dos palcos, tudo parece ordenado, como se Sodoma e Gomorra fossem levadas às telas com o brilho resplandecente de um musical da MGM.
Nos bastidores de um dos mais importantes espetáculos em cartaz na cidade, Nomi conhece a grande estrela da temporada. Além da exuberância e sensualidade, uma marca de Cristal Connors é carregar de ironia quase tudo o que diz. Por habitar há mais tempo o mundo do showbusiness, ela parece perceber com extrema facilidade o que se move por trás dos panos, todas as tramas e desejos inconfessáveis. Enquanto os demais veem ingenuidade em Nomi (“It’s Versayce”), Cristal reconhece a jovem ambiciosa que ela mesma foi no passado e de quem agora escolhe ser uma espécie de mentora sádica.
Falávamos de Elvis, a quem ao menos em dois momentos Cristal faz alusão: após tomar champanhe com Nomi (“It’s now or never”, cita-o) e na sua última cena no filme (“Cristal has left the building”). Elvis é Las Vegas, Cristal também, e ambos são o que Nomi deseja. Entre as duas mulheres se estabelece uma relação vampiresca, na qual, constantemente de rostos colados, parecendo sugar a alma da outra, cada uma tenta obter a juventude ou o sucesso que lhe falta. Aos poucos, e a proliferação de espelhos no filme sublinha isto, Nomi vai se transformando em Cristal, ocupando seu lugar, como Cristal pegou o lugar de alguém um dia e como outra atriz já cobiça o de Nomi.
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O mundo de Showgirls é cíclico e repleto de prenúncios. Praticamente não há elemento que, entrando em cena, não seja retomado mais adiante. Se uma personagem diz que a escada de acesso ao palco é perigosa, num outro momento alguém deverá cair. Acumulando foreshadowings como esse e repetições (duas vezes as personagens vão à boate, duas vezes o dono do hotel fala à imprensa. duas vezes o amigo perde o emprego, duas vezes perguntam se Nomi já “ouviu o César cantar”), Showgirls vai fabricando em nós uma sensação de déja vu. Enquanto Nomi Malone se torna o reflexo de Cristal Connors, o próprio filme vai se duplicando diante dos nossos olhos.
Avançando na esteira de produção, Nomi vai se tornando uma réplica da réplica da réplica. Num ensaio, apressam-se em cortar fora uma rebolada exagerada sua. Tudo que destoa é proibido; é preciso adequar-se aos moldes, misturar-se, seguir pelo roteiro preestabelecido para o qual Cristal lhe serve de guia. A cada tarefa cumprida (fazer uma lapdance para o namorado de Cristal, exibir os seios para um diretor imbecil, dormir com o produtor do show e ganhar o papel depois), a metamorfose de Nomi vai se realizando, em prejuízo de sua personalidade, cada vez mais esquecida no fundo de si.
Ao longo de todo o filme, Nomi Malone (No Me? Alone?) quase nunca está sozinha. Desde a primeira cena, quando caminha para o acostamento para pegar carona, seus momentos de solidão são constantemente interrompidos. No decorrer de um dia ruim, a vemos cabisbaixa no banco de uma praça, até Molly Abrams, sua única amiga, aparecer.
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Não fosse Molly uma das raras pessoas decentes do filme, poderíamos suspeitar de haver em curso uma gigantesca conspiração para impedir Nomi Malone de mergulhar em seus próprios pensamentos, lembrar-se de quem é, ou, simplesmente, pensar, pois, isso acontecendo, toda a irrefreável transformação pela qual ela passa poderia ser colocada em risco. Lembremos: Paul Verhoeven também dirigiu Robocop (1987).
À beira da transformação estar completa, surge uma última tarefa: após aquela mesma amiga ser brutalmente estuprada por um cantor famoso e sua gangue de seguranças, Nomi é chamada a fazer vista grossa para o caso, à semelhança de todas as demais pessoas que estavam na festa onde o crime ocorreu e viram a jovem desmaiar ensanguentada no salão. Aceitando participar deste festim diabólico, estaria concluído o rito de iniciação de Nomi Malone, tornada plenamente parte de Las Vegas.
Com sua única amiga em coma, Nomi se vê irremediavelmente só. Acontece, então, o que os outros previam: seu passado adormecido irrompe como numa avalanche, trazendo inclusive um antigo nome próprio quase esquecido: Polly Ann Costello, senha com a qual ela retoma a posse de si mesma. Durante o filme, ela negava com veemência ser uma prostituta; nos minutos finais, entendemos que de fato já foi, mas agora é capaz de usar a seu favor o passado que renegava: vestindo-se como a Nomi de outrora, faz dos velhos trajes uma armadura para ir ao encontro do estuprador e se vingar em nome da amiga, com chutes e pontapés. Nomi Malone, enfim, não ultrapassa o ponto de não-retorno. Sua metamorfose em nova Cristal Connors fracassa e Las Vegas fica para trás.
Mas outra metamorfose aconteceu. De volta à estrada, um outdoor ainda estampando seu retrato é como um casulo abandonado por uma lagarta após a transformação em borboleta. Nomi apostou em Vegas? Sim. E o que ganhou? Ela responde: “Me.”
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