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Tiradentes, a história como pathos

por Jéssica Cristina Jardim

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Tiradentes ante o Carrasco por Rafael Falco, 1951

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A grande personificação de um ideal heroico no romantismo brasileiro é antes Amador Bueno do que Tomás Antônio Gonzaga; é antes Fernandes Vieira do que Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. E, acima destes, o modelo político objetivamente representado por D. Pedro I, o mais legítimo herói da Independência, diante do qual se eclipsam todos os outros, mediador fundamental da relação entre a literatura histórica romântica e seu compromisso com o Estado. Do lado oposto ao dos heróis que saem vitoriosos, por aderirem a um projeto político de emancipação política situado no futuro, como Vieira e Amador, estão Tiradentes e Gonzaga, que dentro das narrativas romantizadas agem apesar das circunstâncias adversas e apesar de não haver nenhuma perspectiva de sucesso da suposta tentativa de independência brasileira, três décadas antes de 1822.

Bem antes da positivação do seu martírio, que ocorre, sobretudo, no discurso que antecede à República, Tiradentes na segunda metade do século XIX é ainda um herói cujas tomadas de ação são compreendidas de maneira negativa por alguns historiadores, pela inconsistência de seu caráter e por uma volubilidade que o poderia fazer cair em anti-heroismo, se não o salvasse a irrepreensibilidade moral de seu projeto supostamente nacionalista. Os historiadores o definem como “inexperto”[1], “insignificante e indiscreto”, condenado por sua “descomedida ousadia, com que mostrava ter totalmente perdido o temor das justiças e o respeito e fidelidade devida”[2]. Sua “imprudência” teria causado a descoberta do plano dos inconfidentes mineiros e sua prisão[3]. Contudo, Teixeira e Souza, contista, o redime parcialmente: Tiradentes era um jovem “que em melhor época deveria ter vivido”:

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Não tinha, porém, Tiradentes nem a longa experiência dos homens, e das coisas, e nem o estudo sério dos caracteres dos povos, que fazem conhecer que forma de governo melhor se adapta a este ou aquele povo […] Tiradentes pois pensou de si para si que o governo republicano convinha ao Brasil melhor que outro. E se enganava![4]

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É inegável a sedução grotesca de um herói vencido, em pleno século da fantasmagoria, do horror e do fantástico, de um Tiradentes enforcado diante de um povo ainda impossibilitado de compreender um projeto situado no devir. A imagem do mártir supliciado chegaria ao conto, ao romance e à pintura, inicialmente latente na cena teatral, chegaria a ela de maneira explícita no final do século, a partir do ideal comum de que “Tiradentes já pertence ao futuro!”[5]: projeção de uma ideia. Por um lado, seu caráter ambíguo e as dúvidas sobre sua idoneidade alimentariam no discurso romântico a ideia de ilegitimidade de suas ações, muito embora injusta e moralmente condenável sua execução. Mas a crueldade do suplício e de sua desonra física pelo esquartejamento o transformaria na personificação do mártir, embora não na do herói secular como o pensaria Hegel. Na dramaturgia, Tiradentes comungaria igualmente do ideário de outras artes, como na imagem em simetria cruciforme com o cristo supliciado, no quadro de Pedro Américo, ou no crânio furtado, impregnado de elementos fantásticos, do conto A cabeça do Tiradentes, de Bernardo Guimarães, ruína da violência cometida e “sinal certo da queda dos tiranos e do triunfo da liberdade”[6].

A estreita relação entre um gênero literário histórico e a concepção de história que coexiste com sua escrita foi um dos temas recorrentes entre críticos e autores de ficção no romantismo brasileiro: para Gonçalves de Magalhães[7], “do silêncio da história se aproveita com vantagem a poesia”. Igualmente, para José de Alencar[8], “o domínio da arte na história é a penumbra em que esta deixou os acontecimentos […] Só aí é que a arte pode criar; e que o poeta tem direito de inventar; mas o fato autêntico, não se altera sem mentir à história”. Machado de Assis[9], crítico, lembraria que a avaliação de sua qualidade literária passaria pelo conhecimento histórico: “suprimir esta condição é expor-se à crítica e não entender o poeta”.

Tal convenção na escrita de um gênero histórico implicava o diálogo necessário com historiadores e cronistas, a partir de cujas narrativas o gênero histórico se construiria: não apenas obtendo dados sobre o momento histórico e as personagens, o autor deve interpretar a história — desde as narrativas dos cronistas às efetivas obras de historiografia do século XIX — e, para isso, precisa munir-se do sentido que sua época empresta à história. O diálogo recíproco também ocorria. Para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a história não poderia se tornar uma investigação “seca e puramente erudita”: “como qualquer história que este nome merece, deve parecer-se com um epos[10]. A insistência sobre esse elemento narrativo, e não apenas analítico para a história, religava-a com a imaginação e suas aspirações ficcionais, embora dentro dos limites que cingiam a verdade historiográfica.

Na literatura, as definições do epos pressupõem heterogeneidades formais e temáticas na concepção de gêneros históricos, tomando aqui a acepção de epos como adjetivo que qualifica obras literárias de maneiras diversas, uma variação do elemento épico; particularmente no conto e no drama românticos, onde o personagem teve participações significativas e cujas formas se aproximam por alguns aspectos, a figura de Tiradentes toma a configuração ora de uma imaginação evocativa, ora de uma história como pathos. A correlação entre conto e drama se torna ainda mais interessante pelo fato de ambos se organizarem em torno de causas e efeitos, já que a estrutura do gênero partiria de ações para desencadear um desenlace[11]. Para nossa análise, isso implica igualmente uma imaginação (evocativa) tensionada ora pelo epos, ora por um elemento dramático, alternando-se entre “acontecimentos” e “ações”, nos termos de Hegel[12], além do próprio enredo histórico.

Na dramaturgia romântica, Tiradentes, mártir entre os mártires da Inconfidência Mineira, oscila entre a personagem dramática tomada de paixões e sentimentalismo e a personagem épica, que projeta sua personalidade para o acontecimento histórico objetivo. Talvez sua mais lembrada aparição seja em Gonzaga, ou A revolução de Minas, de Castro Alves, mártir dentre outros mártires, ou como avalia Machado de Assis[13], “conjurador impaciente e ativo, nobremente estouvado, que tudo arrisca e empreende, que confia mais que todos no sucesso da causa, e paga enfim as demasias do seu carácter com a morte na forca e a profanação do cadáver”. Em Tiradentes ou Amor e ódio, de José Ricardo Pires de Almeida[14], o personagem central se situa em um dualismo sentimental que rege seu destino como herói e que não permite sua atuação efetiva nos acontecimentos que levariam à Inconfidência Mineira. Peça mais dramática, tudo gira em torno da dimensão sentimental do personagem Tiradentes, a partir da qual as intrigas são elaboradas e se resolvem, pouco tocando na necessidade política das ações do inconfidente. Nesse aspecto, a coragem de Tiradentes é questionada, e quando se manifesta, não transparece como resultado de uma força moral altamente aprofundada em sua consciência, que se teria deixado transparecer por um pathos heroico. Pelo contrário:

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Ah! sinto-me fraco, começo a ter medo… Eu não sou covarde! meus companheiros viram-me muitas vezes diante do inimigo, sabem que sempre fui digno do uniforme que trazia; mas não sei o que me diz o coração, meu Deus! Eu, acovardado, eu, que nunca fechei os olhos, que nunca abaixei a cabeça, e que, quando empunhei a espada, não recuei um só passo, e saí sempre vitorioso em meus combates. Procurem o homem mais valente, o mais intrépido, ponham em meu lugar, ve-lo-ão acovardado como eu.

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Para esse herói, Tiradentes, que não reconhece em momento algum seu próprio anacronismo, a peça resolve-se pelo martírio; porém, este não aparenta resultar das ações objetivas e dos seus fins heroicos; ele é um personagem envolvido passionalmente em vinganças e ódios pessoalizados e só ocasionalmente relacionados ao acontecimento histórico. Longe de se tratar apenas de uma incursão no melodrama, estratégia dramática de reencenação dos acontecimentos históricos, essa estrutura sentimental desloca a função histórica da personagem a um jogo de intrigas que apenas indiretamente dizem respeito à narrativa historiográfica.

Bastante diferente é outro drama de fim de século, A redenção do Tiradentes, de Almeida Júnior[15], talvez a peça histórica brasileira de mais traços épicos do século XIX, no sentido da fragmentação da ação dramática em atos e quadros, cobrindo um período que vai desde os Inconfidentes, particularmente o martírio do Tiradentes, em 1792, até 1889, com a Proclamação da República, acontecimentos integrados na peça em um mesmo sentido histórico. Na peça, o Tiradentes aparece como ponto de partida para um processo que se vai cumprir ao final do século XIX, momento de escrita do drama. Ao final do século XIX, a República brasileira — mais um deslocamento do ponto de chegada para a política brasileira, antes indicada pela Independência — aparece como “herança natural de um século recebida com o sangue do primeiro dos inconfidentes”.

Não apenas aparecendo como uma personagem histórica viva e atuante, Tiradentes também veio à tona como ruína. É o que acontece no conto A cabeça do Tiradentes, de Bernardo Guimarães. Inserido no volume de Lendas e tradições da província de Minas Gerais, como “tradição mineira”, é deliberadamente um exercício de imaginação: o narrador se dispõe a contar para suas leitoras uma história, em uma fria noite de maio, apesar de se lhe terem enregelado as “asas da imaginação”, levando sua inspiração a “recolher-se toda encolhida aos mais íntimos esconderijos do crânio, tiritando de frio e de medo”[16]. Por cadeia metafórica, o narrador, de maneira responsiva em relação ao leitor e simulando um processo de criação imaginativa, insere o tema da narrativa, a lenda da cabeça furtada do herói da Inconfidência Mineira Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, após seu esquartejamento: a imaginação que se encolhe aos “mais íntimos esconderijos do crânio”, o espírito do narrador, consequentemente “tão seco e estéril, como uma caveira de um defunto enterrado há cem anos”; a lembrança — “Ah! falei-vos em caveira!…” — que pode lhe despertar a “reminiscência entorpecida pelo frio” e que o leva a finalmente contar “a história de uma caveira memorável”, a “história de uma cabeça histórica”.

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Bernardo Guimarães

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Contrapomos a ligação entre gênero histórico e discurso historiográfico com as definições etimológicas do gênero conto, que no período estudado refere-se ao escopo negativo da mimesis, em um afastamento previsto da verdade historiográfica. De fato, nos dicionários utilizados no século XIX, a exemplo do Dicionário da língua portuguesa, de Bluteau e Morais Silva[17] o substantivo “conto” significa uma “história fabulosa”, este último termo significando algo “falsamente narrado”, tendo como exemplo a contraposição com a escrita historiográfica: “os tempos fabulosos da história, a época em que os sucessos verdadeiros andam misturados com mil falsidades maravilhosas, ou envoltos, e encobertos em contos, e circunstâncias sobrenaturais, quais são os de que consta a mitologia”. Igualmente, no Dicionário da língua brasileira, de Silva Pinto[18], escrito no momento histórico do romantismo, e já ecoando as ressignificações propostas pelo movimento em alguns verbetes, conto permanece com a mesma acepção, como “história fabulosa”.

A ideia de “conto” como fabulação entraria em conflito com uma definição generalista de conto histórico, na medida em que este é construído a partir de uma base empírica mínima da narrativa historiográfica, esta compreendida como verdade, e a fabulação como negativação da mimesis o levaria para o extremo oposto, a mentira. Como herança da filosofia setecentista enciclopedista e sensualista, tal definição presente nos dicionários de Bluteau e Morais Silva e no de Silva Pinto transita entre esses dois polos, sem excluí-los. Na síntese indicada na elaboração de um conceito de imaginação, como faculdade responsável pelos processos de ficcionalização, esse verbete terá implicações formais e temáticas, ao se relacionar com uma faculdade imagética, objetiva e de traços realistas, de caráter evocativo, e não apenas mnemônico, sem ligações necessárias com a superação da realidade empírica pela arte.

Voltemos ao conto de Guimarães. O furto da cabeça é organizado em torno de uma ambiência estranha, numa noite em que, assim como naquela em que o narrador conta a história às suas leitoras, a natureza se revolta em “impetuosa ventania”. A “cabeça heroica”, ainda que grotesca, imagem que “só poderia inspirar horror”, permeada pela luz da lanterna que a exibia, corajosamente ameaçava a soberania de seus tiranos. Um vulto rebuçado fantasmagórico “surge por entre as trevas”, levando consigo o crânio de Tiradentes, e desaparece misteriosamente. Embora se trate apenas de um homem, um velho, a tradição legará à narrativa do fato a imagem de um “fantasma de fogo, esvoaçando pelos ares” e desaparecendo nas nuvens. A fantasmagoria que se constrói no conto vem também como recurso para despertar o interesse do leitor sobre o tema a ser tratado. De fato, salvo raras exceções, como no Macário de Álvares de Azevedo, comumente na literatura romântica brasileira, aquilo que se poderia chamar de imaginação, no sentido de superação da realidade empírica pelo sobrenatural, é menosprezado em nome da afirmação de um modo realista, que em termos de imaginação chega no máximo ao folclore — que, diferentemente da “imaginação”, é entendido como de importância para a cultura nacional.

Em A cabeça do Tiradentes, imediatamente abandona-se a possibilidade do sobrenatural, em uma narrativa estranha, sem dúvida, mas cujo caráter histórico se adianta como maior necessidade: “não é história de almas do outro mundo, de trasgos, nem de duendes”[19] (id., p.215). O narrador parte de um dado histórico de maior valor, a motivação para a narrativa se encontra em um dado empírico — curiosamente, um pouco mais empírico do que o narrador deixa transparecer no conto: segundo Mário Higa (in GUIMARÃES, 2012, p.224), a tradição à qual Bernardo Guimarães teve acesso conta que o padre Manuel da Silva Gato (ou Gatto) teria sido o responsável pelo furto, escondendo a cabeça do inconfidente em sua casa na rua (ou bairro) das Cabeças, que seria posteriormente comprada pela família de Guimarães. Herdando o crânio, a família o teria enterrado no quintal da casa em que o escritor moraria até sua morte. Mas não é essa a versão narrada pelo autor. Distanciando-se de seu eu empírico, que possuiria mais dados sobre o acontecimento, Guimarães constrói um narrador que adentra tão somente na tradição passada oralmente do furto dessa cabeça histórica. Essa tradição é que dará sustentação ao narrador do conto, que deposita fora de si a credibilidade histórica da narrativa: “perguntem aos velhos, e mesmo a alguns moços mais curiosos das cousas antigas da nossa terra, e se convencerão de que esta história não é de minha lavra” (id., p.222).

Há uma diferença essencial de tratamento dessa matéria sobrenatural e folclórica em A cabeça do Tiradentes e em um conto como A dança dos ossos[20], do mesmo autor. Neste, um narrador erudito entra em contato com a lenda local da aparição fantasmagórica do esqueleto de Joaquim Paulista, rapaz assassinado em um crime passional nas margens do Parnaíba, através de Cirino, um homem simples como os de sua comunidade, “cujos nomes, decerto, não se acham inscritos nos assentos das freguesias e nem figuram nas estatísticas que dão ao Império…”. O cenário para a narrativa é o de uma natureza tormentosa, como se ela mesma propiciasse uma ruptura em sua ordem comum, propiciando a emergência do sobrenatural:

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A lua batia de chapa na areia branca do meio da estrada. Enquanto eu estou esporeando com toda a força a barriga do burro, salta lá, no meio do caminho, uma cambada de ossinhos brancos, pulando, esbarrando uns nos outros, e estalando numa toada certa, como gente que está dançando ao toque de viola. Depois, de todos os lados, vieram vindo outros ossos maiores, saltando e dançando da mesma maneira.

Por fim de contas, veio vindo lá, de dentro da sepultura, uma caveira branca como papel, e com os olhos de fogo […].

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O movimento constante do narrador é o de negar o relato de Cirino, como homem impressionado e ignorante, crente no materialismo animista[21], incapaz de distinguir a realidade empírica da visão proporcionada pela “guampa” que bebe com frequência. Cirino conta com a credibilidade de seus companheiros, mas a racionalidade do narrador questiona a todo o momento a imaginação desse homem simples, que narra um fato que, acontecido há dez anos, ainda lhe provoca horror, por envolver um ser anormal, uma “perturbação da ordem natural”[22] que lhe suscita reações de pavor e repugnância física e psicológica quase indescritíveis. Mesmo ao final do conto, após ironicamente recebidas as “tão valentes provas” de verdade do relato de Cirino, a visão de mundo deste e do narrador não se conjugam, permanecendo a versão do velho no âmbito da imaginação pura, como descolamento da realidade empírica. Trata-se de imaginação semelhante à de um Macário, de Álvares de Azevedo, que, assim como Cirino, andaria montado pelos ares em um burro, tendo na garupa um ser fantasmagórico.

Diferentemente, em A cabeça do Tiradentes, a imaginação que dá “vida às coisas extintas e realidade às inventadas”, firmando suas bases na historiografia moderna, é igualmente o discurso do pathos, como expressão da subjetividade e do sofrimento, e dessa morte que “assombra o ocidente” e torna legítima a escrita da história[23]. O historiador habita um “sepulcro vazio”. Não se trata de mortos fantasmagóricos, cujo contato com o real promove horror, como em A dança dos ossos, mas, como afirma Michelet[24], são mortos que apenas podem suscitar a “ternura” do historiador: em uma intimidade com o outro mundo, agora inofensivo, o historiador se torna “ainda mais benevolente” para com estes que não lhe podem fazer mal, honrando-os agora com a escrita, um “ritual que lhes fazia falta”. Tiradentes, sujeito épico legítimo, porque heroico, não é morto por motivo simplório, por uma paixão a uma mulher, como Joaquim Paulista, mas por uma causa importante à formação nacional, segundo a leitura historiográfica oitocentista, e, tendo sofrido um martírio, deixa como reminiscência de seu silenciamento uma caveira, perdida, contudo, e em torno da qual uma narrativa se constituirá.

A história, ainda recente em relação ao narrador romântico, se passa em “fins do século passado; em 178…”[25], na capital de Minas Gerais, Vila Rica. À opulência do ouro e à riqueza de seus cidadãos, contrapõe-se a violência pela tortura e pelos desmandos dos poderosos: “Ali sobre aquele morro se erguia o vulto sinistro e ameaçador da forca, que nunca se desarmava, e em que a um simples aceno da tirania, apenas com uma aparente forma de processo, se imolava tanto o criminoso quanto o inocente”. Como recurso narrativo, busca-se que o leitor adentre a situação pela descrição pausada e organizada em microunidades de sentido, partindo da riqueza da época como contraste aos problemas sociais e em meio a isso o crânio, que do alto as observa, e também é observado:

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E nessa época de riqueza e opulência, de servilismo e degradação social, no meio da praça principal desta cidade se via uma cabeça humana dessecada, cravada sobre um alto poste.

Este poste e esta cabeça eram noite e dia guardados por uma sentinela.

E à noite uma lanterna se acendia para aluminar o lúgubre espetáculo.

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O narrador demonstra empatia pelo objeto de sua narração, pela morte violenta e injusta que recebe, diante de sua “santa causa”, numa aproximação visual com a imagem da morte de Cristo, que será posteriormente tema da pintura de Pedro Américo, de 1893, O martírio de Tiradentes, na qual o corpo do revolucionário é disposto em aproximação com o formato da cruz. De fato, um dos modelos metodológicos para a história no século XIX aproxima-se da pintura, como “a marca da verdade e o sinal da vida”, nos termos de François Hartog[26]. A esse quadro visual traçado pelo narrador, seguem-se não isentas considerações sobre a mensagem política que a cabeça aportava: de maneira retórica, pergunta se, por um lado, “aquele triste e miserando resto de uma vítima há tanto tempo sacrificada”, “aquele crânio oco e ressequido, onde há tanto tempo se extinguira a vida e o pensamento” simbolizava a violência tirânica de sua época, ou se, por outro, o fato de ser constantemente vigiada significaria o temor dos seus algozes de que “reunindo-se ao tronco esquartejado e esparso, desse outra vez o sinal da revolta ao povo oprimido”[27]. O narrador tem o posicionamento de um homem de seu tempo, e por assim dizer anacrônico, tanto quanto a leitura da história oitocentista costumou ser, dotando de sentidos próprios outros tempos históricos. Assim, compreende as atitudes do Tiradentes como defesa do rompimento entre Brasil e Portugal e, ao elogio dos poetas árcades, como “glórias que nunca mais se eclipsarão”, observa que em termos de construção literária, essa literatura se encontrava “um tanto abastardada pela imitação do classicismo lusitano”[28]. A cabeça prediz ao futuro a ruína dos seus assassinos, como símbolo da Independência, e como ruptura entre o presente e o passado da nação brasileira.

A representação imaginativa de A cabeça do Tiradentes se dá igualmente na medida não realista de um destaque excessivo ao objeto representado, pelo deslocamento do foco narrativo: em sua construção evocativa, imoderadamente o crânio agrega a si a influência sobre os estados da natureza, que se revolta ao seu redor, traz à tona ideais revolucionários, provoca o temor excessivo de uma vingança sobrenatural proporcionada pelo martírio injusto sofrido pelo personagem histórico. Trata-se de um realismo, em certa medida, como exposição das engrenagens do real, e não como reprodução de uma superfície visível: emergem costumes, crenças, ideologias suscitadas por uma cabeça histórica. Mas a imaginação não ganha contornos de ruptura da ordem natural pelo sobrenatural, pois o narrador contém essa expressão deliberadamente com justificativas verossímeis para o roubo, desmistificando as crenças no outro mundo como fruto da propagação de narrativas folclóricas por via oral.

A partir desse silenciamento, cabe ao historiador e, consequentemente, ao escritor de ficção intuir, concluir, deduzir a parte invisível do fato, a partir do “esqueleto de dados” que pode obter, e que não se confunde com a própria história. O conto histórico romântico, constituindo-se como gênero fronteiriço, adere às metamorfoses dos personagens comuns à estrutura épica do romance ou da novela, mesmo que concentradas em uma curta narrativa. Destaca-se ainda a passividade quase melodramática de alguns personagens diante dos acontecimentos com que se deparam, mais por seu estado sentimental em conflito do que por resistência corajosa. É essa complementação que dá à história seu estatuto de verdade, e dentro do conto, gênero ficcional, lhe dá margens para o caráter histórico. Tal processo é criativo na medida em que é uma prova da autonomia do historiador e do escritor de ficção: “de um modo diverso ao do poeta, mas ainda assim mantendo semelhanças com ele, o historiador precisa compor um todo a partir de um conjunto de fragmentos”[29].

Dentre essas ruínas, a submissão aos acontecimentos que se vão acumulando diante dos personagens no conto permanece épica na medida em que funciona como resistência heroica. O epos poderia funcionar como elemento dispersivo da ação principal, ao concentrar a estrutura do gênero mais sobre acontecimentos do que sobre ações propriamente ditas, em uma estrutura mais narrativa do que dramática. Mas há quebras constantes dessa organização, já que predomina a terceira pessoa do singular, marcando a inexistência de diálogos em A cabeça do Tiradentes, o que freia o desenvolvimento de uma ação colaborativa entre personagens, que mais enunciam falas isoladas representativas de estados sentimentais e de pensamento (retóricos). Além disso, em A cabeça do Tiradentes, o foco narrativo acompanha a presença do crânio histórico e narra os acontecimentos que se passam à sua volta. Nesse ponto, o conto histórico traz finalmente a ideia de “lição da experiência”, nos versos de Gonçalves Dias, e um reviver e renovar de fatos encadeados. De acordo com Jobim[30], os românticos dialogam com a célebre frase de Cícero “historia magistra vitae” (“história, mestra da vida”), que em um contexto maior representaria a missão social da ciência histórica e a capacidade inerente ao historiador de dotar os fatos históricos de importância e permanência das ações e das ideias do herói de defesa da pátria, mesmo após seu martírio.

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Tiradentes esquartejado; Pedro Américo, 1893

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Notas:

[1] ABREU E LIMA, José Ignácio de. Compêndio de História do Brasil. Rio de Janeiro: Laemmert, 1843.

[2] VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Laemmert, 1857.

[3] ARMITAGE, João. História do Brasil. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve & Comp, 1837.

[4] TEIXEIRA E SOUZA, Antonio Gonçalves. Gonzaga ou A conjuração do Tiradentes (romance). Rio de Janeiro: Typografia de Teixeira & C, 1848, p.9 e 30.

[5] ALMEIDA JÚNIOR, Fernando Pinto de. A redenção do Tiradentes, drama histórico em um prólogo, três atos e quatro quadros. Rio de Janeiro: Imprensa Mont’Alverne – Ferreira & C., 1893.

[6]  GUIMARÃES, Bernardo. A cabeça do Tiradentes. In: HIGA, Mário (Org.) Antologia de contos românticos. São Paulo: Lazuli Editora; Companhia Editora Nacional, 2012.

[7] MAGALHÃES, Gonçalves de. Breve notícia sobre Antonio José da Silva. In: FARIA, João Roberto. Ideias teatrais: o século XIX no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2001 [1839], p.326.

[8] ALENCAR, José de. O Jesuíta (Advertência). In: FARIA, João Roberto. Ideias teatrais: o século XIX no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2001 [1875], p.430.

[9] ASSIS, Machado de. Carta a José de Alencar. In: FARIA, João Roberto. Ideias teatrais: o século XIX no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2001 [1868], p.417.

[10] R.IHGB – Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil. Tomo 6. 1973 (1844). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1973 [1844], p. 402. Disponível em: http://ihgb.org.br/publicacoes/revista-ihgb/item/107700-revista-ihgb-tomo-sexto.html. Acesso em: 13.10.2015. (Acervo digital do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro)

[11] LUCAS, Fábio. O conto no Brasil moderno. In: PROENÇA FILHO, Domício. org. O livro do seminário. São Paulo: L. R. Editores LTDA, 1983, p. 105-6.

[12] HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Estética: poesia. Lisboa: Guimarães editores, 1980, p. 125-130.

[13] ASSIS, Machado de. Carta a José de Alencar. In: FARIA, João Roberto. Ideias teatrais: o século XIX no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2001 [1868], p.413-419.

[14] ALMEIDA, José Ricardo Pires de. Tiradentes ou Amor e ódio. São Paulo: Tipografia Imparcial de J. R. A. Marques, 1861.

[15] ALMEIDA JÚNIOR, Fernando Pinto de. A redenção do Tiradentes, drama histórico em um prólogo, três atos e quatro quadros. Rio de Janeiro: Imprensa Mont’Alverne – Ferreira & C., 1893.

[16] GUIMARÃES, Bernardo. A cabeça do Tiradentes. In: HIGA, Mário (Org.) Antologia de contos românticos. São Paulo: Lazuli Editora; Companhia Editora Nacional, 2012.

[17] MORAIS SILVA, Antonio de. Dicionário da língua portuguesa composto pelo padre Rafael Bluteau, reformado e acrescentado por Antonio de Morais Silva. Tomo 1 (A-K). Lisboa: Tipografia de Simões Tadeu Ferreira, 1789.

[18] SILVA PINTO, Luiz Maria da. Dicionário da Língua Brasileira. Ouro Preto: Tipografia de Silva, 1832. (Acervo da Biblioteca Digital do Senado Federal)

[19] GUIMARÃES, Bernardo. A cabeça do Tiradentes. In: HIGA, Mário (Org.) Antologia de contos românticos. São Paulo: Lazuli Editora; Companhia Editora Nacional, 2012.

[20] GUIMARÃES, Bernardo. A dança dos ossos. In: CAVALHEIRO, Edgard (Org.) O conto romântico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1961.

[21] BOSI, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, s.d.

[22] CARROLL, Noël. A Filosofia do Horror ou Paradoxos do Coração: São Paulo: Papirus, 1990, p. 31.

[23] CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense universitária, 1982.

[24] Citado por CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense universitária, 1982.

[25] GUIMARÃES, Bernardo. A cabeça do Tiradentes. In: HIGA, Mário (Org.) Antologia de contos românticos. São Paulo: Lazuli Editora; Companhia Editora Nacional, 2012.

[26] HARTOG, François. Evidência da história : o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

[27] GUIMARÃES, Bernardo. A cabeça do Tiradentes. In: HIGA, Mário (Org.) Antologia de contos românticos. São Paulo: Lazuli Editora; Companhia Editora Nacional, 2012.

[28] GUIMARÃES, Bernardo. A cabeça do Tiradentes. In: HIGA, Mário (Org.) Antologia de contos românticos. São Paulo: Lazuli Editora; Companhia Editora Nacional, 2012.

[29] HUMBOLDT, Wilhelm von. Sobre a tarefa do historiador. Trad. Pedro Caldas MARTINS, Estevão C. de Rezende. (Org.) A história pensada: teoria e método na historiografia europeia do século XIX. São Paulo: Contexto, 2010, p. 82-100.

[30] JOBIM, José Luís. Notas sobre a teoria romântica da histórica. In MOREIRA, Maria Eunice (Org.) Histórias da Literatura : Teorias, Temas e Autores. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2003.

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Jéssica Cristina Jardim

Jéssica Cristina Jardim é ensaísta e pesquisadora. Doutoranda em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), foi professora de história do teatro na Universidade Estadual Paulista (UNESP) e pesquisadora residente na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM-USP). É autora do livro “Dramaturgos, críticos e ratos: reflexões sobre o teatro em Edgar Allan Poe” (Editora UNESP, 2020).